sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Do tempo que passa e a gente não sabe pra onde vai, o maldito




Meu tempo cresce como os fios da minha barba. Desce pelo meu queixo sem se preocupar com passagem. Teimoso. Descuidado. É um tempo de tetos desconhecidos a cada vez que eu me deito pra dormir. Diabo sem lugar. Me faz rodar cidades, estados, países. Tempo é barba e tetos desconhecidos.

Eu olho dentro da tela do meu computador e só vejo páginas em branco. Pela casa têm calendários com as folhas de Agosto ainda presas. Penso no ano que vem. No resumo do meu ano que está morrendo. Nas malas formando barricadas na sala que avisam "cê tá aqui só de passagem, entendeu?". Na mesinha de centro, o tempo fez um guichê e carimbou meu passaporte outra vez. Será que eu tô escrevendo coisa com coisa?

O tempo foi pra um lugar onde eu não sei chegar, o tempo me trapaceou. Em Janeiro eu era menino, em Dezembro sou homem. O tempo tá de grace com my face e joga sinuca com a minha idade toda primeira quarta do mês. Hoje? Dois dias depois de anteontem. Meu Deus, onde foi parar meu tempo? Em Janeiro eu era menino. Menino. Agora eu contemplo a cidade que brilha silenciosa lá fora. E sinto tanta coisa boba pesando sobre mim...

Eu vejo os postes de luz passando pela janela enquanto estou deitado no banco de trás do carro da minha menina. Tem qualquer coisa que me acalma nisso. Me lembra das noites em que eu voltava de ônibus pra casa, depois de me aventurar em um dos desafios bestas da adolescência. Tem um relógio de parede que eu levo na bagagem. Ele faz um barulho que não deixa minha menina dormir direito, daí ela demora um monte se mexendo na cama. Mas nunca me pediu pra tirá-lo de lá. Eu odeio aquele relógio. Mas não consigo viver sem ele.

O tempo samba na cara da sociedade, salto agulha. Um dia desses saí pra comprar balinha e uma criança me chamou de tio. Decidi nunca mais comer doce. Aí eu te digo que tenho 22 e na verdade adoro minha idade. Não é engraçado esse troço de dois patinhos na lagoa? Eu acho e você tem que respeitar minha opinião. Droga. Que piada idiota eu vou poder fazer com 23? Minha barba ainda está crescendo. Os tetos continuam desconhecidos.

Vejo amigos que há tempos não via, mato saudades no tapa, canto músicas de outras épocas no chuveiro. Me sinto pronto pra qualquer coisa, mas só até secar o cabelo. É, eu sei. Ainda estou na idade em que ter cabelos molhados é sinônimo de liberdade. Algo como "eu faço o que quiser com minhas madeixas e quero ver o mundo me contrariar". Daí o cabelo seca e a rebeldia acaba. Sou um conformado dos cabelos secos.

Tenho cartão de crédito. Mas nunca tive o hábito de dar presentes. Então fico completamente sem graça quando ganho algum. É uma coisa fácil de se resolver, né? Vou parar de fazer pequenos dramas. No ano novo eu não vou comer doce, não vou abrir a geladeira pra pensar sobre a vida e vou dar presentes.

Tirei a barba pra enganar o tempo, não deu muito certo. Minha menina já chegou e agora tá lá embaixo me esperando, não tenho tempo pra perder. Agora quero de ano novo um teto que não seja mais desconhecido. Quero descobrir um teto simpático, engraçado. Não precisa ser rico, é só ter uma renda estável. Vou chamá-lo pra jantar no Dom Francisco, pagar um bom vinho e intimar:

- Vai ser minha casa de agora em diante?

Até lá minha barba vai ter crescido de novo.



sábado, 12 de novembro de 2011

men from the boys




Uma frase.

Eu estava lá, caminhando. Não que o "lá" seja desinteressante, é a segunda cidade do mundo que mais me encanta. Londres. A Londres dos esquilos na primavera. Eu desci as escadas do metrô, sorri ao ouvir a voz ao fundo que dizia calma e sedosamente:

Please mind the gap between the train and the station

Mãos nos bolsos que tava um pouco frio. Caminhava olhando pra baixo, pensando em um monte de coisa e em nada ao mesmo tempo. A importância do biscoito recheado pra raça humana, o quanto aeroportos são frios, desolados nacos da terra de ninguém. Daí um moço esbarrou em mim, pediu o polido/apressado "sorry" dele e foi-se embora, deixando o meu rosto levantado de surpresa. Não pelo esbarrão. O esbarrão só me fez olhar pro lado.

Lá estava. Uma frase pra mudar meu mundo. Em um cartaz enorme na estação de South Kesington, que não era propaganda nem nada, só um fundo branco de dois metros de altura por dois metros de largura que dizia...

men from the boys

E ao lado da frase, uma foto. Duas pernas finas de garoto com os pés dentro de sapatos de homem adulto. Foi um tiro no peito. Porque naquele momento, naquele instante eu vi que não era mais um menino. Não. Eu sou um homem agora. Feito.

men from the boys

A gente passa por num tanto de coisa no caminho da vida, não é? Sofri tanto quanto você nesse tempo todo de labuta. Tive minhas tragédias. Alguns dizem que foram grandes, outras disseram que não valeram de nada. Eu só digo que foram tragédias, como quaisquer outras. E daí eu sofri, como você já sofreu. E me levantei depois, me sentindo um bosta, como você se sentiu. Eu era um menino. Você também. Nós eramos meninos, eu e você, não nega, vai.

Crescemos. Precisei cruzar meio mundo e ver essas palavras impressas pra enxergar isso com a crueza necessária. Notei a falha entre o trem e a estação. Pequenos filmes de memória. Sabe? Aqueles feitos com VHS na sua cabeça de anos 90.

men from the boys

"Você consegue, Lucas. É metade menino e o dobro do homem." Não era isso que ela dizia? Era.

men from the boys

Compras do mês, contas pra pagar, expedientes e salários, responsabilidades e contar histórias. Amar. Amar aos borbotões. Corresponder ao mundo e, ainda assim, sem precisar de expectativas pra acabar com o coração. Nada disso me faz um homem. Me fiz homem com o tempo.
Minhas pernas já doiam depois de vinte minutos olhando pras pernas que balançavam. Minha cabeça fervilhava, a frase reverberava e ecoava. Se expandia pelo corpo. Até me preencher.

Me encontrei como homem adulto. Passei a ver a vida como um homem. E essa loucura de poses e privilégios em ser um homem. E aqueles pés de menino soltos.
Fui embora, entrei em um trem. As luzes piscavam como um farol que sinaliza o tempo, pro barco ao longe que vem pra terra. Sacudindo de leve, o som do vagão era um acumulado de murmúrios e sussurros. A frase foi se assentando no seu lugar e já preencheu a lacuna que eu tinha comigo mesmo. Só sobrou um pensamento bobo. Os pés do garoto. Hum. Alguns sapatos são mesmo difíceis de se preencher.

Please mind the gap between the train and station.



sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Barulho




Eram 7h32 quando o barulho começou. A princípio, eu não me mexi da cama. Cedo demais. O sol, pra mim, só nasce lá pras 9h40 e tudo o mais antes disso é madrugada.

E o barulho continuava. Tá que sacode a janela. Não consegui definir o que acontecia. Eu ainda estava muito idiota de sono pra raciocinar. Só fiquei a escutar o tal do barulho e pensando comigo "que troço amaldiçoado é esse que não para nunca?!". Barulho sincopado. Parecia qualquer coisa como uma obra, mas em obra tem pausa. Obra tem um barulho mais violento. O barulho parecia uma praga do inferno. Obra é o próprio inferno. E o tal do barulho não parava.

Rolei pro outro lado da cama, agarrei o travesseiro e passei o dito por cima da cabeça. Não adiantou nada. O barulho parecia estar dentro de mim, quicando em pedaços. Ô tec-ploc do capeta, quem foi o Exú que te mandou!?

Tateei o criado-mudo a procura dos óculos. Esbarrei no abajur, que caiu no chão fazendo um barulho maior que o barulho que tava me aborrecendo. Achei celular, relógio, livro e finalmente os óculos. Droga, ainda peguei pela lente.

Coloquei nos olhos e firmei a vista. Vinha da janela, o zumbido mancumunado com o Cão. Menos que caminhar, cambaleei ou quase rastejei até lá. Abri a cortina devagar, pra não arder a vista. E lá estava.

Chuva. Ué, chuva?! É. Num é que era? Chuva. Chuva tem barulho bom. Hum.
Deitei na cama e voltei a dormir imediatamente. Feliz da vida. Adoro dormir com barulho de chuva.



quarta-feira, 26 de outubro de 2011

[Info] A vida tá uma bagunça, me perdoa? Perdoa, vai?

Parece desculpa de escritor bêbado, mas tava sem condições físicas de colocar pensamentos em dia pra escrever.

Sexta-feira próxima isso muda!
;)

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Película

Patrícia era nova no prédio e não estava acostumada a morar em um apartamento. Ficou preocupada com o edifício em frente ao seu, qualquer um poderia bisbilhotar sua privacidade. Nada de passear pelada pela casa, pensou. Dividiu o tormento com uma amiga, na academia do bairro, que encerrou o assunto em uma nota de serenidade:

- Fica tranquila, as janelas do seu prédio têm película.

Problema de consciência resolvido, ela pode desfrutar da liberdade do lar para dançar nua na sala, pelo tempo que quisesse.

Enquanto isso, a amiga da academia passou a ficar muito atenta durante a noite. Esqueceu de avisar à Patrícia que era moradora do tal edifício em frente.

E também esqueceu de mencionar que a película só protege a privacidade se as luzes do apartamento estiverem desligadas.

sábado, 24 de setembro de 2011

Rituais




Meu antigo quarto, naquela meia-luz alaranjada da manhã, é um dos lugares mais confiáveis do mundo. Podia ser filosofia zen, mas é só um suspiro de alívio. Enquanto o que conheço é incerto, eu me seguro. Aquela sensação de marinheiro depois do retorno, já sentiu? Que anda quase caindo porque a terra firme engana. É esquisito perceber que normal, pra mim, é o sacudir do mundo.

Estalo partes do corpo em silêncio. Dedos, pés, joelhos, vértebra por vértebra. Lavo o rosto como se saísse água benta da torneira. Me batizo na pia. Lembro que sei rezar, apesar de não ser católico, a oração de São Cristovão. Ainda assim, quase sempre fico em um Pai Nosso enviesado. As pontas das unhas vagando pelo rosto. A imagem no espelho é dura enquanto mexo os lábios sem fazer som algum. Pai nosso que estais no céu... Ela está aí contigo? Nunca vou além disso. O dia precisa de mim. Então eu dou um sorriso sincero, e abro o peito pro que der e vier.

As fotos na parede, entrando e saindo de foco. Sorrisos. Aquilo conforta e o ritual já está tão enraizado que não preciso ver as fotos. Elas estão lá, não importa onde eu acorde. Imagens talhadas, caprichosamente, do lado de dentro dos olhos. Não, não preciso das fotos. Tudo o que preciso é de uma parede.

A roupa fica de prontidão, vestida sem muita convicção. Tirar o pijama é sempre uma dor. Desejo aquele conforto de coração, mas a camisa de algodão me abandona como o último helicóptero ao sair de Saigon. Cretina.

Checo o celular e ele às vezes dá boas notícias. Mensagens que chegaram de madrugada, coisas que escrevi e esqueci. No relógio de pulso, programo os dias. Ele lembra de ponderar e pesar as coisas. Tenho o péssimo hábito de me deixar levar pelas coisas bobas da vida. Amar demais, amar de menos. Olhar para a geladeira e refletir sobre o insólito enquanto decido se pego um copo de suco ou ataco o iogurte. Definir o rumo da minha vida. Começar ou não a construir meu carrinho de rolimã. Essas coisas. Sempre que exagero é porque estou sem o meu relógio. Preciso aprender a dormir com ele.

Antes de deixar a casa, vou até o baralho. Ele fica na minha mesa, o monte com os naipes virados para baixo. Embaralho rápido, puxo uma carta e aquilo será o meu dia. Sete de ouros, dama de copas, nove de espadas. Não faço a menor ideia do significado, mas me sinto um meio mágico. Adivinhando o meu dia com uma jogada. Na verdade olhar para aquelas cartas é saber que meu dia não faz o menor sentido. Ou você acha que um sete de ouros significa alguma coisa?

Lembro de quando aprendi meu primeiro truque de mágica. Adivinhar cartas, coisa simples. Como todo mundo, fiquei abismado de surpresa até o momento em que descobri como funcionava. Nunca, nunca vou esquecer as palavras do mágico que me ensinou aquilo. Não lembro o nome dele... Maurício? Carlos? Em um supermercado? No hospital? Marcos? Isso faz alguma diferença? Ele parou do meu lado, olhou no meu olho lá do alto da sua idade adulta e falou baixinho, concentrado, tendo certeza de que eu bebia as suas palavras.

- Viu como a mágica é igual à vida? O segredo é tudo o que você tem. O seu público depende dele, jamais o revele. Enquanto o mistério está lá, tudo brilha. Quando você mostra tudo... não passa de fumaça e espelhos.

O segredo, no fim, é o meu principal ritual. Começo quando piso na rua, quando fecho portão de casa atrás de mim. Eu sei que cada palavra da minha vida é uma armadilha. É uma tentativa de manter o truque. O resto do meu tempo vive em função disso, momentos esparsos de surpreender quem olha direto pra mim. Até o momento em que durmo e o espetáculo faz sua pausa. E não interessa o quanto achem que sou mais que sou. Lá no fundo, é só fumaça e espelhos. Até os rituais do dia seguinte.



domingo, 18 de setembro de 2011

Cata-vento

O vento não para, não para, não para, não. E Miguel ali, no despenteio. A bicicleta grita com as pedaladas, satisfeita. A poderosa sensação de se viver sobre rodas.

Cruzamento, sinal fechado. Ele tem medo dos carros. A bicicleta também.

Miguel é um desses caras verdes. Compra tênis biodegradável, faz catavento pra TV funcionar a energia eólica. Começou a estudar filosofia, depois antropologia, depois desistiu desse nosso sistema de ensino falido e burguês, preferindo viver da mesada do pai.

Já a bicicleta é bem menos contraditória. Ela tem duas rodas boas, banco firme. Adventista, rala em dobro às sextas-feiras e descansa aos sábados. Ela gosta do vento assoviando no metal. De sentir as curvas deslizando pelo pneus. A bicicleta tem ambições curtas. A bicicleta gosta mesmo é de ação.

Deu-se que Miguel precisou se desfazer da bicicleta. A bicicleta já não era o veículo verde mais cool pra tirar onda na faculdade. O patinete elétrico é que tá na moda. Abastecido com energia eólica, claro. Foi pra lojinha de usadas e largou a bicicleta ao vento. Sem remorso.

E com um cata-vento, tirei a bicicleta de lá. Por uma pechincha. Agora ela se chama Joaquina. Agora sou eu no despenteio. E a felicidade dela corre de guidão em guidão, de abraços em outros braços. Fazendo o tempo parecer pouco, mesmo que seja um dia inteiro.

E o ventão lá. Soprando. Nem aí pra essa bobagem toda que eu escrevi.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Cloud

eu aqui, preso dentro do meu corpo. e o diazinho nublado lá fora.

tic, tac, tic, tac.

domingo, 28 de agosto de 2011

O garoto do andar de cima




- Você faz natação todo dia?
- Não, não todo dia. Quer dizer... Nos últimos dias, todo dia. Mas não desde sempre. Entendeu?
- O que eu tinha perguntado mesmo?

Eu ri. Ele queria ser piloto de avião, mas agora vai ser jornalista que nem eu e aparecer na TV dando pirueta pra Janaína ver, a namorada dele desde o mês passado. Ela é linda e sempre usa brincos. Eu ri.

- Sabia que cê parece o César Cielo? Ele também nada, mas não tem barba. Nem cabelo preto. Só que ele também nada.

Me mostrou o videogame portátil que ele tem, última geração. Contei que eu tinha um parecido, mas que era do tempo do onça. Se chamava BrickGame, ou só minigame, com uma porção de jogos toscos com tijolinhos.

- O mais famoso era o Tetris.
- Meu pai me disse que o Brasil foi tetra em 94. Tempo do onça é o tempo em que tinha onça no Rio?!

Eu ri. Ele contou que queria ser atacante do time da rua dele, mas não deixavam por ele ser ruim. Aí ele ficou mais triste que em todos os outros dias da vida dele.

- Qual foi o seu dia mais triste de toda a vida?
- Morreu uma pessoa muito importante pra mim, um tempo atrás.
- Humm... Ela morreu de brinco?

Tentei lembrar, não consegui.

- Você já viu o sereno?
- Sereno?
- É.
- Ué, não. Acho que não. Não sei direito o que é o sereno, pra ser sincero.
- Não?! Minha mãe sempre diz que ele é perigoso.
- Pois eu não ligo mais pra ele. Agora, eu dou tapa na cara do sereno. Mesmo sem saber o que ele é.
- Mentira, sua mãe é que te deixa ficar na rua até mais tarde.

Ele correu pro elevador. Corri também. Ele já estava sonolento quando saltou pro seu andar. Olhou pra mim e falou no meio do bocejo.

- Você parece com o César Cielo.
- Eu também te achei legal.

Ele riu.



sábado, 27 de agosto de 2011

Madrinha




- Eu tô com tanto medo, Doca.

A gente acha que é forte, mas não é. Não posso ajudar minha amiga. São centenas de quilômetros entre nós. Deu um nó tão apertado no meu peito... Que dor era a minha mesmo? Aquela que pensei ser grande? Daria tudo pra segurar a mão da minha amiga, ajudá-la. Contudo, só o que pude segurar foi o choro sobre o teclado. Pensei em todos os planos que nós temos juntos. Eu queria morar perto dela pra roubar pedaços de bolo. Os nossos filmes seriam épicos. Vão ser. Têm que ser.

- Você vai ser a madrinha de um dos meus filhos magrelos. Não preocupa. Você vai ficar bem, tá?

Não quis contar pra ela que também estou com medo.



segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Magnólia - Parte IV




Esperei, sem pressa, a multidão se dissipar. Não contava com aquilo e me espantei ao descer do táxi. Algumas centenas de pessoas formavam um circulo compacto ao redor dela. Observei a expressão deles e encontrei de tudo. Dor, curiosidade, surpresa. Principalmente surpresa. Cometários sussurrados formavam uma onda de chiados ecoando pelo espaço. O som rasgava o ar como ondas quebrando, espumando incerteza.

Esperei e, mesmo cercado de gente, só o céu de aço me fez companhia. As nuvens deveriam ter sido mais compreensivas, pensei. Magnólia merecia um dia ensolarado no seu enterro.

***

O carro roncava enquanto as marchas eram passadas com desleixo. Eu não sei que carro era, ninguém nunca foi preciso quanto a essa parte, mas gosto de pensar que ela dirigia um pequeno caminhão roubado. Uma pena a funcionária do posto de gasolina da cidade estar dormindo durante o serviço. Ela me ajudaria com esse detalhe. Contudo, só que ela viu ao acordar foi um par de lanternas traseiras sumindo pela estrada. E, é claro, as faíscas altas do enorme tanque de combústivel que o carro arrastava sem nenhum cuidado pelo asfalto. Ela disse ter demorado alguns minutos pra entender que alguém tinha roubado um tanque inteiro do posto, por isso a ligação que fez a polícia era tão confusa. Não a julgue. Você também não acreditaria se acordasse vendo uma cena dessas.

Quando o pai de Magnólia acordou, o canavial onde plantara o seu dinheiro lhe mostrou uma lição de mercado. A economia é regida por uma mão invisível. E alguma mão invisível espalhara combustível ao redor de toda a fazenda até a usina. Eles teriam que esperar a chuva pra poder lavar aquilo, lhe disse o chefe da colheita.

No centro da cidade, a estátua do fundador amanheceu sem cabeça. Foi substituída por uma calota de carro pichada com os dizeres "Viveu corno e morreu virgem". As pessoas ficaram chocadas, veja se pode esse absurdo. Todos sabiam que o fundador da cidade nunca se casou.

O mesmo vândalo virou a noite estourando os registros dos carros. A água jorrava dos hidrantes da cidade, até um soldado novo resolver ligar para a companhia de abastecimento e mandar cortar o fornecimento antes que ficasse tudo inundado. A única mulher da corporação estranhou o cheiro de acetona que sentiu no ar. Ela não tinha feito as unhas naquele dia.

A beira do rio, o novo complexo residencial amanheceu com um mistério. As tulipas da dona Matilde, tão bem cuidadas, foram pisoteadas insistentemente. E isso apesar das placas de "cuidado com o canteiro" afixadas por todo o local. O carro zero do seu Jonas estava riscado. E a Tassínha, quando foi brincar no rio, sentiu um gosto estranho e forte na água. Colocou um pouco na mamadeira e levou pra mãe, que ficou preocupada e deu bronca na criança por ter mexido no bar do papai. Mandou a menina para o quarto e passou o resto da manhã bebericando o uísque que ela tinha trazido.

Magnólia estava sentada no boteco. Olhava o caos se espalhando, sorriso cansado no rosto. O dono do bar, achou que fosse um assalto quando a viu entrar derramando um vidro de álcool pelo chão e sacando a arma. Mas não entendeu quando ela colocou uma nota de vinte no balcão e pediu um chope. Disse pra ficar com o troco, pra limpar o chão mais tarde. Reconheceu a menina louca de anos atrás, a menina da história triste do rio. Dia esquisito. Chamou a polícia. Magnólia espetou um palito de dente na tampa do álcool, virou a garrafa de cabeça pra baixo, enfiou no bolso da calça e se sentou. E o dono bar sentiu um frio na espinha. Tinha alguma coisa muito errada naquela cena.

A polícia chegou e em grande quantidade. A história da volta da menina louca, Mag Desce Todas, batia perfeitamente com a onda de eventos que deixaram a cidade em polvorosa. Polvorosa, boa palavra pra descrever aquilo tudo.Antes de ser algemada, Mag já estava de pé. Sorria abertamente, mordendo um palito de dente. Ela é mesmo doida, pensou o policial. O bar ficava de frente para o prédio da prefeitura, onde também estava a única cela da cidade. Lá o delegado a aguardava.

Sentado no meio da cela, ele esperava lidar com uma menina maluca que resolvera voltar pra escandalizar um pouco aquele povo bobo. Se surpreendeu ao encarar uma mulher segura. Resolveu bater de frente:

- Confessa que os delitos apresentados pelos policias que te prenderam foram cometidos pela senhora?
- Faço questão de dizer que fui eu.
- Você não está levando isso a sério, não é?
- Sério, delegado? Acho que você vai mudar sua ideia sobre o que é sério.
- Haha! Você é só uma mulher doida que reapareceu pra me encher o saco.

Ela olhou firme para o delegado. E, com o palito de dente na boca, propôs um desafio.

- Você me dá um cigarro e faço sua vida mudar.

O homem decidiu dar uma chance para a sorte. Acendeu o cigarro, colocou nos dedos da criatura que parecia crescer em sua frente. Ela abriu um meio sorriso.

- Nasci mulher numa cidade que não tem futuro nem para os homens que mandam nela. Cresci correndo do mundo em uma moto de quinhentas cilindradas, achando que podia achar uma resposta na velocidade. Amei, e amando eu amadureci o bastante pra poder me entender como uma mulher que pode cavar o seu lugar. Chorei, vendo que o lugar que eu construí podia ser derrubado do mundo como um castelo de cartas. E agora que eu não tenho mais porra nenhuma, que desperdicei minha vida contendo a minha tristeza dentro de dias bobos... achei que podia terminar tudo com um pouco de estilo. Entende?
- Tudo o que? - perguntou o delegado, que já não conseguia desgrudar os olhos dela.
- Tudo o que está nos limites desse lugar. Incluindo eu e esse palito de dente.
- Palito?

Ela cuspiu o palito no rosto dele. Olhou de novo para o cigarro. Soltou a ponta que queimava em brasa sobre o chão molhado. Sim, pois aquele palito era o que segurava o álcool dentro de uma garrafa em seu bolso. Álcool que agora estava no chão da cela e espalhado como um pavio que conduz ao fim dessa história.

O fogo correu pelo chão, como se tivesse vida própria. Naquela cela, Magnólia deu o seu primeiro beijo. Em um ladrão qualquer, já não importava mais. O fogo continuou pelas escadas do prédio, cruzou a rua até o bar onde Magnólia provou pela primeira vez o gosto da violência ao quebrar uma garrafa de gim em um valentão. O fogo seguiu caminho por trás do bar até chegar ao início da plantação de cana. Aquela cana que a fizera escrava de um futuro que não era dela, de um pai que a queria como outra, de um mundo de faz de conta para uma mulher que nunca existiu. O fogo transformou hectares e hectares em pó, mas não antes de atingir o rio. O fogo fez o rio flambar, acertou as casas feitas sem amor, de famílias que invadiram as terras para morar com um conforto que a cidade não dera a Magnólia. O fogo chegou aos bombeiros, que assistiram sem acreditar enquanto seus caminhões e sirenes derretiam, ironia regada a gasolina. O fogo chegou a praça, fez da estátua um amontoado de bronze fundido.

As pessoas correram. Viram tudo virar cinza lentamente. Cada tijolo, cada quadro na parede, cada jardim bem cuidado. O delegado disse ter visto um sorriso enviesado em Magnólia quando ele se levantou para fugir do prédio. Disse que não teve tempo para libertá-la, que ficou desesperado. Que ela não queria ser libertada.

A cidade desapareceu. Não vão reconstruí-la, ouvi dizer. Não há dinheiro. Ninguém sabe o que fazer. A vida de cada um mudou. As diferenças entre eles não significavam mais nada. Todos se uniram a Magnólia. Todos se uniram em seu funeral. Todos lembravam de como ela arruinara tudo. E por isso eles a enterraram com todas as honras. A cidade desapareceu. Cada um teria que viver uma nova vida. Começar de novo. E a cada cinco pensamentos, cinco eram sobre ela. Magnólia reinava soberana sobre seu povo.

Eu deixei a foto sobre a grama. Uma foto antiga, porém não desbotada. Olhei ao redor e o céu de aço ainda estava lá, perene. O mundo particular de todos nós mudara de um jeito tão permanente... E eu só conseguia pensar que eu nunca entenderia toda essa história. E que nunca saberia contá-la como Magnólia merece.



segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Magnólia - Parte III




"Sabe quando você espera aqueles minutos intermináveis no banho até o condicionador fazer efeito? Desde Helena, isso foi a minha vida. Esperar por alguma coisa. E esperei pacientemente que tudo acabasse. Com um trabalho miserável eu aprendi que é fácil ser medíocre. O trabalho repetitivo faz você esquecer do tempo. Anos passam em segundos. A cada semana eu perco sete dias. Foi assim que a maré me levou.

E velejando pela espera, alguma coisa chegou. Começou com um enjoo. Engoli comprimidos e achei que tudo estaria resolvido. Os meses continuaram passando. E aquele menino novo das aulas no laboratório sempre ficando depois do horário. Sempre fazendo perguntas. Sempre perto demais.

Em uma tarde gelada, quando eu esvaziava tubos de ensaio perdida entre pensamentos do passado, ele veio. Achei que tinha ido com o resto dos meninos da classe, mas surgiu como uma sombra pelas minhas costas. Senti as mãos dele subindo pelo jaleco, tremendo. Fiquei sem reação. Quis gritar, mas não gritei. Seguindo o comportamento de sempre, esperei. A textura dos dedos dele subindo pela minha coluna fez a pele se arrepiar. Então, tudo ficou violento. De um jeito que me fez rir como em outros tempos. Os lábios correndo pelas minhas coxas. Respiração ofegante pelas costas. Cada vez mais fundo...

A dor se misturou ao prazer. Gritei, ele fugiu. Pobre menino, achou que ele tinha sido o causador daquilo. E por um momento eu também pensei. Mas o sofrimento continuou. E dias depois da aventura, o sangue ainda escorria de mim. Resolvi que era hora de fazer aquilo parar. Tinha descoberto uma fagulha de algo bom depois de anos e anos. Só que os problemas têm pressa, não esperam o dia da consulta. Um desmaio me levou ao hospital primeiro.

O médico não foi delicado. E eu não teria me incomodado se aquela notícia viesse em outra época. A doença já havia se espalhado. Começou no colo do útero. Logo ali, onde um dia o amor se escondera. Voltei pra casa. Tinha pouco tempo. Alguns dias, talvez. E tudo mudou. Logo agora. Não. Não sem correr de novo. Não sem fazer isso tudo pegar fogo. Como ela. Como ela na minha cama. Como o menino. Não. Agora não. Eu vou fazer as coisas serem as mesmas de novo. Eu vou chutar o saco do mundo. Eu vou ser de novo a Mag daquele tempo! Vou voltar pra minha cidade e fazer tudo aquilo queimar com diesel por cima.

Já que precisa terminar, é melhor que seja com um pouco de estilo."

Stop. Acabou a fita. Na TV, um helicóptero mostrava o incêndio em algum lugar ao sul. Ela havia começado, pensei eu. O mundo agora iria arder.



sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Distâncias




Às vezes é bom quando ela não tá aqui. Eu tenho tardes inteiras pra ver TV, me encher de porcaria e estragar meu apetite. Posso correr pelado pela casa sem me preocupar com reprimendas sobre resfriados. Posso descer até a portaria e pegar o jornal de roupão. Judiar das cordas do meu violão e fingir que sou um rockstar sem escutar comentários como "prefiro ouvir Jota Quest que isso". Dá pra jogar videogame por horas, esquecer da louça suja e das roupas pra pegar na lavanderia.

Às vezes é bom quando ela não tá aqui. Saio com hordas de amigos idiotas, falo besteiras por horas. Jogo futebol com a rapaziada até alguém resolver descontar sua raiva no meu joelho lesionado. Reclamo da vida assistindo jornal, reclamo quando o jornal acaba porque tem novela e reclamo porque essa novela que vai passar não é tão boa quanto Rei do Gado. Escondo fotos vergonhosas da infância e adolescência, especialmente aquelas em que a puberdade me fez parecer um alienígena que parou na terra pra tomar uma Coca.

Às vezes é bom quando ela não tá aqui. Assisto Naruto até acreditar que tenho habilidades ninja. Exceto a habilidade ninja de sumir na fumaça. Essa eu já tentei e não funfou. Vou fazer compras, viver a vida de um cara comum morando sozinho. Como só o recheio do biscoito. Sento na praça pra escrever. Faço planos pra um incrível roteiro de curta-metragem que nunca vai ficar pronto. Não perco meu tempo tentando convencer alguém a abandonar o secador de cabelo no meio da estrada. Não passo protetor solar. De propósito.

Às vezes é bom quando ela não tá aqui. Mas é sempre melhor quando ela está.



segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Magnólia - Parte II




Enquanto o vento batia no meu rosto, eu lembrava do dia em que a vi pela primeira vez. Eu estava exausto e suado, no segundo lance das escadas, acompanhado de dois caras do serviço de mudança e com o encosto do sofá cobrindo metade da minha cabeça. O olhar tímido dela espiava através da fresta da porta, entreaberta apenas alguns centímetros. Só percebi que estava sendo observado quando descarreguei o sofá na porta do apartamento. Quando olhei pra fração do rosto que me fitava, não soube o que fazer. Situação estranha, pensei, enquanto a encarava. Achei que a intimidaria. Mas ela não desviou o olhar.

- Entrei em casa rápido e fechei a porta, por via das dúvidas - falei, perdido em pensamentos enquanto olhava pela janela.
- Como é? - me perguntou o taxista que me conduzia estrada a fora. Ele me encarou por algum tempo, esperando resposta.

Contudo, mal ouvi. Continuei olhando pela janela. O pensamento bobo ainda dominando minha mente.

***

Uma semana depois de ter me tornado vizinho dela, tive uma certeza. A pessoa que morava ao meu lado tinha a vida tão silenciosa quanto possível. Eu podia ouvir o vizinho de cima gritando nos jogos do Flamengo. Podia ficar uma noite inteira acordado com a vizinha de baixo fazendo faxina de madrugada. Porra de enceradeira barulhenta. Contudo, nem um pio da moça ao lado. Fiquei curioso. Quem sabe ela não é uma serial killer? Ou traficante? Ou, muito pior, uma dessas pessoas que chamam a polícia quando você faz festa?

Quase dois meses depois, quando eu chegava em casa de madrugada, vi uma sombra que entrava no prédio, cambaleante. Desapareceu no elevador de serviço antes que eu chegasse perto. Ao chegar no meu andar, me assustei ao encontrar com a pessoa misteriosa ao lado da minha porta. Era ela, minha vizinha. Estava usando uma capa de chuva enlameada sobre a roupa. Na mão esquerda, uma chave quebrada. Vi um filete de sangue que escorria pela lateral da mão, vindo de dentro da manga. Estava exausta, como se tivesse disputado uma maratona. Mal se aguentava em pé. Sorriu pra mim.

- Não conta pro síndico, vizinho - ela pediu.
- Ahn... contar o que, moça?
- Que eu fiz o barulho enorme de madrugada.

O maxilar dela cravou no rosto enquanto ela rangia os dentes de raiva. Deus sete passos pesados e agarrou o extintor de incêndio no corredor. Voltou correndo, extintor agarrado sob os braços. Com uma única pancada violenta, usando o extintor como ariete, estraçalhou a fechadura da própria porta. O barulho, as lascas de madeira voando, a surpresa... tudo me deixou atordoado. Ela soltou o pesado extintor no chão, sem nenhuma cerimônia, completando a cena. Entrou no apartamento e me deixou parado na entrada, com cara de paspalho. Pisquei e, uns bons trinta segundos depois, fui atrás dela.

A sala de estar dela parecia ter sido atacada por bárbaros visigodos. Tudo estava meticulosamente destruído. Fiquei em dúvida se o sofá havia sido queimado antes ou depois de terem o partido ao meio. Cacos de vidro forravam o chão. O furacão Katrina teria muito o que aprender se visse aquela bagunça. Em cinco minutos ela voltou de um dos quartos com um vidro de álcool. Não pareceu surpresa por eu ter entrado. Tinha um revólver enorme na mão esquerda, aquela que pouco tempo atrás segurava uma chave quebrada.

- Eu te convidaria a sentar, mas não tenho mais sofá e estou de saída.
- O que aconteceu aqui?
- Decidi me mudar. Toma, você pode escutar agora, se quiser - disse, colocando uma fita K7 no meu bolso.
- Que é isso?
- Você ainda não tinha nascido quando inventaram a fita K7? Pra fora!

Ela me escoltou até a porta de entrada enquanto despejava um líquido de cheiro forte no chão. Pegou o extintor de incêndio ao sair e o colocou nos meus braços.

- Isso tudo tá muito doido - eu disse, novamento com cara de paspalho.
- Sabe o que tinha nesse apartamento? A chama de uma vela.
- Achei que era você, morando e pagando IPTU.
- Não! Eu sou fogo de artifício! - gritou, desesperada, a cinco centímetros do meu rosto.

Acendeu um isqueiro e o jogou lá dentro. O fogo começou instantaneamente, ela começou a ir embora. Caminhava calmamente, com aquela arma prateada apertada na mão que pingava sangue.

Os bombeiros demoraram a chegar, apaguei a maior parte do fogo sozinho. Os policiais ainda me seguraram durante uma hora inteira com perguntas para as quais eu não tinha resposta. Quem era ela? Como você mora aqui há dois meses e nunca a viu antes disso? Por que você torce pro Palmeiras? Sentei numa cadeira, cansado como nunca. Lembrei da fita K7. Demorei uma boa meia hora pra encontrar um walkman velho pra escutar aquilo. Antes de apertar o "Play", percebi o silêncio. Todos tinham ido embora do apartamento carbonizado ao lado do meu. Fui para o corredor e olhei pela porta entreaberta da minha ex-vizinha. Apesar do sol nascendo, lá dentro só havia o preto deixado pelas chamas.

Durante quase dois meses eu morei ao lado de uma sombra. Trancada dentro do apartamento ao lado durante a maior parte do dia por sete anos, os outros vizinho disseram. Tomava conta do laboratório de uma escola pela manhã, três horas de trabalho. Nunca recebeu uma visita. Nunca falou com nenhum vizinho. Não lembravam o nome dela. Matilde, parece. E ela se transforma em uma mulher fatal, armada e destruindo o apartamento. Tudo lá dentro perdido, com a exceção de uma foto que eu roubei. A única coisa intacta no meio do caos.

Por via das dúvidas, fechei o que sobrava da porta dela. E comecei a ouvir a fita.


segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Magnólia - Parte I




Ela tinha uma foto sobre a cabeceira da cama. Antiga e desbotada. Ela, não a foto. A foto ainda era jovem como um dia ela fora. Um par de sorrisos à beira do rio. Pés descalços, grama na saia. Gostava de me dizer que o dia daquela fotografia valera pelo resto de sua vida medíocre. E eu, bom, eu tenho que concordar que havia muita mediocridade nos dias de Magnólia. Ela era uma estrela apagada, vivendo de lembranças. Até aquele dia, com gosto de pólvora e álcool. Dizem que o último suspiro de alguém pode ser uma chama de uma vela ou fogos de artifícios, nunca um meio termo. Ao encarar a foto, escutando as notícias daquele dia louco pelo rádio, eu sorri. No fim, Magnólia foi tudo... menos medíocre.

***

Não se pode esperar muito de alguém com o nome de Magnólia. Um nome talhado para alguém que será tia e não muito mais que isso. Contudo, ela não era mulher de se entregar ao destino e, ainda jovem, resolveu que o mundo gritaria seu nome com respeito antes que a vida a deixasse. E começou bem. Apaixonou-se pelo enamorado ingrato, o gosto pelo errado. Seu pai, dono de um grande engenho de açúcar, a ensinara a manusear as engrenagens que conduziam seu pequeno império. Um tiro no pé.

Aos doze anos de idade, a habilidade dela fez nascer um mercado clandestino de cachaça na escolinha onde estudava. Ela fez a aguardente ferver o sangue dos novos. E ria com os adolescentes bêbados, futuros alcoólatras moldados por suas mãos macias. Berravam "Mag, desce uma! Porra, menina, desce logo todas!". Assim ficou conhecida na cidade. Mag "Desce Todas". Um nome de quem não vale nada, você tem que concordar. Assim foi o começo.

Aos quinze, colecionava escalpos e delitos. Vandalismo, agressão física, pequenos furtos. Uma lenda urbana diz que ela roubou todos os cones de trânsito da cidade em uma única noite. O pai empresário ainda tentava salvá-la do precipício pagando multas e fianças. Não daria certo. Alguma coisa em Magnólia não deixava a poeira se assentar. Ninguém conseguia enxergar além de sua superfície turbulenta. Ela só se agitava, desesperada, contra as pessoas em volta. Tudo o que conseguia dizer sobre si era uma frase difícil de decifrar.

- Eu tenho amor demais - falava, transpirando intensidade e sorrisos.

Quando completou dezessete, o amor venceu. Ela se apaixonou pela segunda vez, ainda com o fogo pelo errado dentro de si, por uma moça das delicadas. Helena, nenhum apelido, nenhum passado conhecido. Papai se cansou de Mag e a mandou pra fora de casa. Mamãe, lá no Céu, não podia ajudar. Então ela construiu o que pôde, sozinha. Elas viveram juntas perto do pequeno rio de águas turvas da cidade durante um ano inteiro. Compraram um terreno barato. Levantaram uma casa feita de um único cômodo. Encheram tudo com o amor que transbordava do corpo. Tiraram fotos. Muitas. Tantas que as paredes não precisaram ser pintadas. As imagens cobrindo cada centímetro. Exposição. Grãos de prata. Grãos de areia do rio. Pés descalços. Grama na saia.

Mag "Desce Todas" virou caixa de supermercado. Suava pra ganhar o seu salário em comida, que carregava pra casa ao fim do dia. Helena tentava ser fotógrafa, luta pesada para uma menina orfã que vivia da pensão de um salário mínimo paga pelo governo. Ela só tinha mais um ano até a fonte secar, completando 18. Quando criança, chorava pela mãe. Entendeu que chorar não resolvia. Morou em todos os lugares sujos do estado até parar naquela cidadezinha. Tirou sua primeira foto de Magnólia quando ela atravessava a rua em sua direção. E finalmente conseguiu seu primeiro lugar limpo no mundo. Uma quitinete no coração de Magnólia. Era o bastante pra ela. Ali, cavou sua cova sem saber.

Ao chegar do trabalho, Mag só percebeu o barulho das sirenes ao ver o grande caminhão vermelho do corpo de bombeiros estacionado de qualquer maneira sobre a grama. Caminhava pensando na noite que teria com sua pequena. Trabalhando em dois turnos, o patrão concordara em dar a ela um emprego de verdade. Pago com dinheiro! Tudo estaria resolvido pelos próximos meses. O caminhão a tirou do devaneio junto a uma lufada de calor, carregada pelo vento. Os bombeiros chegaram tarde, o trabalho era para evitar que o fogo se alastrasse. O desespero de Magnólia não deu nenhum resultado. O bombeiro a segurou com facilidade pelos ombros.

Fora tudo muito rápido. Uma chama e a casa virou uma labareda em menos de um minuto, o bombeiro disse. Havia uma quantidade incrível de nitrato ali. Os filmes fotográficos. E muito papel também. As fotos nas paredes. A vítima não conseguiu abrir a porta, o calor derreteu a maçaneta. Provavelmente ela estava dormindo quando começou o fogo. Fora tudo muito rápido. Um incêndio na beira do rio, comentou ele. A vida adora a ironia.

Magnólia olhava para a margem enquanto sua dor rugia nos braços do bombeiro. O reflexo do fogo tingiu as águas de laranja e vermelho. O lugar em que antes tinha amor foi arrancado do peito dela. O coração de menina se perdeu de vez. Ela se acalmou aos poucos, mas o bombeiro não a largou. Olhou nos olhos vidrados daquela criatura em seus braços e se sentiu perdido. Quanto a Magnólia... Por mais que ela tentasse ver beleza naquelas águas púrpuras onde seus olhos se perdiam, só enxergou sangue espalhado pelo rio.


sexta-feira, 29 de julho de 2011

[Info] Experiências do Doca

Juventude promissora, tenho um recadinho pra quem acompanha o blog. A partir desta segunda-feira, dia 01/08, vou inciar a publicação de um conto maiorzinho. Um desses contos bem nutridos, sabe? Que tomaram Sustagem quando eram criança: http://goo.gl/Ttv8W

Os dois contos publicados aqui (Três Nomes e Meio Meire) me fizeram gostar da ideia, daí a experiência com textos maiores e publicados regularmente. O conto será dividido em 4 partes, que serão publicadas sempre nas segundas. Se der certo, a gente vai tocando a carroça.

Enquanto isso, as crônicas vão continuar pipocando, conforme eu parar com essa mania horrível de abandonar tudo na pasta "A ser revisado" do meu PC. Ando deixando meus leitores meio largados, vou botar ordem aqui. Vou bater na cara deles com livros de Euclides da Cunha, pra ver se a cultura entra através do traumatismo craniano.

Quer moleza, senta no pudim. Bom final de semana!

domingo, 10 de julho de 2011

Algumas mensagens com "mention" no twitter, acho estranho. Dou uma olhada, leio de novo, com atenção. Entre as mensagens, gente que eu nunca vi na vida dizendo que é meu fã.

"Tá errado", eu pensei primeiro. Eu? Não. Fã é coisa do Fiuk. Eu tenho uma coisa bem melhor. Leitores! Gente que realmente parece gostar do que eu faço. Pessoas dando F5 diariamente no blog pra ver se eu escrevi de novo. Alguns que se dispuseram a divulgar o que eu escrevo. Nada em troca. Prazer em espalhar minhas palavras. Só. Sem gritinhos histéricos.

Fiquei feliz, uma felicidade boba que eu não conhecia. Eu me acostumei a escrever pra dentro e passei a publicar por incentivo de uma grande amiga e minha primeira revisora, Ana Paula Bessa. As palavras que aqui estão são, antes de qualquer coisa, um esforço dela.

Esse post é um agradecimento a estes que me fizeram soltar minhas palavras aqui.

Agora... Se alguém perder o próximo episódio de "Cordel Encantado" pra ler alguma coisa aqui, pode se preparar pra levar soco na cara!

Hoje vai ter um baile bom

Alex vinha descendo pela rua quando eu o encontrei. Andava macio, sorria. Quando eu perguntei o que tinha acontecido, ele só me disse que:

- Hoje vai ter um baile bom.
- Mas isso lá é motivo pra ficar feliz, camarada?
- E você tá me dizendo que não é?

E foi-se embora, me deixando com a pergunta latejando na cabeça. Hoje vai ter um baile bom. É, dá pra ser feliz. Numa mesa da padaria onde amanhecem meu cafés-da-manhã, entreouço uma conversa.

- Soube que a Taís tá namorando outro cara. Sinto muito, Chico.
- Ué, por que? Essa notícia é muito boa! Eu só desejo felicidades pra ela. Agora, apesar de ser Chico, não sou Xavier. Deixa ela seguir com a vida. Deixa a falecida em paz.

Sorri pois, apesar do Fá bemol de surpresa na voz dele, senti sinceridade. Consigo contar nos dedos quem realmente ficaria feliz com a notícia de um ex-alguma-coisa com outra pessoa. As mágoas do término costumam ser o suficiente pra esquecer o que já existiu de bom. É mais fácil deletar alguém que encarar os erros. Aquele Chico tem minha admiração. Ele merece um baile bom.
Um amigo me liga perguntando quando vai ser o campeonato de futebol da rapaziada dos tempos de faculdade:

- Esse final de semana, velho. Vai participar?
- O que?! Eu vou deixar de ir pra Bahia com minha namorada! Não perco esse campeonato por nada. Dessa vez o Sassá vai ser campeão!

Na segunda partida do campeonato eu tive uma luxação no joelho, ele tá inchado e eu tenho que mancar pra conseguir fazer parte da sociedade. Ainda tá doendo pra cacete, mas fiquei feliz por ver o time inteiro jogando (mal) com prazer. Um bando de pernas-de-pau rolando tanto quanto a bola. Se divertindo que nem criança no parquinho. Aquele foi um baile bom.
Vi um cara emocionado na fila do caixa do supermercado outro dia.

- Olha só! Achei a trilogia De Volta Para o Futuro, completinha! Custando só quinze reais cada DVD. Puxa vida! Minha mulher não vai acreditar, a gente se conheceu vendo esse filme.
- Ainda tem dele lá? - perguntei.

Fiquei tão feliz pelo cidadão que fui lá e comprei o primeiro DVD, De Volta Para o Futuro 1, com uma foto bizarra do Michael J. Fox na capa. Quantos bailes eles dançaram depois do primeiro beijo? Quantos filhos eles tiveram por conta desse filme bacaninha do Spielberg?

Quero encontrar o Alex. Dar um puta abraço nele, contar das coisas boas que tô fazendo. Que meu coração tá indo muito bem. Que tô escrevendo muito, voltando a desenhar. Que tenho ajudado meus amigos a conquistarem sonhos. Que a felicidade é uma bola de gude, quicando na frente da gente e tudo o que você precisa é saber prestar atenção na beleza das coisas pequenas. E que hoje vai ter um baile bom. Qualquer dia é dia de um baile bom. Que tô sentimental e não sei se isso é ruim.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Boxer, boxes




Eu acordo de um sonho ruim e descubro que teria sido melhor ficar nele. A vida tem desses momentos, só luto pra que eles sejam minoria. Ao meu redor, várias caixas empilhadas. Dentro delas, minha vida inteira. Embalada pra viagem. Claro que é bem bizarro saber que tudo o que você tem, tudo o que você foi, é, ou será cabe dentro de abas de papelão. Contudo, o problema mesmo é não ter aonde ir com sua vida empacotada. Só existe saída de emergência, nunca uma entrada. Algo para o qual você vai ter que se preparar se quiser ser gente grande.

***

Tudo no boxe é ao contrário. Bases trocadas, peso e sobrepeso, equilíbrio sem centro de gravidade. Essa é a mágica da luta, um feitiço que aprendi com socos na cara. Dando e levando. Meu lado brigão já teve seus momentos e, embora não me orgulhe deles, não posso negar que me ajudaram a entender muito sobre eu mesmo. Aprendi o bailado brutal da violência, senti até onde meu corpo aguenta. É bom saber que você não é de vidro. Dá pra levar uns sopapos e sair inteiro. Além do mais, essas coisas são um atrativo pro mundo.

As pessoas adoram violência, verdade seja dita. Você vira a cabeça pra checar de perto um acidente na pista, procura pelos corpos ou vítimas. Compra ingressos pra filmes de terror. Paga o pacote première pra ver o UFC. Entretanto, conheço poucos que teriam colhões para entrar em uma briga de verdade. Um pouco pelo medo da dor, mas acho que principalmente pelo respeito. Brigar é uma questão do respeito machista. Você toma o respeito para si. E tira o respeito do outro cara.

***

Passei a mão pelas fotos antigas no topo da caixa. Nas minhas mãos com cicatrizes curtas tem um dom adormecido de capturar momentos. O sorriso da Talita. Deco chutando uma lata sobre os trilhos. Ruas de Pirenópolis, o mar do Rio à noite enquanto eu navego pra Niterói. Inri Cristo passeando pelos corredores da UnB.

Um pino de trava de carro em contra-luz que consegue representar todos os meus medos. Minhas imagens, todas elas. Quando eu tinha oito anos e estava pra fazer nove em uma festinha de aniversário da escola. Uma garota loira dormindo com tanta serenidade que o próprio céu racharia ante sua graça. Meu primeiro carrinho de rolimã. O dia em que passei no vestibular. Tudo enrolado em fita crepe. De mudança pra qualquer lugar.

***

Uma vez eu levei um soco tão forte nas costelas que duas delas fissuraram no ato. Eu mal conseguia respirar, a dor dilacerou meu raciocínio. Eu tinha tudo pra perder aquela briga. Meu adversário era maior, mais forte. Eu era mais rápido, mas em uma luta tudo o que conta são os três segundos. O tempo de uma defesa e um contra-ataque. "Se você não consegue derrubar um oponente mais forte que você nesse tempo, corra", me ensinaram. Não tinha pra onde correr.

Eu já tava lá, como um saco de pancadas, com meu corpo derrotado e esperando pra me afogar em uma poça do meu próprio sangue. Eu sobrevivi porque no segundo ataque dele eu estava melhor posicionado e ainda respirava. Em três segundos, com ombro e cotovelo deslocados, ele estava derrotado. Venci uma briga e me senti pronto pra qualquer batalha da vida. Porra, como eu era ingênuo.

***

Nas minhas caixas eu tenho um urso de pelúcia com uma fantasia de pintinho de pelúcia. E, por mais idiota que isso seja, por mais infantil que pareça, eu adoro ele. Pinturso. É o nome dele, Pinturso. Ele tem o corpo todo de pintinho, amarelo e com uma gravata. Pés de pintinho. Mas a cabeça é de urso. Com um capuz de pintinho que completa a fantasia. Disfarce perfeito. Toda vez que olho pra ele, rio como um mongol. É um urso fantasiado de pintinho! Cada um com suas loucuras. Tem gente que coleciona tomadas. Eu acho o diabo do ursinho hilário. Não me julgue.

Eu tenho uma corrente de prata que me lembra tanta coisa boa que eu prefiro mantê-la guardada. Bobagens que a gente faz podem estragar os dias bonitos que passei usando esse troço. Quem é mais idiota? A supertição ou o homem que se deixa dominar por ela? Tirei da pequena caixa onde a mantinha protegida. A corrente e a lembrança. E deicidi que vou usar essa porcaria enquanto eu me sentir bem com ela. Por às vezes a gente precisa gritar "Foda-se!" por mundo. E sussurar "Foda-se!" pra nós mesmos. Enrolei a corrente em volta do pescoço e fiz as duas coisas, quase simultaneamente.

***

Eu não sou tão durão quanto já fui. Sei disso muito bem e meus óculos de nerd não me deixam mentir. Eles até me disfarçam, assim como o Pinturso. É com um riso escondido que vejo muitos me olharem como se eu não aguentasse um tapa sequer. Não me incomodo, contudo. Eles não fazem ideia, penso aqui, com meus botões. Deixei a vida de mãos inchadas e curativos na gaveta há muito tempo. A vida pode te socar muito mais forte que qualquer babaca marombado. Preferi me preparar pra aguentar esse tipo de porrada e, até agora, ainda estou de pé. Minhas palavras, minhas imagens, minhas caixas. Eu sou uma mistura de tudo isso agora. Mas ainda me lembro. Me lembro bem dos dias selvagens.

Tudo no boxe é ao contrário. Às vezes, o melhor jeito de encaixar o soco demolidor é dar um passo pra trás. Contudo, se o passo for longo demais... Você está só fugindo da briga.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

vontade de:

Eu tenho vontade de compar um galo e batizá-lo de Horácio. Cansei do meu despertador.

Eu tenho vontade de beber o vinho do padre pra ver se é porreta ou não.

Eu tenho vontade de bater na bunda de quase toda mulher que eu conheço, confesso. Isso não é desrespeito, pelo amor de Deus. Respeito o pandeiro alheio, pode confiar. Mas acho engraçado por natureza a ideia de um tapa na bunda. Como até agora não fui preso, você sabe que eu seguro essa vontade.

Eu tenho vontade de acender vela pra poder apagar com o dedo.

Eu tenho vontade de ir enrolado na coberta pra qualquer lugar em que eu precise ir pela manhã.

Eu tenho vontade de construir um toboágua que me leve do trabalho pra casa.

Eu tenho vontade de ter o par de pernas dela subindo pelas minhas toda manhã. E sei que você tem vontade de saber quais pernas são, mas não tenho nenhuma vontade de contar.

Eu tenho vontade de construir um túnel de fuga.

Eu tenho vontade de roubar o papagaio gigante da Petrobrás em algum posto de gasolina.

Eu tenho vontade de sentar no Dom Francisco, olhar no olho do garçom, pigarrear e dizer com um sotaque cearense "me veja aí um BigMac que hoje eu tô pra matar um jagunço de fome!".

Eu tenho vontade de deixar o meu cabelo crescer, mesmo sabendo que, a cada dia, eu teria vontade cortar tudo porque cabelo grande me dá agonia e não tem nada a ver comigo.

Eu tenho vontade de comprar uma impressora que funcione só pra imprimir meus textos e depois queimá-los com conhaque e ao som de Maria Betânia. Daria um tom mais dramático à minha literatura de boteco.

Eu tenho vontade de parar de ser sem-noção, porque isso deixa muita genta puta comigo. Com razão. Mas daí eu seria uma pessoa mais triste, já que ser sem-noção é a minha principal fonte de alegrias e histórias.

Eu tenho vontade de ter um galo chamado Horácio. Já falei dele?

Eu tenho vontade de melhorar o HD do meu cérebro porque esqueço completamente de coisas da minha vida, coisas que fiz, coisas que falei. Isso sem nunca ter usado nada além de altas doses de jujuba.

Eu tenho vontade de apertar bebês e abraçar velhinhos.

Eu tenho vontade de Nicole, sentada ao meu lado no alto da Cidadela em Budapeste, falando sobre as coisas simples e adoráveis, rindo de mim, explicando suas teorias a respeito de musicais e cinema. Me fazendo sentir uma saudade esmagadora de tudo o que ainda não aconteceu comigo. Me fazendo saber que sentiria saudade daquele momento pra sempre.

Eu tenho vontade de não me sentir como um balão de festa furado quando me decepcionam.

Eu tenho vontade de ser organizado. Não aguento mais escrever na mão pra lembrar das coisas.

Eu tenho uma vontade irracional de contar piadas muito ruins mesmo sabendo que são ruins. Mas essa vontade não conta porque isso eu faço todo dia.

domingo, 29 de maio de 2011

O primeiro




Tem um pedaço da vida do Juca que preciso dividir com vocês. É claro que o nome dele não é Juca. Seria idiota. É um pseudônimo. Aprendi essa palavra na 7ª série e sempre quis usá-la.

***

Ela deitou no ombro do Juca, as mãos se entrelaçando nas dele. Era uma coisa boa, tranquila. Caetano já tinha deixado de cantar, agora era a vez do Moska. Conversavam sobre tudo e nada. O pobre rapaz tentava mostrar um pedaço de sua vida através das histórias de infância, aquelas que sempre permeiam ficção e realidade. Ela entrava, uma passada cautelosa atrás da outra, dentro do mundo particular do Juca. Faca de dois gumes. Juca abria um pouco das cortinas do mundo dela também, um mundo sempre discreto. E adorava saber um pouco mais. Um encantamento de se sentir importante por alguém te contar algo importante de sua vida, sabe? As pequenas vitórias da confiança, da conquista.

Ele moveu o rosto quase sem pensar e pensando muito. Cada lado do cérebro em um estado de frequência. A boca procurou a dela, devagar, depois veio o ímpeto. Ele o segurou, com dificuldade. Têm uma coisa com beijos que o Juca ainda precisa aprender. Entender a força que pode correr da alma a eles. Ela sai fazendo festa, empolgada pelos lábios, sem se preocupar com uma possível torcicolo. Não sei com você, mas se eu não seguro, não sei onde vai parar. Mas não daquela vez. Não. Juca venceu o ímpeto. Tá, parcialmente. Ele me confessou que precisou de um Dorflex depois. C'est la vie.

Ela levantou o rosto, moveu o corpo pra mais perto do dele. Vagarosa, tímida, decidida. A tensão transpassava a pele como uma onda revoltada, ele conseguia sentir os músculos hesitarem. A ponta do nariz dela passeando pelo seu rosto. Uma provocação. Com um sorriso, ele a beijou, deixando a alma seguir seu caminho.

Daí você me pergunta "o que veio depois?". Ah, o depois é só o depois. Nem mais e nem menos, apesar da felicidade do Juca ser pálpavel. Outra parte da história que provalvemente não foi escrita ainda. Normalmente o primeiro não define rumos ou determina o depois. São amigos. Eles se cumprimentam com aperto de mão secreto, assistem futebol de domingo juntos e oferecem serviço de carreto na hora da mudança de casa.

E, pricipalmente, lembram um ao outro das datas de aniversário. Foi no dia 26 de maio, Juca. Sei que expus um pedaço da sua vida aqui, mas releve, vá! Este post vai salvar sua vida uma dia. Amém.



quinta-feira, 19 de maio de 2011

Edital de Expectativas

Eu odeio as minhas expectativas. Com muita força. Sempre que elas brotam, começo a ficar nervoso e com medo. Aquele medo do "e se não der certo? vale chorar?" que nasce perto do umbigo da gente. Ou perto do meu, pelo menos. Minha ansiedade é toda feita de barriga. Acabei dando um jeito de vencê-la longo do tempo. A ansiedade, não a barriga. Foi um trabalho longo e cansativo, aos poucos o meu auto-controle acabou suprimindo esse pedaço da vida que eu, você e todo mundo no mundo têm. Com exceção dos japoneses, claro, porque os japoneses são meio humanos, meio origamis.

Mas sabe o que realmente me deixa possesso sobre as minhas expectativas? A falta que elas fazem. Uma vez me disseram que as expectativas eram o começo dos sonhos. Eu não entendi na hora, como nunca entendo. Meu cérebro funciona como uma repartição pública: de repente, um arquivo empoeirado é redescoberto e tudo passa a fazer sentido, com pelo menos três vias autenticadas. Precisei conversar até às 3h00 com uma estrela pra fazer uma faxina na minha cabeça e achar essa frase dentro de mim. Depois que a estrela me deixou em casa pra dormir e foi pilotanto seu Corsa prata pelo céu, coloquei tudo no lugar.

Quando sinto que estou domando minhas expectativas, meu sonhos começam a morrer, me dei conta. Fingir que não quero tanto assim acaba por deixar tudo no cinza. Acaba por fazer eu realmente não querer tanto assim. Bobo, mas tentando me proteger do ruim acabo por me proteger do bom também. Não adianta eu me esconder debaixo do escudo. Sofrer faz parte da vida, não é? Porra, nessas horas eu me dou conta de que eu tenho muito o que aprender ainda.

E eu que tava me achava maduro. Vou precisar fazer um novo concurso público de neurônios pra consertar as coisas.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Meio Meire




Como sempre, vinham os quatro descendo a rua. A mesma rua de sempre, os mesmo quatro de antes, na mesma ordem. César, Gustavo, Felipe Mosca Morta e Beto. César, mais novo porém mais alto, tomava ares de líder da turma. Mera vaidade dele, coitado, pois quando se têm oito anos o único líder respeitado é o cinto do pai.

Quando eles fizeram a curva da esquina, estacaram. Os quatro, em fila, parados e olhando, lembravam algum episódio antigo de Os Trapalhões. Contudo, a cena que observavam não era cômica. Seis passarinhos mortos no chão, com os pescoços virados. Os seis passarinhos que eles criaram durante todo o ano. Pequenos filhos nascidos de uma ideia ingênua do Felipe Mosca Morta. Enquanto a imagem era gravada a fogo nos corações dos meninos, Beto intimamente descobriu o criminoso que destruíra a maravilha criada por eles. Os outros ainda absorviam a dor, ele já se preparava para vingança.

***

"Eu duvido que gente consegue criar passarinho solto", disse Felipe em uma das manhãs a caminho da escola, observando os sabiás que cruzavam o bairro. "Gente grande ou menino?", emendou Gustavo, encarando Felipe com a firmeza de um boxeador desafiado para o combate. "Ué, gente. Não interessa se menino ou gente grande. Acho que gente nenhuma consegue criar passarinho solto", rebateu Mosca Morta. "Pois eu vou provar que cê tá enganado!", finalizou o outro.

No começo, ninguém levou a coisa toda muito a sério. Gustavo sempre foi teimoso e, mesmo em uma turma de garotos de oito anos, ninguém dá bola pros teimosos. Contudo, você não tem alternativa quando alguém começa a viver por uma causa. Gustavo passou a gastar cada minuto do seu tempo livre na pracinha, tentando se aproximar dos passarinhos. Comia com pressa. Dormia com pressa. Brincava com pressa, e isso era o mais grave. Os meninos então foram ajudá-lo. Mais pra rirem da cara dele do que por qualquer outra coisa, é verdade. Só que, aos poucos, cada um entrou dentro daquele mundo. Não existe limites quando você é criança, contaram uma vez ao César. Ele só entendeu quando aquilo tudo começou.

***

Três meses, e nada. Eles já conseguiam chegar a um passo dos sabiás, mas nenhum deles sequer tocou um dos bichinhos. Um movimento a mais e pronto, voava. A impaciência virou frustração e Beto já tinha declarado desistência. "Desgraça! Já pulei a rampa do corguinho, já corri pela linha do trem de olho fechado e já comi hambúrguer vencido do McDonald's. Agora digo, pedi arrego! Porra de passarinho!", gritou ele, sob olhares de censura das pessoas que passavam pela pracinha. A maioria delas sentiu inveja, na verdade. Todas tinham tido vontade de pular a rampa do corguinho. Poucas tinham tido colhões para fazê-lo.

No ápice da agonia dos meninos, o improvável. Uma menina, leve e sorridente como só as meninas conseguem ser, andou entre eles. Com o brilho de Vishnu nos olhos, cada meio passo a um meio sorriso, brilhava. Muitos anos depois, quando Gustavo descobriu a palavra "estupefato", riu sozinho. Descobriu o nome daquilo que sentira ao ver Meire naquele dia. Ela parou em frente a ele, bagunçou-lhe o cabelo, esticou um dedo no ar, e recebeu um sabiá como hóspede.

Em quatro segundos, Meire conquistou o coração de quatro garotos. Quatro daqueles fiéis defensores na luta infantil contra as meninas. Uma cruzada que se desfaz, no máximo, aos doze anos. Quatro corações, e um sabiá.

***

Nos seis meses seguintes, eles aprenderam tudo com Meire. Hoje, quando pergunto, nenhum deles sabe responder exatamente o quê. Mas que aprenderam, não tenha dúvida. O primeiro passo era ser um sabiá. "Sim, você tem que ser um passarinho. Passarinho só é amigo de passarinho, ué", argumentou a menina-mestre. Agir como um passarinho, representar um passarinho, ser um passarinho. Cada um mergulhou dentro daquilo. Notas escolares despencaram. Treinos de futebol foram abandonados. Livros e mais livros sobre a vida dos pássaros foram comprados. Invenções começaram a ser boladas: formas simples e baratas de se fazer uma asa delta, tsurus gigantes de papel, ressuscitar um projeto antigo da NASA para construção de helicópteros com garrafas pet. Quando se é criança, não há limites.

Da primeira vez que Felipe conseguiu chamar um sabiá, achou que fosse sorte. Por um momento, não pensou que os meses de concentração tivessem tido resultado. Após fazê-lo voar e retornar para os seus dedos, deixou sua mente vagar pelos caminhos que insistem em chamar nossas mais belas obras de "mera coincidência" Até que sentiu, na ponta dos seus dedos, o coração do sabiá bater. Como uma metralhadora. Sentiu o seu próprio coração acelerar. Ele tinha um novo amigo. E esse amigo era um passarinho.

***

A vida deles tinha se transformado. Todos se sentiam distantes do resto do mundo, cabeças nas nuvens, acompanhando o voo de qualquer coisa que riscasse o céu. Aviões, passarinhos, helicópteros feitos pela NASA apenas utilizando garrafas pet. De uma forma muito diferente, se sentiam ligados agora. Os quatro faziam parte de um lugar secreto que ficava a vista de todos, na pracinha da rua onde moravam. Um lugar secreto que nascera dentro deles. Adotaram seis sabias, os seis que voavam naquela rua. Não eram posse, apenas amigos de tamanho reduzido, que se tronaram quase filhos com o passar dos meses.

Treinaram e treinaram. Conseguiam orientar os pequenos a realizarem manobras aéreas. Loops, inversões, parafusos, rasantes. O mundo era um céu aberto, e cada um deles se sentia um daqueles passarinhos. Suas almas estavam ligadas, compartilhava seus corpos e suas vidas com as vidas deles. Até que essas vidas foram interrompidas. Ironicamente, como a vida sempre é, foram as mãos que tudo ensinaram as responsáveis pelo crime. Meire, a garota encantadora e professora na arte de ser um passarinho, manchou suas mãos pelo mais antigo medo do mundo. O ciúme.

Beto jamais saberia que Meire tinha feito aquilo, não fosse pelo reflexo de seu relógio. Pelo pequeno círculo de vidro em seu pulso, ele conseguiu captar um olhar agudo da menina em direção a ele, enquanto segurava entre os dedos um dos sabiás. Se virou instintivamente, o sabia levantando voo, um pouco assustado. Sentiu a onda de fúria que emanava da menina. Não entendeu o porquê, claro. Apesar de ser um domador das almas que voavam, ele só tinha oito anos. Milhares de homens antes dele gastaram a vida tentando desvendar o coração das mulheres e nunca conseguiram. Pode acreditar, é muito mais fácil ser um treinador de sabiás que penetrar os segredos de uma mulher.

Meire descobrira como treinar passarinhos por instinto. Adorava tudo que fosse livre, pois ela mesma não o era. Era uma força presa no corpo de menina, o corpo preso à vontade de um pai que não tinha amor por ela, irmãos que a olhavam de modo estranho. Passava a maior parte dos dias longe de casa, uma casa ruída pela amargura de uma família que só existia enquanto a mãe dela vivera. Com a morte da mãe, morreram todos ali. Mas não Meire. Meire queria voar.

Ao ver quatro meninos empenhando suas vidas pelos que voavam, se empenhou também. Ficou curiosa, passou a observá-los de longe. Na época, nem ela sabia. Mas ali viu uma nova família. Uma família de pessoas que queriam se libertar do chão. Resolveu construir ali o seu lar. Entre os quatro ainda meninos, bobos, mas de peito aberto.

***

Passado o choque, Beto começou a caminhar. Os outros três ficaram ali, parados. Não tinham forças para nada. César ainda gritou por Beto, mas ele já estava longe. Estava com os pés atravessando a rua. Estava com o peito cheio de ódio. Estava com a cabeça em Meire. Caminhou por meia cidade até lembrar do lugar onde a tinha visto meses atrás. Ao voltar da escola, a encontrou no parque da cidade, correndo e cantando pelo parquinho, entre escorregadores e gangorras. Ele tinha ido até lá para conversarem, mas desistiu. Estranho. Eles eram tão ligados, mas por uma via de mão única: o lugar secreto dentro deles. Fora dali, eram estranhos. O mundo de Meire não pertencia a ele. Não o mundo de verdade.

A encontrou lá, no mesmo parque, sentada em um balanço. Olhava pra baixo, para as mãos. Se aproximou, a raiva se avolumando. O punhos se apertaram. Parou em frente a ela. Ela levantou a cabeça e o encarou.

Você nunca sabe tudo sobre si mesmo. Naquele olhar, essa foi a maior verdade que Beto aprendeu. Uma verdade que ele leva hoje dentro do peito. Dentro de Meire, ele viu o desespero de quem sabia o que tinha feito. Ele sentiu cada grama de dor que ela carregava. Ele se sentiu meio Meire, assim como havia se sentido meio passarinho. Seus punhos se relaxaram. Ele sustentou o olhar dentro da alma de Meire por mais uns segundos. Se virou e foi embora.

***

Depois daquele incidente, os amigos nunca mais foram os mesmos. Eles não tentaram treinar passarinhos de novo, então o mundo secreto dentro deles desapareceu. Nunca mais queriam sentir a dor de ter almas partilhadas desfeitas, destruídas. Permaneceram amigos até o colegial, quando o primeiro mudou de escola, Gustavo. Felipe deu um adeus quando seus pais decidiram ir para outra cidade. Beto foi fazer um intercâmbio e César ficou na cidade, mas se mudou para outra rua.

Gustavo hoje é piloto. Tenta imitar, com asas de metal, aquilo que conseguira fazer com seus sabiás. Entre uma e outra escala dos voos que faz, deixando passageiros e mais passageiros em cidade sem nome, ele lembra de como aprendeu a amar o céu.

Felipe Mosca Morta agora se chama Dr. Felipe Alcântara, biólogo. Passa a vida em campo, pesquisando a relação entre animais e seres humanos, o equilíbrio entre as espécies. Ele tenta desvendar a mágica de cada um dos seus dias de criança, mas já não acredita no sonho em que viveu. Nunca mais sentiu um coração bater como o daquele sabiá entre seus dedos. Nem mesmo ao se deitar, toda noite, sobre o peito de sua esposa.

César, o que era mais alto, continuou crescendo. Atletista, se especializou em salto com vara e hoje compete por seu país, pulando cada dia mais alto. Quando começou a treinar, seus pais não entendiam o porquê de tanta dedicação repentina aos saltos. A tentativa de alcançar o céu? Eles estavam todos completamente enganados. César não queria alcançar o céu. Ele só queria sair do chão.

Beto, só viveu a vida. Virou cineasta e aprendeu a encantar contando estórias, mas nunca a sua própria. Morava em um edifício alto, no último andar e, todo dia quando acordava, olhava para o horizonte, procurando os pássaros. Tentando se sentir novamente um pássaro. Alguma coisa ficou pelo caminho, ele sentia o buraco em seu peito. Pensou, várias vezes, em pular daquela janela para se sentir voando como aos oito anos. Mas não o fez. Casou, teve um filho.

E só entendeu o sentido da vida quando, ao desviar olhar de Meire, hoje sua esposa, viu o que seu filho fazia. Em uma pracinha qualquer da cidade, o garoto corria. Ele sacudia os braços contra o vento. Encarava o céu azul, aberto. E lá em cima havia um passarinho.



segunda-feira, 28 de março de 2011

Não de todo




Quatro dias dentro daquela cidade e Flávio não fazia ideia que o tempo tinha passado, um mundo mudado, chuvas caído. Quatro dias e Budapeste tinha gravado números, datas e estátuas no peito dele. Homem de poucas palavras, estava lá por estar. Procurando o que não se pode encontrar. Estava por estar como viva por viver. Minto. Flávio não era um homem de poucas palavras. Alguém com poucas palavras não pode ser um homem de todo.

***

Nathalia passou por Budapeste para visitar um amigo e acabou se perdendo de noite. Esbarrou com uma estatua engraçada e, no desespero de estar em um lugar desconhecido e escuro, riu.

***

Deixando os pés vagarem por Vaci utca, Flávio escutou um riso nervoso vindo da estatua do Homem no Patinete. Parou pra ver o que acontecia, espectador do mundo. Viu o que não queria ver, por comodismo da alma. Viu Nathalia olhar para ele com olhos de quem pede ajuda.

***

O homem estranho não disse uma palavra. Chegou junto a Nathalia e a tomou pelo braço, gentilmente, a conduzindo rua acima. O desespero virou duvida, Nathalia não sabia se chorava ou ria novamente. Estava no escuro, em um lugar desconhecido e sendo guiada por um homem mudo. O spray de pimenta preparado dentro da bolsa. O canivete suíço também. A tesoura de unhas já aberta. Mas a mão que estava dentro da bolsa segurava um cartão com nome e telefone para uso imediato, caso fosse necessário.

***

Flávio parou na entrada da Chains Bridge e se virou para Nathalia. Claro que não fazia a menor ideia de que ela se chamava Nathalia. Na verdade, não fazia a menor ideia do que estava fazendo. Só deixou os pés e mãos guiarem o resto do corpo. Abriu o seu mapa, tirou uma caneta do bolso e fez um circulo. entregou o papel pra moça, que teve o rosto iluminado pela gratidão. Agora ela sabia onde estava. Flávio havia matado a charada sem nem ter precisado usar os dois neurônios que ainda lhe restavam.

***

Nathalia rumou para a estação de trem com a câmera entre os dedos. Tinha tirado uma foto, de longe, do mudo que a colocara no caminho pra casa. Era um rosto simples e sem marcas, um rosto que facilmente seria esquecido. Ela não queria esquecer.

***

Flávio voltou para o hotel com o lábio tremendo. Queria ter dito algo, mas não sabia o que. Ele queria saber o nome dela, é isso. Tarde demais. Sua mente iria se encher com as possibilidades dos nomes para a mulher que o beijara em Budapeste. Sem nenhuma palavra. Ele iria imaginar nomes e nomes para a sua musa ate o fim dos seus dias.

Ao se deitar para dormir, ele só pode pensar que Chico tinha razão. Nenhum homem deveria deixar de ir e viver em Budapeste.

Infelizmente, Flávio não era um homem. Afinal, alguém com poucas palavras não pode ser homem de todo.


domingo, 20 de fevereiro de 2011

Valsa de Gil

Com uma caneta girando entre os dedos, Gil ainda caminhava. O sol despertava, mas a luz tênue não o acordava da semi-vida. Uma longa noite de insônia e peregrinação, como tantas outras. A cabeça pendia, a mente devaneando entre a caneta e o cansaço.

De repente e não mais que de repente, um novo cenário. Gil percebe, ao fundo da cena, uma armadilha da vida. Um casal de velhinhos, talvez não tão velhinhos, dançando pela quadra. Parecia ser qualquer coisa como uma valsa. Devia ser valsa. Afinal, velho adora valsa. E eles estavam, sem dúvida, adorando aquilo.

O rapaz ficou como estava, como um bobo, girando uma caneta na mão e olhando mais uma dessas cenas particulares da cidade que acorda. Você já passou por isso. Enquadrar um pedaço da vida ao seu redor. Compreender como é linda aquela fatia do mundo. Emoldura aquilo na sua mente. Clack. Um registro único que vai mudar seus dias. Não sei como você reage a esses momentos. Gil sempre começava a sorrir.

Ele havia acabado de terminar um relacionamento, coitado. Não sabia bem o que era, mas não era de todo o mal. Pelo contrário, era muito bom. Carinho. Ele costuma tapar os buracos no seu peito por um tempo. Contudo, ele queria amor. Precisava, até. Aquela força que envolve, nos faz sentir como personagens de um livro do José de Alencar, só que sem tuberculose.

E amor ali não havia. Melhor acabar, não deixar espaço pra mágoas que viriam pela promessa de continuar algo sem um propósito. Então Gil desfez aquela história, um filme num close pro fim.

As dúvidas simplórias vagavam pela sua cabeça e Gil sabia que não seriam resolvidas com uma cartada. A vida não funciona como em uma partida de truco, com um blefe. Mas ele não conseguia parar de evitar o “quando será que consigo amar de novo?” martelando em sua cabeça.

Podia ter um prazo de validade nessas coisas. Coração partido: fabricado no dia tanto, vencimento dia tal. Daí a gente podia viver sossegado e saber quando vai estar preparado. A vida deveria ser um cheque pré-datado a ser descontado num futuro indefinido. Só quando a gente tivesse saldo sobrando. A vida não deveria ser a eterna dívida que é.

A união de duas pessoas, no fundo, é uma cumplicidade de presença, não acha? Uma promessa de que “eu vou estar lá”, seja lá onde o “lá” for. Acho que, quando eu casar, vai ser por querer compartilhar, sim. E também para ser testemunha. Uma fiel testemunha daquela que ao meu lado estiver. A memória, as pequenas besteiras, os sorrisos e franzidos do rosto. A vida dela será emoldurada dentro de mim.
Afinal, será que amar é mesmo tudo?


Lá no fundo da cena, os velhinhos continuam dançando. Olham para o garoto e dão um bom dia animado. Eles também estão sorrindo.

Quem sou eu

Minha foto
"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto