Como sempre, vinham os quatro descendo a rua. A mesma rua de sempre, os mesmo quatro de antes, na mesma ordem. César, Gustavo, Felipe Mosca Morta e Beto. César, mais novo porém mais alto, tomava ares de líder da turma. Mera vaidade dele, coitado, pois quando se têm oito anos o único líder respeitado é o cinto do pai.
Quando eles fizeram a curva da esquina, estacaram. Os quatro, em fila, parados e olhando, lembravam algum episódio antigo de Os Trapalhões. Contudo, a cena que observavam não era cômica. Seis passarinhos mortos no chão, com os pescoços virados. Os seis passarinhos que eles criaram durante todo o ano. Pequenos filhos nascidos de uma ideia ingênua do Felipe Mosca Morta. Enquanto a imagem era gravada a fogo nos corações dos meninos, Beto intimamente descobriu o criminoso que destruíra a maravilha criada por eles. Os outros ainda absorviam a dor, ele já se preparava para vingança.
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"Eu duvido que gente consegue criar passarinho solto", disse Felipe em uma das manhãs a caminho da escola, observando os sabiás que cruzavam o bairro. "Gente grande ou menino?", emendou Gustavo, encarando Felipe com a firmeza de um boxeador desafiado para o combate. "Ué, gente. Não interessa se menino ou gente grande. Acho que gente nenhuma consegue criar passarinho solto", rebateu Mosca Morta. "Pois eu vou provar que cê tá enganado!", finalizou o outro.
No começo, ninguém levou a coisa toda muito a sério. Gustavo sempre foi teimoso e, mesmo em uma turma de garotos de oito anos, ninguém dá bola pros teimosos. Contudo, você não tem alternativa quando alguém começa a viver por uma causa. Gustavo passou a gastar cada minuto do seu tempo livre na pracinha, tentando se aproximar dos passarinhos. Comia com pressa. Dormia com pressa. Brincava com pressa, e isso era o mais grave. Os meninos então foram ajudá-lo. Mais pra rirem da cara dele do que por qualquer outra coisa, é verdade. Só que, aos poucos, cada um entrou dentro daquele mundo. Não existe limites quando você é criança, contaram uma vez ao César. Ele só entendeu quando aquilo tudo começou.
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Três meses, e nada. Eles já conseguiam chegar a um passo dos sabiás, mas nenhum deles sequer tocou um dos bichinhos. Um movimento a mais e pronto, voava. A impaciência virou frustração e Beto já tinha declarado desistência. "Desgraça! Já pulei a rampa do corguinho, já corri pela linha do trem de olho fechado e já comi hambúrguer vencido do McDonald's. Agora digo, pedi arrego! Porra de passarinho!", gritou ele, sob olhares de censura das pessoas que passavam pela pracinha. A maioria delas sentiu inveja, na verdade. Todas tinham tido vontade de pular a rampa do corguinho. Poucas tinham tido colhões para fazê-lo.
No ápice da agonia dos meninos, o improvável. Uma menina, leve e sorridente como só as meninas conseguem ser, andou entre eles. Com o brilho de Vishnu nos olhos, cada meio passo a um meio sorriso, brilhava. Muitos anos depois, quando Gustavo descobriu a palavra "estupefato", riu sozinho. Descobriu o nome daquilo que sentira ao ver Meire naquele dia. Ela parou em frente a ele, bagunçou-lhe o cabelo, esticou um dedo no ar, e recebeu um sabiá como hóspede.
Em quatro segundos, Meire conquistou o coração de quatro garotos. Quatro daqueles fiéis defensores na luta infantil contra as meninas. Uma cruzada que se desfaz, no máximo, aos doze anos. Quatro corações, e um sabiá.
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Nos seis meses seguintes, eles aprenderam tudo com Meire. Hoje, quando pergunto, nenhum deles sabe responder exatamente o quê. Mas que aprenderam, não tenha dúvida. O primeiro passo era ser um sabiá. "Sim, você tem que ser um passarinho. Passarinho só é amigo de passarinho, ué", argumentou a menina-mestre. Agir como um passarinho, representar um passarinho, ser um passarinho. Cada um mergulhou dentro daquilo. Notas escolares despencaram. Treinos de futebol foram abandonados. Livros e mais livros sobre a vida dos pássaros foram comprados. Invenções começaram a ser boladas: formas simples e baratas de se fazer uma asa delta, tsurus gigantes de papel, ressuscitar um projeto antigo da NASA para construção de helicópteros com garrafas pet. Quando se é criança, não há limites.
Da primeira vez que Felipe conseguiu chamar um sabiá, achou que fosse sorte. Por um momento, não pensou que os meses de concentração tivessem tido resultado. Após fazê-lo voar e retornar para os seus dedos, deixou sua mente vagar pelos caminhos que insistem em chamar nossas mais belas obras de "mera coincidência" Até que sentiu, na ponta dos seus dedos, o coração do sabiá bater. Como uma metralhadora. Sentiu o seu próprio coração acelerar. Ele tinha um novo amigo. E esse amigo era um passarinho.
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A vida deles tinha se transformado. Todos se sentiam distantes do resto do mundo, cabeças nas nuvens, acompanhando o voo de qualquer coisa que riscasse o céu. Aviões, passarinhos, helicópteros feitos pela NASA apenas utilizando garrafas pet. De uma forma muito diferente, se sentiam ligados agora. Os quatro faziam parte de um lugar secreto que ficava a vista de todos, na pracinha da rua onde moravam. Um lugar secreto que nascera dentro deles. Adotaram seis sabias, os seis que voavam naquela rua. Não eram posse, apenas amigos de tamanho reduzido, que se tronaram quase filhos com o passar dos meses.
Treinaram e treinaram. Conseguiam orientar os pequenos a realizarem manobras aéreas. Loops, inversões, parafusos, rasantes. O mundo era um céu aberto, e cada um deles se sentia um daqueles passarinhos. Suas almas estavam ligadas, compartilhava seus corpos e suas vidas com as vidas deles. Até que essas vidas foram interrompidas. Ironicamente, como a vida sempre é, foram as mãos que tudo ensinaram as responsáveis pelo crime. Meire, a garota encantadora e professora na arte de ser um passarinho, manchou suas mãos pelo mais antigo medo do mundo. O ciúme.
Beto jamais saberia que Meire tinha feito aquilo, não fosse pelo reflexo de seu relógio. Pelo pequeno círculo de vidro em seu pulso, ele conseguiu captar um olhar agudo da menina em direção a ele, enquanto segurava entre os dedos um dos sabiás. Se virou instintivamente, o sabia levantando voo, um pouco assustado. Sentiu a onda de fúria que emanava da menina. Não entendeu o porquê, claro. Apesar de ser um domador das almas que voavam, ele só tinha oito anos. Milhares de homens antes dele gastaram a vida tentando desvendar o coração das mulheres e nunca conseguiram. Pode acreditar, é muito mais fácil ser um treinador de sabiás que penetrar os segredos de uma mulher.
Meire descobrira como treinar passarinhos por instinto. Adorava tudo que fosse livre, pois ela mesma não o era. Era uma força presa no corpo de menina, o corpo preso à vontade de um pai que não tinha amor por ela, irmãos que a olhavam de modo estranho. Passava a maior parte dos dias longe de casa, uma casa ruída pela amargura de uma família que só existia enquanto a mãe dela vivera. Com a morte da mãe, morreram todos ali. Mas não Meire. Meire queria voar.
Ao ver quatro meninos empenhando suas vidas pelos que voavam, se empenhou também. Ficou curiosa, passou a observá-los de longe. Na época, nem ela sabia. Mas ali viu uma nova família. Uma família de pessoas que queriam se libertar do chão. Resolveu construir ali o seu lar. Entre os quatro ainda meninos, bobos, mas de peito aberto.
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Passado o choque, Beto começou a caminhar. Os outros três ficaram ali, parados. Não tinham forças para nada. César ainda gritou por Beto, mas ele já estava longe. Estava com os pés atravessando a rua. Estava com o peito cheio de ódio. Estava com a cabeça em Meire. Caminhou por meia cidade até lembrar do lugar onde a tinha visto meses atrás. Ao voltar da escola, a encontrou no parque da cidade, correndo e cantando pelo parquinho, entre escorregadores e gangorras. Ele tinha ido até lá para conversarem, mas desistiu. Estranho. Eles eram tão ligados, mas por uma via de mão única: o lugar secreto dentro deles. Fora dali, eram estranhos. O mundo de Meire não pertencia a ele. Não o mundo de verdade.
A encontrou lá, no mesmo parque, sentada em um balanço. Olhava pra baixo, para as mãos. Se aproximou, a raiva se avolumando. O punhos se apertaram. Parou em frente a ela. Ela levantou a cabeça e o encarou.
Você nunca sabe tudo sobre si mesmo. Naquele olhar, essa foi a maior verdade que Beto aprendeu. Uma verdade que ele leva hoje dentro do peito. Dentro de Meire, ele viu o desespero de quem sabia o que tinha feito. Ele sentiu cada grama de dor que ela carregava. Ele se sentiu meio Meire, assim como havia se sentido meio passarinho. Seus punhos se relaxaram. Ele sustentou o olhar dentro da alma de Meire por mais uns segundos. Se virou e foi embora.
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Depois daquele incidente, os amigos nunca mais foram os mesmos. Eles não tentaram treinar passarinhos de novo, então o mundo secreto dentro deles desapareceu. Nunca mais queriam sentir a dor de ter almas partilhadas desfeitas, destruídas. Permaneceram amigos até o colegial, quando o primeiro mudou de escola, Gustavo. Felipe deu um adeus quando seus pais decidiram ir para outra cidade. Beto foi fazer um intercâmbio e César ficou na cidade, mas se mudou para outra rua.
Gustavo hoje é piloto. Tenta imitar, com asas de metal, aquilo que conseguira fazer com seus sabiás. Entre uma e outra escala dos voos que faz, deixando passageiros e mais passageiros em cidade sem nome, ele lembra de como aprendeu a amar o céu.
Felipe Mosca Morta agora se chama Dr. Felipe Alcântara, biólogo. Passa a vida em campo, pesquisando a relação entre animais e seres humanos, o equilíbrio entre as espécies. Ele tenta desvendar a mágica de cada um dos seus dias de criança, mas já não acredita no sonho em que viveu. Nunca mais sentiu um coração bater como o daquele sabiá entre seus dedos. Nem mesmo ao se deitar, toda noite, sobre o peito de sua esposa.
César, o que era mais alto, continuou crescendo. Atletista, se especializou em salto com vara e hoje compete por seu país, pulando cada dia mais alto. Quando começou a treinar, seus pais não entendiam o porquê de tanta dedicação repentina aos saltos. A tentativa de alcançar o céu? Eles estavam todos completamente enganados. César não queria alcançar o céu. Ele só queria sair do chão.
Beto, só viveu a vida. Virou cineasta e aprendeu a encantar contando estórias, mas nunca a sua própria. Morava em um edifício alto, no último andar e, todo dia quando acordava, olhava para o horizonte, procurando os pássaros. Tentando se sentir novamente um pássaro. Alguma coisa ficou pelo caminho, ele sentia o buraco em seu peito. Pensou, várias vezes, em pular daquela janela para se sentir voando como aos oito anos. Mas não o fez. Casou, teve um filho.
E só entendeu o sentido da vida quando, ao desviar olhar de Meire, hoje sua esposa, viu o que seu filho fazia. Em uma pracinha qualquer da cidade, o garoto corria. Ele sacudia os braços contra o vento. Encarava o céu azul, aberto. E lá em cima havia um passarinho.