sexta-feira, 23 de março de 2012

Florida e Flamingos


O vagão balançava e eu escutava os toques dos telefones celulares surgem aqui e acolá o tempo todo. No meio da multidão anônima, consigo ouvir de tudo. Chopin, hip-hop, toques antigos, sapos coaxando. Nada daquilo era música, na verdade. Lembranças ou marcas registradas, apenas. Pessoas querendo mostrar que gostam de Chopin. Ou que queriam lembrar de Chopin quando o celular tocasse. Ou que queriam que a lembrança de Chopin as lembrasse de algo mais, do passado vivido e dos medos superados, uma corrente de pequenas memórias particulares. E o mais comum eram aqueles que nem sequer se preocupavam em escolher direito um toque pro seu aparelho.

Garotos sorridentes no ônibus, um deles comia um saco de Skittles com a voracidade de leão atacando zebra na savana.

Na mesa da frente, vi um homem terminar seu almoço e aplicar uma injeção de insulina em si mesmo, enquanto conversava com a sua esposa. Ele faz tudo com naturalidade, como se estivesse consultando as horas no relógio. Seringa, algodão, antisséptico, espetada, pressão, pronto. É lindo.

Um homem branco, protestante e conservador sempre está lá pra dar bom dia e apertar sua mão. Autoestradas, autoestradas, autoestradas. Você vira à esquerda na I-4 e depois corta pela USS-192, passa por três rodoaneis e já chegou. Um velhinho estava sentado em uma cadeira de balanço na frente da sua pequena prisão suburbana, aqui eles costuma chamar esses lugares de casa. Nos torneios de wrestling, os garotos se engalfinham. E lá estão os pais, homens de bigode que não usam bigode por acharem o bigode uma nova onda cool. Eles usam bigode por uma condição social que permite apará-los com uma precisão cirúrgica. Aqui o bigode é uma questão de méritos e princípios.

Eu fico entre a cidade mágica e a pobreza do país, o desemprego e as dores de uma crise financeira que nunca me interessou muito, apesar de ter sido empurrado em direção a informação. Bolhas imobiliárias que estouram, essas coisas. Nada me afetou diretamente, peguei marolas. Eles não.

O desânimo vem em lufadas ainda não controladas. Em quartos de hotel que não tem um pingo de vida, em várias coisas que dão errado. O calor consome as energias e as horas. E tem horas que ser paciente é só outro jeito de esperar a morte chegar.

São pessoas falando português e comida da casa da vó: uma ilusão de ótica do país de onde eu vim. Entre tantos outros homens que fazem churrasco e feijão, um deles fala oito línguas e só está aqui porque cansou de ser empresário.

O meu cinegrafista veio do interior de São Paulo, mora em NY, tem idade pra ser meu pai e diz só estar "comendo grama de vez em quando pra disfarçar a esperteza". É um cara engraçado, competente, mas nitidamente entediado com o nosso trabalho. Não dá pra culpá-lo. A nossa tarefa é complicada, porém não de um jeito que instiga. Apenas obstáculos.

Flamingos de borracha. Flamingos na estrada. Em todos os lugares. Lembro da moça do pijama de Flamingos e rio sozinho enquanto aceleramos na highway. Eu vou embora e nem vou poder dizer se existem flamingos de verdade nesse lugar. O sol relfetido no asfalto cega. Não consigo ver nada,. Não consigo ver nada.

[este post foi escrito num espaço de três dias, de 23/03/2012 até 26/03/2012, sofrendo acréscimos e modificações]

terça-feira, 20 de março de 2012

Retrovisores




Por acidente, tocou em um dos retrovisores. E lá estava tudo o que não via por um ponto cego. Muita coisa mudou. Mas não tudo. Não ainda.

Era tanto amor, tanto. Onde é que ele foi parar? Desceu pelas escadarias de erros em um belíssimo espetáculo de efeito dominó. Linhas trêmulas não aparecem em textos digitados, então não sabe precisar o que sentia quando tudo aconteceu. Em suas palavras leu raivas controladas e descontroladas. Leu inseguranças de menina. Mas não consegue confiar em suas avaliações. A memória é traiçoeira, às vezes não faz nada além de labirintos. Sabe sim a opinião que tinha sobre si na época. Se sentia tão madura... Só o tempo muda coisas como a arrogância da juventude.

Era uma mulher de dor se levantando. Agora é uma daqueles moças que a gente julga clichê, que fala do amor em detalhes. Amar demais, amar de menos. Amores esquecidos que ainda trazem lembranças boas. O amor antigo. Ainda? Não há mais. De repente não estava mais lá. Que estranho. Jurou que ele jamais a abandonaria. A dor em seu lugar, agora não mais escondida. Milhares de amores novos também. As mentiras só aparecem em trivialidades, em ficções expostas. O amor de antes passou, sempre diz com naturalidade.

Mas não percebe que repetir as palavras só dá margem às dúvidas dentro de si. Os retrovisores enganam, os olhos também. E as pequenas verdades sobre si mesma continuam quebradas como os vasos que ele derrubou ao sair pela porta.



quinta-feira, 8 de março de 2012

masculinos desesperados


No supermercado, Cilene e Robson caminhavam pela seção de cosméticos conversando sobre o duelo de gêneros. Ele precisava de shampoo. Ela, precisava descontar a raiva adquirida depois de ler Jane Austen. "Orgulho e Preconceito". Ele, não. E por isso ela ficava mais ameaçadora em cada argumento.

- Você então acha que mulheres estão em pé de igualdade com os homens hoje!
- Honestamente, não sei. Mas acho que novela é um dos maiores problemas de vocês.
- Como?
- Não sei você, mas acho Manoel Carlos o maior machista do país. Todas aquelas novelas em que você vira Helena, cheia de sofrimento e dor morando no Leblon, em uma saga carioca de superação. Você é Christiane Torloni pro nosso lado, Cilene. É Regina Duarte. Credo, você é Suzana Vieira. Mas não é privilégio de vocês. A gente também tem dessas.
- Não acredito nisso. Homens não sofrem com estereótipos como nós.

Robson estacou com o carrinho de compras. A couve sacudiu perigosamente na beirada, entre o cereal matinal e a garrafa de Pepsi, com o tranco da parada brusca. Em seus olhos estavam a mágoa e frustração de um homem ofendido.

- Não, não. Acho que você não sabe. Não consegue ver, não. Então vou te falar. Vou sim. Por que... Eu? Eu, Cizinha, sou o descamisado que corre atrás de uma bola na grama. Eu sou o amante da cerveja. O mecânico, eletricista, pedreiro. O carregador de peso. Eu sou o que odeia filme francês, coça o saco e cospe em canapé. 

Começa a caminhar com veemência em direção a Cilene, que dá passos pra trás, assustada. Robson aumenta o tom de voz.

- Eu sou o que não pode ter medo de rato. 

Com os dentes cerrados de ódio.

- O que adora carro. O responsável por desentupir a privada. O aficionado por revista. De. Mulher. Pelada.

Gesticulando  loucamente, agarra um produto da prateleira e grita, desvairado, apontando pra si e para o vidro em suas mãos.

- Eu, Cilene Xavier, não sou Robson. Aaaaah, não, eu não sou! Eu sou o shampoo 2 em 1, Clileninha do meu coração! O SHAMPOO 2 EM 1!

                                                                     ***

Como bom homem solteiro que consegue economizar um trocado, contratei uma diarista pra me ajudar com a casa. Tava uma zona de guerra aqui. Calças brigavam umas com as outras no chão do quarto, louça se atracando na pia, gritos, terror, sangue e pânico. Daí resolvi chamar a Doreen, indicação de um vizinho. Nunca tive empregada na vida, então não sei como me portar perto dela. Pedi desculpa pela bagunça. Mas ela não ligou, Doreen não ligou. Deixei um tênis em cima da mesa e fui fazer minha entrada ao vivo rezando pra ela me perdoar por dar trabalho.

Quando voltei, o tênis estava lavado. Opa! Achei aquilo divertido. Na segunda vinda de Doreen deixei, como quem não quer nada, uma receita de torta em cima da mesa. Ela pegou discretamente, deu uma olhada e duas horas depois bateu na porta do escritório pra dizer que a torta estava pronta.

O meu equipamento de envio de matérias pro Brasil está dando problema. Alguma coisa na rede de geração, as portas de upload não estão funcionando direito, tem alguma coisa a ver com o software não estar configurado corretamente, mas chequei todos itens e não encontrei nada, nem mesmo um plug fora do lugar.

Vou deixar em cima da mesa que amanhã a Doreen vem.

domingo, 4 de março de 2012

retalhos de uma amizade que não vai




Um minuto é tudo o que se precisa, não acha, minha amiga?

Pra lembrar de um momento mágico, porque a saudade é a prova de que valeu a pena. É o que falta em cada pedaço do que a gente acha que sentiu, mas foi tão rápido... Será que senti? É o tempo que leva uma crise de riso sem sentido algum, e é por isso que elas são tão boas. E você sabe disso. É a sensação estranha e gostosa de que você não pode segurar nenhum segundinho, e decide estender a diversão ao invés de parar o tempo, porque evitar o inevitável é perda de tempo.


De um momento em que você vai a qualquer lugar que queira, porque a distância é uma barreira subjetiva que você vence quando quiser, mas é claro que alguém sensato não acredita nisso. É a forma chata que seu despertador encontra pra dizer a você que são 6h15, e se você não correr logo vai se atrasar pra qualquer coisa importante (ou não) que tenha que fazer, porque pessoas importantes fazem coisas importantes.


É a felicidade em si, em sua simplicidade estonteante, porque felicidade não é nada além de uma colcha de minutos costurados que te aquece a cada dia. Os bons minutos em sua pele.

Têm sim coisas que me prendem aqui. Você é uma delas. Você é um longo minuto.




** Este texto é o resgate do original de uma mensagem escrita em 06/01/2007



Quem sou eu

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"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto