quarta-feira, 30 de abril de 2014

Casa de minha mãe




É uma formiga, uma única formigua pequena correndo pelo azulejo branco. De longe, parece mais um pixel correndo pela tela em branco onde eu costumo escrever. Um ponto final em movimento....................................................................   .........................    ... .... .... Acudam, assim minhas palavras não vão ter fim!

De perto, imagino que poderia ouvir os galopes das suas micropernas. Patacum, patacum, patacum, preenchendo o espaço. Porque a casa de minha mãe é silêncio. A casa de minha mãe está vazia.

A bagunça é a de sempre. Na sala, a TV luta com livros de auto-ajuda pela supremacia no hack. Lixa de unha, caixa de sachês de chá, um Santo Antônio que dei de presente alguns anos atrás. Quantos foram mesmo, Antônio? Parece o bastante pra te chamar de Tonhão, vai. Lembro do bilhete que te acompanhou. "Pra você casar com alguém e largar do meu pé". Ah, essas minhas audácias... Como as cebolas que odeio e minha mãe adorava esconder no arroz, palavras feitas de camadas. Petulância, humor, amargura, esperança. Tudo em uma mesma frase. Daquela vez o ponto final não fugiu de mim.

O sofá é o de sempre. Desde que me lembro de um sofá, é aquele. Milagre da cirurgia de transplantes. Forro de um sofá negro que morreu com apenas dois anos de uso. Braços de um sofazinho chinês (quase uma poltrona, eu diria) que uma prima não quis mais. Sentei em suas molas quando tinha menos anos que dedos da mão. Sentei nele agora e, ai ai ai, o que qué isso? Saudade veio pra reestofar meu peito.

O gato não é o de sempre. Desta vez, inclusive, é mais de um. Vieram o grandão e o pequenininho me pedir comida, me buscar carinho. Se ao menos eu soubesse o que era servido a eles nesse tempos. Em casa de minha mãe, a culinária era maluca.


- Come chicória logo, menino custoso! Tem vitamina D48!
- D48? Isso não existe, mãe!
- Existe sim que eu tô falando aqui. Agora come. É saúde.

Vocês mal passaram da B12 e lá em casa minha mãe já conhecia a D48.

Em casa de minha mãe, a palavra "custoso" reinava. Ganhava e muito do apelido "Passarito". Quase se equiparava a "filho" ou "caçula". Se viesse um estrangeiro ali, poderia facilmente achar que meu nome era Custoso. Custoso Passarito Doca, prazer, registrado em cartório. Quase um Jacques Custeau, de tão explorador.

Apenas eu, formiga, gatos, silêncio. Aquele lugar sempre foi silêncio, mesmo que a TV estivesse ligada ou o rádio tocasse o louvado Renato Teixeira. Em essência cresci diferente de minha mãe, mulher de poucas palavras. Que quando magoada ou aflita, engolia verbos. Madava bilhetes furtivos cheios de dor. Disfarçava com tinta azul de BIC a ausência da voz. Tanta distância, tanto chão entre a porta do meu antigo quarto e as mãos trêmulas daquela senhora. E agora que ela está a milhares de quilômetros, realizando seus sonhos pelo mundo, ai ai ai meu Santo Tonhão, a sinto tão perto.

Tão perto.


domingo, 6 de abril de 2014

Sexo, o frágil - Amor de Tempo Interno




Separou o lixo, seguindo as normas rígidas da coleta seletiva do bairro. Pegou o detergente biodegradável e levou os pratos do almoço vegano pra pia.

- Deixa eu ajudar. Sujei também.
- Não, fica tranquilo. Nunca fiquei tão feliz em lavar louça, tá muito quente.

Aquele calor sólido, oblíquo e fora de moda que tenta separar corpos. Não vontades.

- É por isso que quero ajudar, ué! Hahaha!

Desculpa pra enlaçar os braços ao redor da cintura pequena, pressioná-la na beirada da pia. Colocar as mãos junto as dela, molhar dedos, respirar sua pele. Roçar a barba lentamente, testosterona e lábios, de onde a blusa termina até onde cabelo começa. Sentir pelo arrepio na nuca a temperatura de outras partes. Mão de concha, água trasportada da torneira pra tudo o que ameaça pegar fogo. E pra que roupa? A calcinha escondida pela saia desapareceu como se nunca tivesse ali estado. E nunca mais apareça por aqui, cretina!

Depois que tirou a bermuda, não suportando mais a camada de poliéster, comunhão entre o seu corpo e o dela veio com um arrepio mútuo. Ele tinha o corpo gelado pela água enquanto o corpo dela queimava por dentro de um jeito que deixaria o Sol envergonhado.

E a torneira lá, aberta o tempo todo, no máximo.

***

- Uuuurrr, não sai não, fica mais um pouco dentro de mim. Foi forte. Foi bem forte.
- Um... Dois... Três-Quatro. Foi mesmo, tô acabado.
- O que...?
- Cinco-seis, sete, oito.
- Isso é de propó..? Você vai ficar mesmo flexionando O PINTO AÍ DENTRO!?
- Hahaha, oh yeah!

***


Não pensou que sobreviveria. Quando a boca dele alcançou o clítoris, sentiu a onda costumeira de pazer. Mas a cada movimento de língua, cada pressão, fricção, lambida, beijo, o fôlego se perdia em profundezas desconhecidas. O prazer se descarregava com pancadas cada vez mais violentas. Meu Deus, o que tá acontecendo? Agarrou o cabelo dele, as pernas se arquearam e ela já não era mais dona de si. Gemia longamente, movia o quadril em círculos e pressionava o rosto dele com força contra si. E quando veio, não, não pensou que sobreviveria.

Era como o brilho de Vishnu explodindo seus chákras, os milhares de mantras inundando e ecoando dentro do mesmo vaso. Sentiu cada grama de seus recém-conferidos 59kg, cada textura das centenas de fios do seu lençol. Os orgasmos levaram quase um minuto pra acabar. Só acordou no dia seguinte.


***

- Aaaaahn, tá muito apertaaa-aaado! Ahhhum!
- Isso. Vem mais forte.
- Vou!
- Vem. Fala uma coisa bem suja pra mim, vai. Vai. fala.
- Ah, ééé.. Ahhh... Sua, aaah, sua.... sua imunda!

Ambos congelam. Se encaram. E...

- HAHAHAHAHAHAHA! Você é o pior... HAHAHAHAHAA! De todos os... Ai, péra. De todos tempos em falar sacana-HAHAHAHAHA!-geeeeiiiim!
- HAHAHAHAHAHAHA! Para, você sabe que ainda tô trabalhando na causa.
- HAHAHAHAHAHAHA! Sua...., meu Deus tô chorando de rir de quatro, HAHAHA! Sua imunda! HAHAHA!
- HAHAHAHAHAHAHA! Ridícula. Eu vou embora!
- Nã... HAHAHAHAHA! Não vai não! Ai, meu amor, deita aqui. HAHAHAHAHA! Vou gozar de rir! HAHAHAHAHAHA!
***

Em algum lugar de seu subconsciente sexual, aquilo fazia tudo ser mais forte, mais intenso, cru e simples. Tudo bem que muitas mulheres consideravam essa parte do corpo um lugar muito errado pra fazer uma união íntima. Ele tentava não julgar, pra algumas era extremamente doloroso. Situações passadas traumáticas, medo de tentar e sofrer. Amor e sexo se batendo até virar clara em neve.

Ainda assim não resistia.
Por mais ousado que parecesse, sempre tentava entrelaçar suas mãos nas dela.




Quem sou eu

Minha foto
"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto