sexta-feira, 31 de maio de 2013

Mandala




Existe uma mandala que os tibetanos costumam fazer. Com milhares de grãos de areia colorida, eles trabalham semanas, meses. Grão a grão, formando uma imagem linda, cheia de vida. O primeiro exercício é a paciência.

***

Dário viveu durante anos apenas suportando. Sabe que existem preços etiquetados em quase todos. Pais, mães, irmão e avôs. Sua mulher tem preço, meu filho vai ter. São escravos do pagamento, da conta que vence, do biscoito sem glúten que as crianças morrem se não comerem.

Era um desses. A gente reconhece logo. Camisa de linho, peito que aguenta até a pior das ofensas, se as ofensas vierem de cima. Tentei telefonar, mas o amor próprio dele cancelou a linha. Nunca encontraram, nem mesmo no Google.  Tenho medo de Dário por ter medo de me tornar o Dário. Uma vida a prestação.

Nunca foi tibetano, mas lá estava sua capacidade de esperar. Grão a grão, a galinha ia. De atendente a vendedor, de vendedor a gerente. Os sonhos minguando, mas o ordenado subia um pouquinho junto com o salário mínimo. A esposa sofria observando seu querido homem se desfazendo ao vento em contra-cheques.

- Você não merece isso! Ser humilhado por alguém só porque é quem paga suas contas?
- Não. Mas a luz vence amanhã, mulher. O que eu faço?

A prisão dentro de si.

Até que seu pote transbordou, como sempre acontece em vidas assim. Se recusou a fazer um balancete falso para o chefe, e ouviu um "vou lembrar disso!". A ameaça velada mais clássica do cinema americano. Observou a ameaça com interesse. A raiva subiu. Se levantou da cadeira e olhou fixamente nos olhos do facínora.

Em sua cabeça, tudo correu. O ódio de ser submetido a qualquer vontade. Pensou em lembrar o chefe de quando ele roubou suas melhores ideias e as registrou no nome da companhia. Quem sabe refrescar a memória de todo  trabalho que ele fez e que não era sua função. Ou todas as grosserias, todas as respostas atravessadas. O estupro de consciência que é continuar em um lugar onde tudo está errado, onde a exploração e o desrespeito mandam. O medo do desemprego.

Como se o desemprego fosse um caçador voraz, como se rebelar-se contra o café pequeno de serviços fosse o certo. Como se a demissão fosse desistência. Olhou pelo escritório e viu tantos colegas assim. Pela janela, outros prédios comerciais. Quantos assim? Quantos escravos de um ordenado desgovernado. A locomotiva dos empregos de merda estava lotada. Voltou para os olhos do chefe, agora sem mais medo. Se sentou.

- Vou pedir um café. O senhor também quer um? O Jarbas disse que é o melhor da rua.
- Termine o balancete como EU TE MANDEI. Dá pra fazer logo?
- Sim, senhor.

Sentiu seus braços darem a volta no banco da locomotiva. Aquilo agora é Dário. Ele vai até o fim da linha.

***

A mandala tibetana termina depois de muito esmero. Seu dono, o artista criador, toma alguns momentos para contemplação. Olhando a obra concluída, medita sobre cada grão, cada esforço. Junta tudo nos olhos,  admirando seu trabalho. Depois sorri. E com uma vassoura, joga tudo aquilo ao vento, desfazendo em segundos sua arte. O exercício do desprendimento.

Sempre é possível escapar e fazer algo melhor, algo novo. O que passou não tem tanta importância quanto o que vem. Há beleza nisso. Nenhuma tortura vale a pena, nem mesmo a da vaidade sobre seu melhor trabalho. Não é sobre o destino, é a jornada em si.


Quem sou eu

Minha foto
"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto