sexta-feira, 30 de abril de 2010

Vale-tudo

Acordou com o peito arfando, se é que chegou mesmo a dormir. Desde que Vítor deixara de lado o vício pelo picolé, sofria essas crises de abstinência noturnas, que o devoravam por dentro. Sentia falta de cada sensação daquela gelada gostosura.

A textura que flutuava em sua boca, o gelado que gruda nas bochechas, o gosto doce de qualquer coisa artificial. Mastigar o palitinho depois de terminar, huuummmm! O coitado estava num estado que não podia ver nem gelo que já suava. Tonteava quando ficava frio e se contorcia quando pegava a via que passa pela praia. Praia, como todo mundo sabe, é quase um safari de picolés. O elefante é o SemParar, evidente. Ouvi falar que os vendedores de picolé de praia começaram a revidar as estilingadas batendo com as máquinas de cartão de crédito nos caçadores.

Enfim, o Vítor. Chegou em um ponto tão crítico que não houve jeito, levaram ele pra se consultar num psicanalista. Não foi difícil, falaram pra ele que lá ele podia atacar um Frutilee sem remorso.
Dr. Genivá, que não era psicólogo de brincadeira, logo deitou Vítor em no divã. Com uma chave de braço, naturalmente. Psicanalista bom, hoje em dia, tem que saber lutar vale-tudo pra sobreviver no mercado, é essencial.

Vanja vai, vanja vem, o Dr Genivá foi descobrindo a origem do vício. Vítor tinha aprendido a gostar de picolé mesmo depois de namorar a Silvia. A sua antiga paixão era filha do consul Agilberto Trabuqueira, e era conhecida como a mulher mais fria do pedaço. Quebrava pescoço de galinha pra fazer canja e nem fechava o olho. Era de dar medo.

Silvinha adora picolé. E ela ajudou Vítor a comprar sua geladeira nova. Advinha qual era a marca da geladeira? É isso aí, Consul. Vítor via a geladeira, lembrava da ex, do picolé, e ficava doido. A sensação do picolé era a sensação de Silvia. A textura, o grude, o doce, a mordida.
Ele não tinha nenhum vício bacaninha. Tinha era uma puta dor-de-cotovelo mesmo.

Dr. Genivá deu-lhe uma banda e disse a Vítor para voltar na semana seguinte para tomar mais sopapo. Pra aliviar a dor-de-cotovelo, ele ia fazer doer em outro lugar até o coitado esquecer onde doía primeiro.

Eu não disse que o vale-tudo é essencial no ramo?

Quem sou eu

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"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto