Estava difícil carregar o pacote de compras. Além dos ingredientes para o almoço, Caio também levava dois litros de leite pra noiva. A rua era sempre lotada por ali, contudo estava especialmente cheia para um sábado comum. Pensou que devia ter ido pela ruazinha lateral. Tarde demais, se empacasse naquela muvuca seria pisoteado por algum argentino. Começou a ouvir sons na praça, guitarras, batucadas e metais em riste. O epicentro do aboletamento. Parou pra ver, parte da roda, espremido entre turistas e nativos que fazem a atrevida Ipanema ser o que é.
O jazz vinha de uma rapaziada não muito mais nova que ele. A música feliz saltava pelo quente ar carioca como uma lufada de brisa do mar. A praça dançava em timidez de pés batendo, estalos de dedo, cabeças sacudindo. Aquilo era tão bom, era tão Londres, era tão casa pra ele. A coisa ia se alastrando no corpo. Há menos de trinta segundos, nada além de transeunte. Agora tinha sido enfeitiçado, o sorriso que não saia do rosto. O único desconforto era a ausência de letra naquela música: lhe negaram o direito de cantar. Por que não podia ser um deles? Queria ser alegria, queria não ter um pacote de compras rumando para um canto que não era seu. Às vezes é tão difícil se sentir parte...
A saxofonista o encarou. Olhos nos olhos. Veio destilando seu solo, impiedosa, passo a passo. Quando estava a distância de uma sacola de compras, encerrou a música. Ele agora não era mais roda, todos se afastaram com o caminhar da moça, exceto Caio. Hipnotizado, era agora destaque.
Ela tirou o instrumento dos lábios e lá estava um sorriso. Estendeu as unhas alaranjadas, entre os dedos um encarte quadrado, o EP de sua rapaziada musical estrangeira. O rapaz não sabia bem o que fazer, levou um segundo até começar esticar o braço livre de pacote vagarosamente rumo ao encarte. Mas ela ainda não tinha terminado. Colocou o bocal nos lábios e soprou uma nota longa, clara, que fez saltar de dentro do sax uma margarida.
A flor flutuou por um instante até ser agarra pela outra mão de unhas alaranjadas. .A multidão fez "Ooooooun!". Ah, a coletividade. O sorriso dela aumentou enquanto engatilhava as próximas palavras.
- Choose, ma chère.
Um frio subiu pela espinha de Caio. Nenhum homem está preparado para um ultimato assim, em praça pública e antes do almoço. Em barriga vazia, qualquer sopro ressoa como furacão.
Chegou em casa levando o EP no bolso. Contou à noiva que tinha ganhado de uma saxofonista francesa na rua. Esses gringos tão cada vez mais atiçados, meu amor.
Mas não pronunciou uma palavra sobre flores e escolhas, apesar de ainda ter o cheiro de margarida na palma da mão.