quinta-feira, 21 de março de 2013

Versão Oficial




Estava difícil carregar o pacote de compras. Além dos ingredientes para o almoço, Caio também levava dois litros de leite pra noiva. A rua era sempre lotada por ali, contudo estava especialmente cheia para um sábado comum. Pensou que devia ter ido pela ruazinha lateral. Tarde demais, se empacasse naquela muvuca seria pisoteado por algum argentino. Começou a ouvir sons na praça, guitarras, batucadas e metais em riste. O epicentro do aboletamento. Parou pra ver, parte da roda, espremido entre turistas e nativos que fazem a atrevida Ipanema ser o que é.

O jazz vinha de uma rapaziada não muito mais nova que ele. A música feliz saltava pelo quente ar carioca como uma lufada de brisa do mar. A praça dançava em timidez de pés batendo, estalos de dedo, cabeças sacudindo. Aquilo era tão bom, era tão Londres, era tão casa pra ele. A coisa ia se alastrando no corpo. Há menos de trinta segundos, nada além de transeunte. Agora tinha sido enfeitiçado, o sorriso que não saia do rosto. O único desconforto era a ausência de letra naquela música: lhe negaram o direito de cantar. Por que não podia ser um deles? Queria ser alegria, queria não ter um pacote de compras rumando para um canto que não era seu. Às vezes é tão difícil se sentir parte...

A saxofonista o encarou. Olhos nos olhos. Veio destilando seu solo, impiedosa, passo a passo. Quando estava a distância de uma sacola de compras, encerrou a música. Ele agora não era mais roda, todos se afastaram com o caminhar da moça, exceto Caio. Hipnotizado, era agora destaque.

Ela tirou o instrumento dos lábios e lá estava um sorriso. Estendeu as unhas alaranjadas, entre os dedos um encarte quadrado, o EP de sua rapaziada musical estrangeira. O rapaz não sabia bem o que fazer, levou um segundo até começar esticar o braço livre de pacote vagarosamente rumo ao encarte. Mas ela ainda não tinha terminado. Colocou o bocal nos lábios e soprou uma nota longa, clara, que fez saltar de dentro do sax uma margarida.

A flor flutuou por um instante até ser agarra pela outra mão de unhas alaranjadas. .A multidão fez "Ooooooun!". Ah, a coletividade. O sorriso dela aumentou enquanto engatilhava as próximas palavras.

- Choose, ma chère.

Um frio subiu pela espinha de Caio. Nenhum homem está preparado para um ultimato assim, em praça pública e antes do almoço. Em barriga vazia, qualquer sopro ressoa como furacão.

Chegou em casa levando o EP no bolso. Contou à noiva que tinha ganhado de uma saxofonista francesa na rua. Esses gringos tão cada vez mais atiçados, meu amor.

Mas não pronunciou uma palavra sobre flores e escolhas, apesar de ainda ter o cheiro de margarida na palma da mão.



domingo, 3 de março de 2013

O peso do amor dos outros




Ouvi a moça dizer "eu te amo" e acabar com um possível amor. Foi tão rápido, tão doloroso, tão constrangedor. Eu ali, comprando o Globo na banca, e ela olhando pro homem grisalho com olhos impiedosos de quem não tem mais o próprio coração.

No rosto dele veio a resposta, susto de "Ai, meu Deus!", tão cruel e tão honesto que jamais poderia ser recriminado. Talvez tudo o que ele quisesse fosse amar também, só faltou aquilo que não tem nome e ninguém sabe onde é que fica, ninguém viu ou deu bom dia, nunca votou e não paga imposto, aquela coisa que desperta e faz sentir infinito.

Escondo os olhos no jornal enquanto pago, o jornaleiro disfarça contando o troco. Se conhece bem o pesar das testemunhas, dos dois no meio do caminho. E lá se vai um crime sem perdão que é justo deixar impune.



Quem sou eu

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"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto