quarta-feira, 18 de julho de 2012

Just Drive - Parte II (Learner's License)


"Para poder dirigir, um aprendiz de motorista precisa ter dois braços e ao menos uma perna. Estar acompanhado de alguém já licenciado é obrigatório. Caso o carro não seja automático ou seja da marca Fiat, o aluno só poderá dirigir em zonas rurais."
Traffic Code - Jamaica Roads and Urban Division


Pisca-alerta..........................................................................OK
Macaco que aqui chamam de Jack.......................................OK
Pneus...................................................................................OK
Cinto de segurança...............................................................OK
Freios...................................................................................OK

Pensei então estar seguro pra primeira lição de direção em auto-escola da vida. Mas, por via das dúvidas, enrolei plástico-bolha por baixo da roupa pra me sentir bem protegido. Ledo engano, diria Moacir. A learner's license é dada após um rápido exame psicológico em que o doutor avalia apenas numa encarada se você é um assassino no trânsito ou não. Passei raspando no teste, acho. Ser branco na Jamaica não é fácil. Pode parar, eu já sei o que você vai dizer. Sou moreno-sensual apenas no Brasil. Aqui, sou branco. E agora, um aprendiz de motorista.

- Mas o que exatamente é essa learner's license? - perguntei quando me entregaram a aprovação.

O funcionário do departamento de trânsito nem levantou os olhos pra responder.

- É uma licença de aprendiz. Não entendeu? Achei que estrangeiros fossem mais espertos.

O que eu tava esperando? Detran é tudo igual, seja em Cocalzinho, seja na Jamaica. Eles são cruéis e tem alergia a quem faz perguntas. Ainda bem que Jeová, em sua sagacidade, me presenteou com o Dom da Resposta Rápida.

- Tá certo, o bom é que quando eu atropelar alguém no seu país vou poder te citar como culpado no tribunal, funcionáriooooooo... (enquanto olhava no crachá do cretino) Robert Pyke.

Aí ele me olhou. E eu o esperava com o dedo médio levantado e um sorriso no rosto.


A importância da embreagem é superestimada, pensei, enquanto acelerava meu carro. Um carro azul-bonito, alugado, completamente sem-graça. Mas automático. Nada de marchas, só acelerar e frear, tal qual aqueles carrinhos de bate-bate. A sociedade ultra-pós-moderna (chamo assim os nossos tempos, já que alguém cometeu o erro de batizar primeiro de "moderno" e em seguida de "pós-moderno" algo que obviamente iria envelhecer. Babacas), seria muito melhor sem embreagem.

Descobri que só precisaria de alguém com uma carteira regular sentado ao meu lado pra dirigir, sem embreagem e com a carteira de aprendiz. Passei então a ser o Rei da Carona no meu prédio pra poder praticar. Conheci a maioria dos vizinhos assim.

Maria Claudia é colombiana, nascida em Barranquilla, e insiste pra que eu a chame de "Cabuia". Não faço a menor ideia do que significa, mas como ela é uma senhora, espero que não seja indecência. Katamouri Gon veio da Coréia do Sul e não fala quase nada em inglês. Mas fala supermarket, please?, o que pra mim é o bastante. Vanessa Soraia é, evidente, mexicana. Demorei até pegar que o nome dela é com "V", já que ela se apresentava como "Baneszoraiá" e meu espanhol é paraguaiô.

Todos eles eram vítimas dos meu favores, minhas felizes cobaias com carteira de motorista. Pra cima e pra baixo, eu os guiava. E a cada dia o volante parecia um pouco mais familiar. Porém, não menos aterrorizante.

***
Doía tudo. Mas tudo mesmo. Respirar, pensar. Doer doía. Sentia gosto de hospital na boca, aquela mistura de éter e remédios. Não consegui abrir os olhos direito. Lembro de pensar que tinha morrido, porque tentava chamar alguém e não conseguia. Não sabia que minha língua estava inchada por convulsões diversas e que meu maxilar tinha virado polvilho.

A cama virou companheira de dias, semanas, meses. Ali, mais que em qualquer outro lugar, tive tempo de me emaranhar em imaginação e criação. Meu corpo não ia a lugar nenhum, mas quem precisa de corpo? Devorava livros e livros. Fazia labirintos dentro da minha própria mente. Jogos e charadas. Aprendi a estabelecer relações e construir pontes entre quaisquer coisas. Atormentava enfermeiras com perguntas sem resposta. A mais nova pediu pra trocar de turno quando eu a olhei nos olhos e pedi com carinho:

- A morfina que vocês me dão tá me comendo por dentro. Eu fiquei assim por causa de um carro e minha cama tem rodas! Não consigo pensar direito, só quero que chegue a hora da morfina. Você podia me dar mais morfina? Até que eu não sinta nada nunca mais?


***

No meu carro azul-bonito, eu canto. Coloco a música bem alta e vou me esgoelando enquanto guio. Visito amigos, saio pra comer. De noite, o ar quente dessa ilha fica mais agradável. A cidade repousa serena, quase como se não existisse mais. Mas ainda tem alguns outros motoristas deslizando pelo asfalto. O meu momento favorito é quando emparelho com eles no semáforo fechado. Olham pra mim enquanto eu danço e canto. E eu me sinto superior por saber que é muito bom estar sobre rodas e não ser em uma cama.



Quem sou eu

Minha foto
"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto