sábado, 19 de maio de 2012

parecia tão real




Você estava tão alegre. A covinha no queixo aparecia mais com a felicidade estampada no rosto. Cada pulo que dava de uma pedra a outra era um sorriso. Até cair nos meus braços e gargalhar com vontade, enquanto minha coluna duelava com a gravidade pra manter todo mundo na vertical. É claro que fracassou, caímos na grama.

Mas antes da queda, meu coração perdeu uma batida. Aqueles poucos segundos te segurando no ar tiveram uma mágica que não acaba nunca. Seus cabelos pretos esvoaçando as ondas pelo vento. Os braços firmes agarrando meu pescoço. A risada ecoando, saltitante. O calor do sol nos nossos corpos, a brisa que corria pra compensar. Quando acertamos o chão...

Era noite e eu dirigia pra casa pela praia. Desliguei o rádio e abri a janela pra escutar o mar fazendo as ondas. Coloquei a mão esquerda pra fora, fiz ondas com ela também. O vento destruía meu cabelo e ardia em meus olhos,, mas eu não ligava. Cheguei, no elevador e o telefone tocou. Era você:

- Já-tô-subindo. Qual a situação?
- Ainda bem, é alerta vermelho. Não sei o que deu nele hoje, mas nem com todas as minhas energias eu consigo segurar.
- Fantasia?
- Homem-aranha. Pegou o fio dental e diz ser teia, joga o negócio pra todo lado. Higiene bucal garantida, pelo menos.
- Deixa comigo.

Abri a porta e dei de cara com o super-herói, que já inquiriu:

- Vilão ou mocinho!?
- Mocinho! Sou o Capitão de Terno. Vamo atacar a mamãe malvada? O umbigo é o ponto fraco.
- Vamoooooo!

E você não teve mais paz até às 22h30, quando levei o garoto pra cama e contei estória até ele dormir. Na hora em que voltei pra sala e deitei no seu colo, ganhei um beliscão. Mas o sorriso reprimido no canto da boca te denunciava. No que olhei pra janela...

A chuva estava tão forte que calculei: um segundo debaixo dela era o bastante pra ficar encharcado. O táxi chegou e a pequena corrida até ele demorou meio segundo pra desmentir minha teoria. Meio segundo foi o suficiente pra me deixar encharcado. O taxista não se incomodou, foi tocando o carro. Disse pra eu comprar um guarda-chuva e amarrar no braço.

- Por que amarrar?
- Guarda-chuva foge, não sabia?

Parou o carro e só então me dei conta de que não sabia pra onde estava indo. Quando ele freou em frente a uma casa, você estava no portão me esperando. Desci correndo e entrei ainda mais molhado, te agarrando pela cintura.

Sua mão segurou na minha e me deu calor. Disse que não era justo só um ficar molhado. pulou pra dentro da chuva e começou a dançar, me levando de volta pra calçada. Perguntou se eu ainda sabia todos os passos a nossa dança, mas não esperou resposta. Girou ao meu redor e fez dos pés borboletas.O corpo molhado colou no meu enquanto os lábios sussurravam:

- Ainda bem que você sempre esquece seu guarda-chuva.

***

Acordei com o peito pesado, porém me vesti pensando nas tarefas do dia. Peguei minhas chaves e sai, supostamente pronto pra tudo. Mas bastou uma pergunta pro meu disfarce cair. Joy, minha porteira, leu nos meus olhos que tinha alguma coisa diferente aquele dia.

- What's happening, boy? Are you ok?
- Ah, Joy. Parecia tão real... - respondi.

Ela não sabe nada de português. Mas acho que entendeu perfeitamente.



Quem sou eu

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"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto