sábado, 24 de setembro de 2011

Rituais




Meu antigo quarto, naquela meia-luz alaranjada da manhã, é um dos lugares mais confiáveis do mundo. Podia ser filosofia zen, mas é só um suspiro de alívio. Enquanto o que conheço é incerto, eu me seguro. Aquela sensação de marinheiro depois do retorno, já sentiu? Que anda quase caindo porque a terra firme engana. É esquisito perceber que normal, pra mim, é o sacudir do mundo.

Estalo partes do corpo em silêncio. Dedos, pés, joelhos, vértebra por vértebra. Lavo o rosto como se saísse água benta da torneira. Me batizo na pia. Lembro que sei rezar, apesar de não ser católico, a oração de São Cristovão. Ainda assim, quase sempre fico em um Pai Nosso enviesado. As pontas das unhas vagando pelo rosto. A imagem no espelho é dura enquanto mexo os lábios sem fazer som algum. Pai nosso que estais no céu... Ela está aí contigo? Nunca vou além disso. O dia precisa de mim. Então eu dou um sorriso sincero, e abro o peito pro que der e vier.

As fotos na parede, entrando e saindo de foco. Sorrisos. Aquilo conforta e o ritual já está tão enraizado que não preciso ver as fotos. Elas estão lá, não importa onde eu acorde. Imagens talhadas, caprichosamente, do lado de dentro dos olhos. Não, não preciso das fotos. Tudo o que preciso é de uma parede.

A roupa fica de prontidão, vestida sem muita convicção. Tirar o pijama é sempre uma dor. Desejo aquele conforto de coração, mas a camisa de algodão me abandona como o último helicóptero ao sair de Saigon. Cretina.

Checo o celular e ele às vezes dá boas notícias. Mensagens que chegaram de madrugada, coisas que escrevi e esqueci. No relógio de pulso, programo os dias. Ele lembra de ponderar e pesar as coisas. Tenho o péssimo hábito de me deixar levar pelas coisas bobas da vida. Amar demais, amar de menos. Olhar para a geladeira e refletir sobre o insólito enquanto decido se pego um copo de suco ou ataco o iogurte. Definir o rumo da minha vida. Começar ou não a construir meu carrinho de rolimã. Essas coisas. Sempre que exagero é porque estou sem o meu relógio. Preciso aprender a dormir com ele.

Antes de deixar a casa, vou até o baralho. Ele fica na minha mesa, o monte com os naipes virados para baixo. Embaralho rápido, puxo uma carta e aquilo será o meu dia. Sete de ouros, dama de copas, nove de espadas. Não faço a menor ideia do significado, mas me sinto um meio mágico. Adivinhando o meu dia com uma jogada. Na verdade olhar para aquelas cartas é saber que meu dia não faz o menor sentido. Ou você acha que um sete de ouros significa alguma coisa?

Lembro de quando aprendi meu primeiro truque de mágica. Adivinhar cartas, coisa simples. Como todo mundo, fiquei abismado de surpresa até o momento em que descobri como funcionava. Nunca, nunca vou esquecer as palavras do mágico que me ensinou aquilo. Não lembro o nome dele... Maurício? Carlos? Em um supermercado? No hospital? Marcos? Isso faz alguma diferença? Ele parou do meu lado, olhou no meu olho lá do alto da sua idade adulta e falou baixinho, concentrado, tendo certeza de que eu bebia as suas palavras.

- Viu como a mágica é igual à vida? O segredo é tudo o que você tem. O seu público depende dele, jamais o revele. Enquanto o mistério está lá, tudo brilha. Quando você mostra tudo... não passa de fumaça e espelhos.

O segredo, no fim, é o meu principal ritual. Começo quando piso na rua, quando fecho portão de casa atrás de mim. Eu sei que cada palavra da minha vida é uma armadilha. É uma tentativa de manter o truque. O resto do meu tempo vive em função disso, momentos esparsos de surpreender quem olha direto pra mim. Até o momento em que durmo e o espetáculo faz sua pausa. E não interessa o quanto achem que sou mais que sou. Lá no fundo, é só fumaça e espelhos. Até os rituais do dia seguinte.



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"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto