segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Magnólia - Parte II




Enquanto o vento batia no meu rosto, eu lembrava do dia em que a vi pela primeira vez. Eu estava exausto e suado, no segundo lance das escadas, acompanhado de dois caras do serviço de mudança e com o encosto do sofá cobrindo metade da minha cabeça. O olhar tímido dela espiava através da fresta da porta, entreaberta apenas alguns centímetros. Só percebi que estava sendo observado quando descarreguei o sofá na porta do apartamento. Quando olhei pra fração do rosto que me fitava, não soube o que fazer. Situação estranha, pensei, enquanto a encarava. Achei que a intimidaria. Mas ela não desviou o olhar.

- Entrei em casa rápido e fechei a porta, por via das dúvidas - falei, perdido em pensamentos enquanto olhava pela janela.
- Como é? - me perguntou o taxista que me conduzia estrada a fora. Ele me encarou por algum tempo, esperando resposta.

Contudo, mal ouvi. Continuei olhando pela janela. O pensamento bobo ainda dominando minha mente.

***

Uma semana depois de ter me tornado vizinho dela, tive uma certeza. A pessoa que morava ao meu lado tinha a vida tão silenciosa quanto possível. Eu podia ouvir o vizinho de cima gritando nos jogos do Flamengo. Podia ficar uma noite inteira acordado com a vizinha de baixo fazendo faxina de madrugada. Porra de enceradeira barulhenta. Contudo, nem um pio da moça ao lado. Fiquei curioso. Quem sabe ela não é uma serial killer? Ou traficante? Ou, muito pior, uma dessas pessoas que chamam a polícia quando você faz festa?

Quase dois meses depois, quando eu chegava em casa de madrugada, vi uma sombra que entrava no prédio, cambaleante. Desapareceu no elevador de serviço antes que eu chegasse perto. Ao chegar no meu andar, me assustei ao encontrar com a pessoa misteriosa ao lado da minha porta. Era ela, minha vizinha. Estava usando uma capa de chuva enlameada sobre a roupa. Na mão esquerda, uma chave quebrada. Vi um filete de sangue que escorria pela lateral da mão, vindo de dentro da manga. Estava exausta, como se tivesse disputado uma maratona. Mal se aguentava em pé. Sorriu pra mim.

- Não conta pro síndico, vizinho - ela pediu.
- Ahn... contar o que, moça?
- Que eu fiz o barulho enorme de madrugada.

O maxilar dela cravou no rosto enquanto ela rangia os dentes de raiva. Deus sete passos pesados e agarrou o extintor de incêndio no corredor. Voltou correndo, extintor agarrado sob os braços. Com uma única pancada violenta, usando o extintor como ariete, estraçalhou a fechadura da própria porta. O barulho, as lascas de madeira voando, a surpresa... tudo me deixou atordoado. Ela soltou o pesado extintor no chão, sem nenhuma cerimônia, completando a cena. Entrou no apartamento e me deixou parado na entrada, com cara de paspalho. Pisquei e, uns bons trinta segundos depois, fui atrás dela.

A sala de estar dela parecia ter sido atacada por bárbaros visigodos. Tudo estava meticulosamente destruído. Fiquei em dúvida se o sofá havia sido queimado antes ou depois de terem o partido ao meio. Cacos de vidro forravam o chão. O furacão Katrina teria muito o que aprender se visse aquela bagunça. Em cinco minutos ela voltou de um dos quartos com um vidro de álcool. Não pareceu surpresa por eu ter entrado. Tinha um revólver enorme na mão esquerda, aquela que pouco tempo atrás segurava uma chave quebrada.

- Eu te convidaria a sentar, mas não tenho mais sofá e estou de saída.
- O que aconteceu aqui?
- Decidi me mudar. Toma, você pode escutar agora, se quiser - disse, colocando uma fita K7 no meu bolso.
- Que é isso?
- Você ainda não tinha nascido quando inventaram a fita K7? Pra fora!

Ela me escoltou até a porta de entrada enquanto despejava um líquido de cheiro forte no chão. Pegou o extintor de incêndio ao sair e o colocou nos meus braços.

- Isso tudo tá muito doido - eu disse, novamento com cara de paspalho.
- Sabe o que tinha nesse apartamento? A chama de uma vela.
- Achei que era você, morando e pagando IPTU.
- Não! Eu sou fogo de artifício! - gritou, desesperada, a cinco centímetros do meu rosto.

Acendeu um isqueiro e o jogou lá dentro. O fogo começou instantaneamente, ela começou a ir embora. Caminhava calmamente, com aquela arma prateada apertada na mão que pingava sangue.

Os bombeiros demoraram a chegar, apaguei a maior parte do fogo sozinho. Os policiais ainda me seguraram durante uma hora inteira com perguntas para as quais eu não tinha resposta. Quem era ela? Como você mora aqui há dois meses e nunca a viu antes disso? Por que você torce pro Palmeiras? Sentei numa cadeira, cansado como nunca. Lembrei da fita K7. Demorei uma boa meia hora pra encontrar um walkman velho pra escutar aquilo. Antes de apertar o "Play", percebi o silêncio. Todos tinham ido embora do apartamento carbonizado ao lado do meu. Fui para o corredor e olhei pela porta entreaberta da minha ex-vizinha. Apesar do sol nascendo, lá dentro só havia o preto deixado pelas chamas.

Durante quase dois meses eu morei ao lado de uma sombra. Trancada dentro do apartamento ao lado durante a maior parte do dia por sete anos, os outros vizinho disseram. Tomava conta do laboratório de uma escola pela manhã, três horas de trabalho. Nunca recebeu uma visita. Nunca falou com nenhum vizinho. Não lembravam o nome dela. Matilde, parece. E ela se transforma em uma mulher fatal, armada e destruindo o apartamento. Tudo lá dentro perdido, com a exceção de uma foto que eu roubei. A única coisa intacta no meio do caos.

Por via das dúvidas, fechei o que sobrava da porta dela. E comecei a ouvir a fita.


Um comentário:

carollrtp disse...

ah, lucas, bem na hora da fita? :)

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"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto