segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Magnólia - Parte I




Ela tinha uma foto sobre a cabeceira da cama. Antiga e desbotada. Ela, não a foto. A foto ainda era jovem como um dia ela fora. Um par de sorrisos à beira do rio. Pés descalços, grama na saia. Gostava de me dizer que o dia daquela fotografia valera pelo resto de sua vida medíocre. E eu, bom, eu tenho que concordar que havia muita mediocridade nos dias de Magnólia. Ela era uma estrela apagada, vivendo de lembranças. Até aquele dia, com gosto de pólvora e álcool. Dizem que o último suspiro de alguém pode ser uma chama de uma vela ou fogos de artifícios, nunca um meio termo. Ao encarar a foto, escutando as notícias daquele dia louco pelo rádio, eu sorri. No fim, Magnólia foi tudo... menos medíocre.

***

Não se pode esperar muito de alguém com o nome de Magnólia. Um nome talhado para alguém que será tia e não muito mais que isso. Contudo, ela não era mulher de se entregar ao destino e, ainda jovem, resolveu que o mundo gritaria seu nome com respeito antes que a vida a deixasse. E começou bem. Apaixonou-se pelo enamorado ingrato, o gosto pelo errado. Seu pai, dono de um grande engenho de açúcar, a ensinara a manusear as engrenagens que conduziam seu pequeno império. Um tiro no pé.

Aos doze anos de idade, a habilidade dela fez nascer um mercado clandestino de cachaça na escolinha onde estudava. Ela fez a aguardente ferver o sangue dos novos. E ria com os adolescentes bêbados, futuros alcoólatras moldados por suas mãos macias. Berravam "Mag, desce uma! Porra, menina, desce logo todas!". Assim ficou conhecida na cidade. Mag "Desce Todas". Um nome de quem não vale nada, você tem que concordar. Assim foi o começo.

Aos quinze, colecionava escalpos e delitos. Vandalismo, agressão física, pequenos furtos. Uma lenda urbana diz que ela roubou todos os cones de trânsito da cidade em uma única noite. O pai empresário ainda tentava salvá-la do precipício pagando multas e fianças. Não daria certo. Alguma coisa em Magnólia não deixava a poeira se assentar. Ninguém conseguia enxergar além de sua superfície turbulenta. Ela só se agitava, desesperada, contra as pessoas em volta. Tudo o que conseguia dizer sobre si era uma frase difícil de decifrar.

- Eu tenho amor demais - falava, transpirando intensidade e sorrisos.

Quando completou dezessete, o amor venceu. Ela se apaixonou pela segunda vez, ainda com o fogo pelo errado dentro de si, por uma moça das delicadas. Helena, nenhum apelido, nenhum passado conhecido. Papai se cansou de Mag e a mandou pra fora de casa. Mamãe, lá no Céu, não podia ajudar. Então ela construiu o que pôde, sozinha. Elas viveram juntas perto do pequeno rio de águas turvas da cidade durante um ano inteiro. Compraram um terreno barato. Levantaram uma casa feita de um único cômodo. Encheram tudo com o amor que transbordava do corpo. Tiraram fotos. Muitas. Tantas que as paredes não precisaram ser pintadas. As imagens cobrindo cada centímetro. Exposição. Grãos de prata. Grãos de areia do rio. Pés descalços. Grama na saia.

Mag "Desce Todas" virou caixa de supermercado. Suava pra ganhar o seu salário em comida, que carregava pra casa ao fim do dia. Helena tentava ser fotógrafa, luta pesada para uma menina orfã que vivia da pensão de um salário mínimo paga pelo governo. Ela só tinha mais um ano até a fonte secar, completando 18. Quando criança, chorava pela mãe. Entendeu que chorar não resolvia. Morou em todos os lugares sujos do estado até parar naquela cidadezinha. Tirou sua primeira foto de Magnólia quando ela atravessava a rua em sua direção. E finalmente conseguiu seu primeiro lugar limpo no mundo. Uma quitinete no coração de Magnólia. Era o bastante pra ela. Ali, cavou sua cova sem saber.

Ao chegar do trabalho, Mag só percebeu o barulho das sirenes ao ver o grande caminhão vermelho do corpo de bombeiros estacionado de qualquer maneira sobre a grama. Caminhava pensando na noite que teria com sua pequena. Trabalhando em dois turnos, o patrão concordara em dar a ela um emprego de verdade. Pago com dinheiro! Tudo estaria resolvido pelos próximos meses. O caminhão a tirou do devaneio junto a uma lufada de calor, carregada pelo vento. Os bombeiros chegaram tarde, o trabalho era para evitar que o fogo se alastrasse. O desespero de Magnólia não deu nenhum resultado. O bombeiro a segurou com facilidade pelos ombros.

Fora tudo muito rápido. Uma chama e a casa virou uma labareda em menos de um minuto, o bombeiro disse. Havia uma quantidade incrível de nitrato ali. Os filmes fotográficos. E muito papel também. As fotos nas paredes. A vítima não conseguiu abrir a porta, o calor derreteu a maçaneta. Provavelmente ela estava dormindo quando começou o fogo. Fora tudo muito rápido. Um incêndio na beira do rio, comentou ele. A vida adora a ironia.

Magnólia olhava para a margem enquanto sua dor rugia nos braços do bombeiro. O reflexo do fogo tingiu as águas de laranja e vermelho. O lugar em que antes tinha amor foi arrancado do peito dela. O coração de menina se perdeu de vez. Ela se acalmou aos poucos, mas o bombeiro não a largou. Olhou nos olhos vidrados daquela criatura em seus braços e se sentiu perdido. Quanto a Magnólia... Por mais que ela tentasse ver beleza naquelas águas púrpuras onde seus olhos se perdiam, só enxergou sangue espalhado pelo rio.


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"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto