quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Sexo, o frágil - Rouge




- Não, Claudiney! É pra usar o vermelhão! Não me venha com esta porcaria.
- Mas dona Roberta, vai ficar parecendo uma amiga da Punk, a Levada da Breca.
- Não! Você é um viado que não entende de nada. Coloca que vai me rejuvenescer.
- Você quem sabe...

***

Soco na pia, mesmo sabendo que isso só vai deixar a mão inchada. Ele não vem, ela já sabe que ele não vem. Disparou quatro mensagens antes de chegar ao desespero. A primeira queria confirmar, ver se tava tudo certo. A segunda perguntava do vinho, se ele preferia mesmo o merlot, um cabernet-sauvignon cairia tão bem... A terceira foi só o horário que marcava no pulso, “23h48”. A quarta foi pra lembrá-lo de que só um grande filho-da-puta faz uma mulher sofrer na depilação íntima pra dar um bolo magistral daquele. Mesmo que as putas, coitadas, não tivessem nada a ver com aquele episódio triste.

Sentada, sozinha no apartamento pequeno que lhe coube na tão mal-acabada Copacabana, sentindo as virilhas arderem, começou um ritual de gritos e sacrifício de roupas. O vestido foi sendo arrasado com as unhas, as unhas foram se arrasando no vestido. No choro de raiva, salivava e desmontava a maquiagem. Não aguentou ver o que uns 60 anos lhe deixaram no espelho e ali, no reflexo, plantou com força o salto.

E sacudia a cabeça com violência pra negar que se sentir mulher dependesse tanto assim da sua vagina. Que ele ter sorrido e piscado era algo tão poderoso. Que ficar molhada do banho na cama, se masturbando por horas ao pensar no corpo dele, tivesse sido tão bom. Dois dedos no clítoris, “a língua dele devorando assim”, uma mão quase inteira dentro dela, “um volume nas calças, deve ser enorme, ain”.

- UM ENORME FILHO-DA-PUTA! UM MERDAAA!

Ainda que as putas, injustiçadas, estivessem montando sindicatos pra serem profissionais respeitadas e não tivessem nada a ver com aquilo. Tampouco os coliformes fecais do Rio de Janeiro.

Não era amor, saravá!, não, era carne e osso que ela queria. Fazia tanto tempo... Não suportava a ideia de ir a um baile da terceira idade. Menos ainda pagar pra fazer sexo, ainda que sua irmã mais velha oferecesse um cardápio de gigolôs no telefone. Queria a espontaneidade, a veracidade da sedução. Ser jogada na parede, despertar tesão genuíno, se empoderar do próprio corpo. Queria ser objeto, talvez até descartável, mas puta que pariu, que a descartassem depois de usar!

Seu Arnaldo subiu da portaria pra ver se ela estava bem. Ele morria de medo de algum velho morrer no seu turno. Bateu na porta, mas ela continuava em histeria lá dentro. Ela gritou pra ir embora, que ela estava bem, só estava chorando e “pouco apresentável” pra abrir a porta.

- Um parente morreu, Arnaldo! Sai daqui e me respeite, estou com o rouge todo lavado no rosto.

Em um relance de pensamento, ela julgou que ele jamais teria a sensibilidade pra entender que a ausência de sexo tinha se tornado o sexo dela. Um gênero neutro de libido, frustração e autopiedade. A profundidade do seu ser feminino violado por aquele grandessíssimo filho-de-uma-égua, ainda que as pobre éguas... Ele era mais um macho babaca com medo de ambulância, com medo da morte, não merecia ver a morte ali, no peito dela.

Quanto ao seu Arnaldo, desceu as escadas ponderando. "Foi melhor não lembrá-la que rouge está substituído por blush desde 1992".



Quem sou eu

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"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto