sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Fisio-pé-travessia




O infravermelho arde na pele, seca tudo por debaixo da pele. Apesar da mocinha perguntar, de tempos em tempos, se tá quente demais, Hermes não cansa de repetir o "está tudo bem". Nunca quis ser um velho reclamão e manteria o sorriso, ainda que isso lhe rendesse uma queimadura leve.

Gostava daquele lugar. Não era como um bospital, cheio de gente morrendo. Tava mais pro lar de pessoas que se agarravam na vida. Alguns jovens, muitos velhos como ele. Problemas nas mãos, nos joelhos, nas costas. Uma loja de dores variadas, um arsenal de luzes e pesos e choques anestésicos.

O pé dele latejava. Queria caminhar mais longe, pular mais alto. Mas a idade não era a desse tempo. Aprendeu a se contentar com as flexões do coração, ainda elástico, que desenvolvia paixões subitas por temas novos e mulheres mais aind. Aprendeu a domar o peito e, apesar das queimaduras leves ali também, sorria. O pé ficava pronto pra novas travessias.

O homem, deus grego da mensagem, um homem. Não se fazem mais Hermes. Nem Adamastores. Nem carburadores. O tempo é engraçado, feito de fores, dores, o alívio que vem de rancores, estirado, jeito com cores, hóstia sagrada nas mãos do pastores. E rimas fracas. O tempo precisa do calor de um infravermelho, pensou, olhando fundo dentro da luz escarlate.




sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Espumas ao Vento




Tirando as coisas da mala, Clara pensava no emprego novo a na vida que se assentava, até agarrar um pedaço de plástico mole e frio. Gritou e recuou, achou primeiro que fosse um bicho infiltrado na bagagem. Pegou a vassoura. Mirou direitinho e aplicou toda a força. Mas depois de quatro vassouradas firmes no local e 10 minutos de observação cautelosa, foi, pé ante pé, checar que diabos era aquilo.

Escondido entre duas toalhas, um pote de sabonete líquido. Não era exatamente seu, mas um pseudo-presente daquele amor recém rompido. Ai, fisgadas! Ali, qualquer ser humano entende o que sentem as carpas preciosas, os marlins brutos, quando pegos pelo anzol do pescador de lembranças. Puxados pra fora do seu habitat, respirando o ar gelado. O cheiro daquele sabonete... o cheiro dele. O que a gente faz com isso? Podia ter dado pra alguém, qualquer alguém.

- Vou dar é porra nenhuma! Eu preciso de sabonete. Descolo uma daquelas esponjas. Forte, serei o "Velho e o Mar", pra que Hemingway narre meus contos de dor e fúria contra o inevitável. Serei poética. E limpinha também, que esse negócio ainda serve como esfoliante!

E na prateleira do banheiro ficou o vidro, e usado foi o sabonete. Na primeira vez, Clara sentiu cada lufada daquele perfume. Lhe emaranhava na alma, trazendo o bom do amor a galope pro box minúsculo. Ainda assim, enfrentou a dor da perda durante o banho. Como Elza Soares, cantou "Espumas ao Vento" chorando de dar dó. Mas não deixou cair uma gota de sabonete no chão.

Em uma das vezes, usou com a sobrinha, que se sujou toda de tinta guache. Glup. Outro dia, uma amiga precisou de uma ducha pós-balada. Glup. Naquela semana terrível de trabalho, ficou um tempão debaixo do chuveiro. Glup. Quando o novo date veio passar a noite, a água correu entre os dois com calma. Glup.

Um gole depois do outro, foi assim que a vida bebeu todo aquele líquido. Ela se deu conta em uma manhã comum, de um banho comum, do conteúdo do vidro em seu último suspiro. Ficou com os olhos estáticos, perdidos naquele pedaço mole e frio de plástico nas mãos. O perfume dele ainda emanava dali... Não, não era mais o perfume dele. Era da sobrinha, da amiga, do date, dela. Levado pela água, em memórias distintas, a dor da perda cicatrizando um pouco mais. Tudo era ele. Nada era ele. Se dissolveu na pele.

Jogou o pote fora, se ajeitou pro trabalho. No trem, sacode-pra-lá-sacode-pra-cá, o celular tocou:

- Oi, Clarinha! Como você tá? Vai hoje lá nas meninas?
- Oi! Vou sim, tá tudo lim... hahahahahaha! TUDO LIMPEZA! Hahaha! Pera aí, já te ligo.

Riu sozinha por mais quatro estações antes de retornar o telefonema.


sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Inclusive...




Eu tô olhando pra você.

Mas é só uma foto, então não sei se vale.
Mas não é exatamente uma foto, é apenas uma imagem no computador.
Mas não tenho computador aqui, tudo isso está na minha memória.
Acho que eu tenho uma memória intensa.

Inclusive pro que não se olha. Lembro do gosto do seu perfume, da textura da sua voz.

É engraçado como a gente ama parecido e diferente ao mesmo tempo, né? O sentimento é tão familiar e sempre tão novo, tão único. Amei mulheres, lugares, momentos. Amei tempos, homens, pequenos objetos. Palavras.

Fui sutilmente perdoado esses dias. De erros profundos daqueles dias turbulentos, consegui pedir desculpas. Não por mim, mas pelo respeito que devo a quem se feriu pelas minhas facas. Parece que o perdão veio de volta, pela corda bamba, a seu próprio jeito e forma. Existe amor nisso também.

A sua gratidão me semeou por inteiro. Lembro do bom antes de tudo, quase sempre. De quem eu deixei ficar e de quem eu tirei, inclusive. Tô longe, em uma aventura na cidade cinza. Que a gente odiava, lembra? Agora outros amores me ensinam a gostar cada vez mais daqui.

E o amor, nessa rosa de cores em profusão, parece ser cada vez mais o branco de Oxalá dessa sexta-feira.



quinta-feira, 12 de novembro de 2015

100oooooooor




- Tem maca? Só vou se tiver maca.
- Que isso, cara! É uma baladinha.
- Você não tá entendendo, quero sair de lá inconsciente. Mas gosto de ser carregado com conforto.
- Um brinde a isso!
- Mazel tov!

As cores vem e vão pela noite sob aquela tenda de batidas agudas, alternadas. Tinha o cidadão cantando a plenos pulmões, arrancando da garganta toda poeira de semans de ar-condicionado no serviço. Como é minimalista, o mundo da curtição noturna... tantas luzes disfarçando laços sendo construídos e desfeitos, Observar é como pegar a pipoca e ir passear no Zoológico: não dá pra ter certeza se é bom, mas é certamente interessante.

E selvagem.
É cada beijo.
Olha que frenético.
Será que eu danço divertido assim?
Se der mole, vou mandar uma coisa bem jovem pelo Whatsapp.

- Sabe o que eu não entendo dessas escritas de Whatsapp?
- Não, o que?
- O "socórrrr". É meio chatão, parece que tão chamando minha tia Socorro.
- Você tem uma tia Socorro?
- Não, mas poderia ter.
- Eu nunca vou entender o "100ooooor!". É bom, mas muito vanguardista..
- Como é isso?
- Tem esse post. É de um moleque do meu Muay Thai. No Facebook ele atende como Markinhos Malkriado. Sim, dois "k"s seguidos. Aí ele posta foto com pacotes de dinheiro. Tal qual apreensão da Polícia Federal, sabe? E o primeiro comentário era "100ooooor!".
- Realmente. Vanguardista.

Acaba o batidão, entra um DJ de bigode. Bom sinal. Se tem bigode, sabe o que tá fazendo. Nem que seja cagada, será uma consciente.

- E a Marina?
- Não vai andar. Não tô na dela.
- Nem pra dar uma chance?
- Cara, ela veio pra mim ontem, disse "quero te ver!". Eu achei que fosse o trecho de alguma música do Kid Abelha.
- 100oooooooooor!
- É. e bota um socórrrr nisso aí.

Distribuíram serpentinas; Começou a tocar Los Hermanos das antigas. Largamos as bebidas e fomos dançar. E assim como começou, sem nexo e colorida, a noite continuou pra nós.


domingo, 1 de novembro de 2015

Saudade Bruta




Sentado aqui na minha janela, em reflexões movidas a chocolate quente, percebo.

O jogo não acaba. "Que que ela pensaria?", "O que ela ia dizer?", "Quem ela seria?". Da ausência só vive saudade bruta. Advinhar a pessoa impossível. O tempo te mudou em todos os beijos que não te dei. E sinto falta de quem você poderia ter sido.

Sem me dar conta, uma vez te decifrei e te expliquei da melhor forma imaginável.

- Me fala um pouco sobre ela... Como ela era?
- Ela... Ela era uma força da Natureza.

Em cada ponto cardeal, Gaia, visceral e selvagem, te venero.

Novembro. O primeiro dia foi de chuva, e acho que foi bom, um dia bom. Você teria gostado. Você sempre gostou. Você está gostando, só pode. Afinal, eu vejo seu sorriso, reconfortante e precioso, por todos os lados.



quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Detetive




É engraçado como a gente vira detetive, pensou Sérgio, enquanto arrumava a casa. Era um tal de achar cabelos, de perceber cheiros, de esbarrar em provas cabais de que ela esteve ali. Esteve, presente, não um leve passar. E a vassoura se emaranhava com um brinco esquecido, vinha o sorriso de canto. Aquilo parecia ou uma estratégia gasta, ou um descaso muito grande com jóias. Já tinha devolvido uma pulseira, um anel e três chuchinhas de cabelo.

Levando o lixo pra baixo, toma uma intimada do porteiro.

- A menina saiu que nem um furacão, sinhô Sérgio! Tá com muito fôlego pra alcançar aquela ali, hein? Hahahaha!
- Para de ser sem-vergonha, Aroldo! Nem venha com intimidades.

Mas por dentro riu. Era como se um tratamento novo estivesse sendo desenvolvido pra uma doença que não se conhecia, nem tinha cura. Um admirar calmo que preenchia tanto, alegrava tanto.

Que sofrimento de ausência dá no peito quando se olha fundo no espelho do banheiro... Os amores rondando, tubarões, famintos, enquanto ele nadava em seu córrego de ingenuidade. Fotografou, colheu digitais, concluiu: estou no meio do caminho. O amor não foi, o amor não veio. O amor está, e se transformando, a beleza das suas míriades e rapsódias fica completa.

O anteparo do querer. Sem se preocupar, sem expectativas. Sérgio estava vivendo seus ajustes. Parecia um motorista de caminhão dirigindo um fusca. Tudo automóvel, tudo diferente.

Sentou no sofá e admirou o brinco. Estava divertido ser detetive. Ainda mais à procura de uma coisa que nunca perdemos.



sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Amarelo-queimado




A gente acorda um dia e se dá conta que aposentaram uma cor.

Sem FGTS, sem abono pela insalubridade. No meu tempo, o amarelo-queimado trabalhava duro. Era tudo o que o amarelo comum não podia ser. Sóbrio, sem essa pinta animada demais que o amarelo normalmente tem, sabe? É isso. Um amarelo mais tiozão do churrasco. O amarelo que não precisa de Red Bull.

Não sei se ele disfarça com outro nome. Tal qual o lilás, que atua sob pseudônimo de 'roxinho' hoje em dia. Li esses dias sobre um homem que usou um drone com barbante pra arrancar o dente da filha. Sim. Tem isso acontecendo. Até isso. Mas nada do amarelo-queimado.

O que será dos sobretons, eu não sei. O girassol não vai ter suas sombras, o sol também terá que se contentar com o laranja em seus raios. O ouro não parecerá real. É tudo menos sólido, menos vívido. Como se o mundo tivesse esquecido que um pouco menos de brilho às vezes nos dá perspectiva. Aqueles cantos que não eram maravilhosos precisam ser revelados, as falhas e hiatos, expostos. O amarelo-queimado é uma lupa. É a verdade que falta ser encarada. Tem dias em que eu me pintaria inteiro com ele.



sábado, 29 de agosto de 2015

Marujos - Submarino no horizonte




Parecia uma dupla de homens tentando instalar uma máquina de lavar. Não era. Era filosofia profunda camuflada de trabalho braçal. Chaves de fenda e veda-rosca estavam ali como qualquer objeto poderia estar. Navegávamos.

O quanto desse homem há em mim?

Tem ali muito de contemplação do mar. Reluzente, o sorriso sobe e desce em compasso. Apesar de tantas falhas flutuando, isso pelo jeito nunca muda. Quando ele chega cheio de alegria, inesperado e abrupto, todas as velas se abrem, histórias emanam. Tantas e tão incríveis que ninguém sabe onde começa a verdade e acaba a ficção. Como aquela impressão imprecisa de um periscópio lá longe, traindo o submarino no horizonte.

Há tempos eu não tento mais descobrir o que foi e o que é falso, a questão não me preocupa nele. Na verdade até fascina. Mergulho mil léguas naquele que é raso em alguns pontos, abissal em outros.

Não acho que se esconder assim seja vício, parece ser parte. Uma couraça enferrujada e imponente que se perdeu em mares profundos de si mesmo, na ânsia de maravilhar. Só de emergir à superfície levanta suspiros, espalha as águas turvas. E cada palavra trocada, do abraço até despedida, tudo tem significados e desdobramentos. Códigos em morse que só nós entendemos.

- Disse "egoista!", mesmo eu tendo me oferecido a me afastar, deixá-la recomeçar e ser feliz com outro, enquanto o amor rasgava meu peito. Shiva, lembra?
- Shiva, o Deus da Morte.
- Ganges em meus ombros, tanta dor sem lar.
- Ó, sou acusado de muita coisa que realmente sou, inclusive de egoísta, que só admito ser pra mim. E agora pra você. Você é diferente disso, não é um egoísta.
- Não sei. Sei que com ela eu jamais fui.
- Deslizou?
- Só se tentar ser feliz com outros, em outros, para outros for deslize. Depois de tudo acbado. Eram só remendos, eu sabia. Quem não tem direito de tapar furos no balão com os dedos, mesmo sabendo que não vai dar certo?
- Drift não é derrapada, filho.
- Quando você me chama de filho, soa estranho que só a porra.
- E de babaca, caí melhor?
- Sem dúvida.
- Fogo-fátuo.
- Sim, fogo-fátuo.
- Em todo ser humano, a necessidade de se esquivar. Lembra quando você era o Esquivo? Filho, você já teve tantos nomes...

Eu nem recordava disso e como ele, logo ele, lembrava eu não faço ideia. Teve mesmo um tempo em que eu me disfarçava de tudo.

- Por que você mente tanto, pai?

Ele riu um riso triste, o canto de um lamento.

- A mentira ou a verdade são escolhas calculadas. Sou folclore em você e em todo mundo que eu conheço. Dói mais não saber quem é seu pai ou descobrir que seu pai não é quem você gostaria? Sereias existem. Você quer provar que é real sendo uma, como eu já fui. Quantos corações magoados nós deixamos pelo caminho nessa busca... Incontáveis. Não interessa que você emocione, encante, doe, compartilhe. Se não tem fato vai ser visto qual falsidade, é assim que o vento sopra. Independe das quilhas que use, ficção é uma coisa e mentira é outra. Você não fez essa pergunta pra mim, filho. Você fez essa pergunta pra si mesmo.

E é claro que fiz a pergunta errada. Desde o início, não é o que tem dele em mim. O marujo insólito da família, um mistério inexorável ou apenas o homem comum e falho. Em um só, dois. A pergunta... qual é a pergunta...

Quanto deste homem é o que é e quanto dele é o que eu inventei?


domingo, 26 de julho de 2015

Denúncia: Jovem-correria, a verdade revelada!




Roteiro BLOCO 3
(*escrito à mão, na lateral da página, "Alguém avisa o Robério que isso que ele chama de maquiagem tá ridículo. Menos pó pra dentro do nariz, mais pó nas olheiras")

RODA VINHETA.
RODA TRILHA FEITA EM TECLADO DE CHURRASCARIA.


ABRE CÂMERA 2. SOLTA O TP. VAI ROBÉRIO.
- Uma realidade surpreendete! (ENTRA O PRIMEIRO "PAM").
- Chocante! (ENTRA O SEGUNDO "PAM")
- Assustadora! (ENTRA O "PAAAAAM" FINAL E PROLONGADO).

CORTA PARA CÂMERA 1

- O jovem-correria se esconde bem na sua cara, cidadão de bem. Um sujeito que passa despercebido. Não, não é como o mendigo ou o bêbado da esquina. Esses você olha, se tiver compaixão sente uma dor no peito, e então pensa "É problema do governo ou de alguma outra pessoa que não eu".

- Já o jovem-correria é sim de rua, porém treinado na sorrateira arte da camunflagem social. As estatísticas só resvalam no seu corpo indefinido e coberto por DRO-GAS. Sim. Eles compram na Renner. Riachuelo. C&A. E pasmem. Na Otoch. Mesmo com anos de menos consegue emprego se dizendo "estagiário". E só foi descoberto pela nossa equipe por ter feito o elevador da TV travar com excesso de passageiros. Veja na reportagem!!!

RODA VT.

Mochila de nylon, calça jeans da feira, camisa pólo sem jacarezinho. O jovem-correria é um indivíduo com hábitos peculiares. Até hoje especialistas só sabiam que ele completa o shampoo com água quando o produto tá no finzinho. Descobrimos que ele também escreve "xampú" ao invés de "shampoo", entre outras verdades impactantes.

Você sabia que é ele o responsável por toda essa bagunça de passe estudantil, por exemplo?

Muito da invisibilidade do jovem-correria está na capacidade de acumular sub-empregos. Estágio é o mais comum. Mas volta e meia o jovem-correria tá com alguma coisa pra fazer rolo, seja dele ou de "um conhecido". Avon, brigadeiro, Herba Life, pen drive ou salada de fruta. Tem também aquele bico de operador de telemarketing, produtor de eventos dos vizinhos, estoquista em loja e o clássico rapaz do xeróx.

Nos hábitos de consumo, a ilegalidade corre solta: em seu celular, todos os episódios de séries televisivas populares como Game of Thrones em baixíssima resolução. Mal dá pra saber que o anão é um anão, de tanto pixel. Também é fácil achar músicas dos vândalos incitadores Emicida, Criolo Doido, Marcello Gugu e MC Guimê. Dá pra ver só pelo nome que ninguém dessa trupe presta.

Outro detalhe que surpreende no jovem-correria é a capacidade de sempre morar em lugar que tem enchente. Repare bem nessa imagem feita em Itaquera. Tá vendo boiando aquela apostila xerocada de faculdade feita à distância? Indício claro de que tem jovem-correria ali.

"O sentido da vida é pá frente!", frase comum entre essa gente, é só uma entre muitas expressões que vão te ajudar a identificar o sujeito. Preparamos um pequeno glossário. Veja.

- TÔ AJUDANDO UM PRIMO A VENDER ESSES PEN DRIVES.

- VOU TER QUE FAZER ESSE CORRE PRA FECHAR O MÊS.

- ESSE ANO NÃO VAI DAR, MENSALIDADE DA FACUL SUBIU.

- COLEI LÁ NA BATALHA DE MCs, CUSTOU SÓ CINCÃO PRA ENTRAR.

- A MARMITA É MINHA MÃE QUE FAZ, EU SÓ COMPRO AS COISAS.

VOLTA ESTÚDIOABRE CÂMERA 1. SOLTA O TP. VAI ROBÉRIO BABACA! QUEM ESCREVE O ROTEIRO É ESTAGIÁRIO QUE MORA NA VILA ZILDA, SEU BOSTA.

- Muito esclarecedora essa matéria, gente. É importante acompanhar essas curiosidades da nossa sociedade, esperamos agora que esse povo ganhe dinheiro e cultura pra melhorar nosso país.
A gente tem que acabar com qualquer tipo de rolezinho, que tira a paz do trabalhador brasileiro, e tenho certeza que esse jovem-correria tá sempre lá. Sem nunca ter praticado um hipismo, estourado uma champanha. É falta de oportunidade que esse pessoal sofre.

- Agora vamos falar de coisa boa? Tem creche nova para seu cãozinho também em Moema! Veja na reportagem!!!


sábado, 18 de julho de 2015

Marcha Atlética




Um dia desses eu ia embora do trabalho, o que quer dizer que eu caminhava.
Olhos no chão, cansaço.

Do meu lado veio uma menina. E o perfume dela me abraçou como a um velho amigo... Quando levantei a cabeça ela já tinha me ultrapassado. Dei de cara com suas costas, espáduas firmes do mistério. O cabelo caia em uma cascata suave de fios pretos, sacudindo pra lá e pra cá no ritmo dos passos. A distração musical do meu headfone ou o efeito hipnotizante do perfume dela a deixaram dez passos na minha frente. E dá-lhe pernada. Se ela tivesse um papel com números no peito, certeza que estava competindo em marcha atlética.

E eu ali, no meu rumo e torci que ela fosse pelo mesmo. Curioso. Não sei, essas coisas que dão. Ela parecia ser bonita. Não, é quase isso. Parecia ser alguém que eu deveria saber se era bonita. E ao mesmo tempo em que ficava feliz por tê-la indo pra onde eu ia, malditos dez passos atrás!, ou corria pra olhar o rosto da criatura ou caminhava o mais rápido que podia pra alcançá-la.

Me senti o clássico perseguidor de sobretudo nos filmes, o vilão de uma história em quadrinhos. A cada esquina dobrada achava um detalhe novo naquela silhueta. Uma nova pista. Olha ali, ela anda tão duro, os passos ecoando. Elegante. Tira o cabelo dos olhos, mas não é neurótica com o vento. Gente assim tem que ser bonita. Não tem? O que eu acho bonito mesmo... É ser bonito. Tá bem, me perco com frequência nas ciências que crio. E quando ambos estávamos no mesmo ponto, o de ônibus, vi minha chance.

Ela chegou lá já esticando pescoço, fez sinal com o dedo, se misturou no bolo/fila. Levou sete segundos pra embarcar. Sete. Estaria ao lado dela em quatro, se quisesse. Mas fiquei ali nos meus dez passos de segurança. Minha cabeça substituiu o "distância" por "segurança" sem que me desse conta. E por que?

Olhei placidamente quando ela colocou uma mão na bolsa, tirou o dinheiro da passagem, entrou pela porta, sumiu. Olhei placidamente meu desejo de descoberta partir com naqueles momento. Me conheci um pouco melhor ali, sem me preocupar com beldades em pessoas ou no mundo. Queria a beleza daquele pedacinho de história em mim. O olhos e lábios e sorrisos eram menores que a preciosidade de seguir com a pequena dúvida. De ter vivido a beleza, mais do que olhá-la. Como a magnitude que antecede o ato: o arco em riste com flecha retesada antes do disparo, aquela coragem que dá antes de partir pra jornada, o medo que vem antes do primeiro beijo.

É ser bonito. E escolher um bom perfume, claro.


quarta-feira, 17 de junho de 2015

Microconto do marshmallow




Fazia tempo que não via estrelas, apesar de não ter tanto tempo assim que olhou pro céu de noite. Nas saias do povo que ia a e vinha pela cozinha, dava pra ver como era agitado o negócio de festa da roça. Pamonha brava, chinela furiosa, planc e tundam de travessa batendo na mesa. Chiados de pão de queijo na forma, moleques com seus pés lambrecados, o uso constante da palavra "lambrecado".

Em sua afronta, não ligou. No seu espeto, acima da fogueira, tava o mais americanizado e artificial marshmallow de toda a região.



terça-feira, 5 de maio de 2015

Marujos - Um Brinde





- Alôôô, ei! Hahaha! Sim, segura aí o som. Tenho umas coisas pra dizer. Calem a boca, que "aaaaaaah!" que nada.  Hahahahaha! Cade os copos de vocês?! Isso. Pega lá. Não, você também! Larga ele e pega seu copo. Porque eu tô mandando. Quem te convidou? Eu não fui. Isso, copos erguidos! Agora, um brinde!


Até aqui tomamos caminhos muito diferentes. Somos muito diferentes e vamos sempre ser. Mas temos o sobrenome que vem primeiro. Não tem leme nessa vida, por isso o nosso sobrenome tomou o Norte deste barco. Lucas são muitos. Doca, não. Onde eu fui, fui o Doca. E a gente foi pra tudo o que é lado, né?

França, Portugal, Jamaica, Nova York. Você pra fazer mais flexões com o cérebro, eu... sei lá, porque eu queria beijar uma menina de cada país diferente! Hahaha! Sentir a faca entre os dentes, tocar o mar com os dedos como se fossem quilha do destino. E bradar com as canções de... de... argh.


Mentira. Não é só isso... corremos atrás da independência, cada um queria se tornar um homem forte, nos moldes de um pai que nunca esteve. Dar orgulho pra mãe que lutou por dois. A gente queria ser os Docas que valem a pena. Cada um por si, Deus não se metendo nessa história. Eu queria, a gente queria. O que encontramos? Até aqui, é o pó de um nome que corre pelos alísios.

Você me mostrou isso na sua sala de professor com cheiro de madeira nova. De todos os lugares em que eu estive, foi ali, naquela sala que eu descobri. Que enquanto navegava a sotavento pelo desconhecido, eu me sentia o cara mais sozinho do mundo. E você, a barlavento, você se sentia igual. Somos irmãos, afinal, no abandono profundo. 

Os únicos Docas. Aqui e onde mais, somos os que valeräo a pena. Os que nunca tiveram um lar, sob uma família inteira com nome de porto e que nunca teve um porto de verdade. Naquela sala eu recuperei um irmão, um homem melhor do que o que partiu, que me pediu desculpas e tem um amor pra dividir a vida daqui em diante.

Olha onde você está! Mais perto do porto que eu jamais estive. Daquelas Docas onde estacionarei, águas mansas e seguras, a família. A fogueira no quintal onde vou me sentar e contar histórias de popa e proa para os marinheiros de primeira viagem. Você tá tão perto. Cruzando esta enseada, o lar. O tão sonhado lar!

Um brinde a você, marújo.



segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Marujos - 5.000 horas de Céu




"Of Sea-Captains young or old, and the Mates - and of all intrepid Sailors;      
The few very choice, taciturn, whom fate can never surprise, nor death dismay,      
Pick’d sparingly, without noise, by thee, old Ocean—chosen by thee,      
Thou Sea, that pickest and cullest the race, in Time, and unitest Nations!       
Suckled by thee, old husky Nurse—embodying thee!       
Indomitable, untamed as thee."        
Song for All Seas,             
Walt Whitman             




As mãos dele estão duras e tremem. Quando caminha pra pegar as chaves do antiquíssimo Toyota Bandeirante, dá pra ver como o tempo está castigando os joelhos que antes eram pilares de uma família inteira. Subo naquela peça de museu e sorrio quando ele sorri. O cheiro do couro antigo lembrando que tudo ali é selvagem e cru. Volante de madeira, os pedais de ferro fundido e aquele motor de 6 cilindros que fazia tudo vibrar. O ronco de um urso debaixo do capô. Os dentes dele vão se mostrando cada vez mais pelos lábios rachados de sol... Solta uma gargalhada contagiosa quando engata a primeira.

- O senhor tem certeza que a gente não pode sair nem um pouquinho? Aqui no sítio mesmo. Até o laguinho e daí a gente volta.
- Não, sua vó proibiu. Desde que o Detran tomou minha carteira, só ela pilota nessa casa, hahaha! E está certa. Eu vou acabar atropelando algum ganso. O tempo é um rosto na água.
- "Os olhos obliquos a cada novo aniversário", a ironia dobrando a esquina.
- Como você bem sabe, a ironia tem mais de 6 cilindros.
- Por que a vó deu pra criar ganso mesmo?
- E eu lá sei, Douglas. Ana Maria é a terra. Eu sou a nuvem.
- E eu sou o Lucas, vô.
- Não é não.

Nossos olhos marejam, claro. Entre eu e aquele velho homem, um câmbio adornado em osso e uma intimidade que ele nunca teve com seus filhos. Eu quero abrir o peito dele, mergulhar em cada nuvem pela qual passou, Ser aquele rosto craquelado, aquela voz rouca de quem comeu vento por anos. Em uma caderneta antiga, são 5.000 horas de céu anotadas por entre Brasil e arredores, histórias de guerra. As balas que ele me deu são de canela e nas suas próprias canelas estão as marcas das balas que ganhou. Somos ironias que a vida dobrou na esquina.

- Alfa six, click-clakc, I'm on your tail.
- Evasiva! Evasiva!
- Estamos expostos!

E fazemos daquela caminhoneta ancestral, ligada numa garagem em um sítio, nosso aeroplano em pleno plano de voo. Desviamos do ataque inimigo, voamos pelo Havaí e decidimos que nossa rota poderia ser muito bem acompanhada da voz do Sinatra. Que sorte o avião ter um toca-fitas e uma K7 no porta-luvas. Cantamos. Talvez o melhor hábito de família depois da contação de histórias.

- I say thaaaaat's life!
- Thaaaaaaaaat's liiiiiiiiiiife! - eu fazia o backing vocal, naturalmente. Não se compete com um barítono veterano de combate.

Rimos como dois meninos porque ali éramos dois meninos. Abaixando flaps de profundidade e dançando sobre assentos originais de preço incalculável. Duas coisas bem distintas, uma preço e outra é o valor. Quem não sabe a diferença, pouco saberá do amor. Repetimos isso assintosamente. Alguem iria nos desafiar?

Minha avó, chamando pro pudim de laranja. Na pressa de desligar o carro e ir correndo pegar o maior pedaço, ele ainda desengata o Toyota com o pé na embreagem e o parachoque dá uma bitoca empolgada no muro. Congelamos por um segundo.

- É caso de amor antigo, eles vivem se beijando. Não conta pra sua vó. E eu vou pegar aquele pudim inteiro!
- Não vai não que eu sou visita, velho safado!

Na hora de ir embora, ele continuava no cochilo pós-lanche, ressonando como um certo motor de 6 cilindros. Um urso debaixo do capô. Fui deixar um beijo na cozinheira risonha antes de pegar a estrada.

- Vó, ele me chamou o dia todo de Douglas.
- Chamou?! - e seus olhos se entortaram pra baixo, junto com eles os dois lábios se apertando. Lágrimas na linha de largada das pálpebras.
- Vó! O que foi?
- Quando eu conheci seu avô, ele me chamava de Douglinha, Douglinhana. Seu tio Estevão já foi o Douglão Calado.
- Eu não ent...
- Douglas C47 Skytrain, o avião. O avião em que ele navegou e desmontou e remontou milhares de vezes. O maior amor da vida dele.
- As 5.000 horas de céu...
- Ah meu neto!, eu sou terra. E seu avó sempre será nuvem.
- ............................................................ sempre será nuvem, é, eu sei.



No nosso abraço e pelos nossos rostos, a água salgada por onde até os marujos mais corajosos temem navegar.




Quem sou eu

Minha foto
"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto