sexta-feira, 2 de novembro de 2018

O Adeus e a Memória




O texto que está na última postagem, Marujos - Locomotivas, foi o último que escrevi e será o último que publicarei neste pequeno e maravilhoso blog. Isso é uma despedida, amigos.

Me Lasco Todo Dia - Quando se dar mal vira uma arte. Este espaço muito peculiar da internet começou como uma página em branco pra um menino muito perdido e com uma dor gigantesca, lá em 2008. Não fazia ideia disso quando comecei, mas esse blog foi uma parte vital de reconstrução pessoal, após a perda de uma pessoa muito, muito especial. Maria Cecília, ou Marci (pra mim), ou Ceci (pro André), ou Ciça (pra turma da rua), faleceu em 2006.

Dois anos depois, ainda catando os cacos de mim, comecei a colocá-los em palavras. Aqui, bem aqui. Só em 2010 elas começaram a vir aos borbotões, misturadas entre ficção e realidade. Vi como isso me fazia bem. Me conheci, aprendi a usar minhas sílabas, entendi várias camadas de dor que eu tinha ao longo desses textos. E dez anos depois, após 117 crônicas e contos, vi que não havia mais o que ser dito. Não aqui.

Esse blog cumpriu sua função em mim. Do pior ao melhor texto, eu não mudaria uma vírgula. Então ele ficará pra sempre, como uma grandiosa e bonita memória de uma jornada incrível.

Agradeço aos surpreendentemente numerosos e em sua maioria desconhecidos leitores do Me Lasco.  Apesar de praticamente nunca ter divulgado meus textos (me restringindo a uma única postagem no meu facebook por texto), vocês chegaram e às centenas, em alguns anos passando de mil ao mês. Isso é muito doido. Não faço nem ideia do que encontraram nestas terras. Mas tomara que tenha sido tão divertido pra vocês quanto foi pra mim.

Até a próxima curva dessa estrada de ferro.
Choo-choo, disse o menino-trem.



Marujos - Locomotivas




2017

Eu acho (e acho como quem sabe que isso não é de muita valia) que o tempo todo eu sou mais de uma pessoa. Que essas vastas e inconstantes personalidades são queimadas como carvão, viram fumaça sem cheiro ou cor. Quero me misturar em todos através disso. Mas não controlo nada além das minhas próprias palavras. Não sou dono de mim. Sou o transe em que você entra quando escuta a voz da sua mãe. Sou o quarto fechado e empoeirado que você tem preguiça de abrir por saber que vai espirrar.

Gosto de esquecer de coisas  boas e que alguém que amo me lembre delas. Sou o meu próprio medo de apertar demais alguma coisa. E me sinto o tempo todo em um mar de papel. Tem horas que isso é lindo, horas em que é assustador.

Tenho problemas com a retidão da verdade. Mas nunca fui tão honesto na vida. Sinto a força disso. Só que ainda não gosto dela.

Cadafalso, a minha palavra. Me escuta, é importante. Fui eu, confesso. Outro dia, outro lugar. Aqui se faz, aqui se paga.

Não é que eu não me importei. O "oi" fez falta, sim. Mas eu estava preparado se ele não viesse, como não veio. As palavras têm um peso e uma força que nunca vou compreender de todo. Mas o instinto de proteção que criei, desse eu manjo. É baseado num jogo de probabilidades que inventei. Onde não espero nada de ninguém. Onde crio meu próprio ninho.

2018

Me forjei em alguém além de qualquer coisa que esperava. Sei nem dizer como. Mas agora, enquanto percorro meus trilhos e o vento sacode meu cabelo, eu estou sorrindo por dentro e por fora.

Meus amigos estão aqui, nos vagões coloridos e classudos, nas poltronas e nas cabines. Todos eles são um só comigo. Acenando pelas janelas, enquanto o mundo corre sob nossos pés. Somos tão amplos, tão vastos. Somos os pássaros dessa linda beleza americana. E o céu estrelado que nós cobre à noite é o refresco que a pele pede.

É estranho estar feliz, apesar de toda tristeza por dentro e por fora. É estranho ser feliz. Como se eu tivesse entendido e encaixado uma peça que achei que estava sobrando. E não ter que me explicar pra ninguém. E conseguir fazer quem eu amo feliz. Admirando a paisagem.

Sinto mesmo como se eu fosse uma locomotiva. Não o maquinista, a locomotiva em si. De ferro e aço, apitando por aí, fazendo os carros pararem pra eu atravessar. Charlie, the Chooo-choo. E também um trem-bala japonês. Até aqui, sou o último marujo, e um que ficou feliz em ser de terra. Mas que também sempre será do mar. Pera. Acho que eu sou o mar. Pacífico, passeando pela linha férrea.
Soa bem.

No horizonte, sem medo, o mar e o marujo e o trem.
Reluzindo em um só, na figura de um homem.
E este homem sou eu.



segunda-feira, 28 de novembro de 2016

O dia seguinte




As coisas rasas e simples são as que mais aparecem por entre as frestas da vida que levo na sua ausência.

Ontem eu gritei pelo Palmeiras, gritei campeão, como não fazia desde de 1999. Lembra que eu te disse naquele dia que Libertadores era muito mais importante que Campeonato Brasileiro? Eu menti. É como comparar beijos de amores diferentes.

Outro dia, num restaurante, eu ria até a barriga doer com amigos muito, muito queridos. Do outro lado do salão, numa mesa de canto, me deparo com aquela sua prima mais velha que eu odiava. Aquela do episódio do brigadeiro com goiabada. Ela me encarava com um sorriso triste. Mantive o olhar por alguns segundos e, com serenidade, ela ergueu um tico a taça de vinho que segurava. Acenei com a cabeça, de leve. Ambos sorrimos, confidentes. Testemunhas.

Decidi que vou continuar a vida sem ter carro, não faço nem ideia se ou quando vou tirar carteira, inclusive. Isso, eu sei, teria te feito gargalhar e gritar “QUEM É VOCÊ QUE TÀ VESTINDO O CORPO DO MEU LUCAS?”, como nos velhos tempos. Depois de tantos anos de sofrimento com falta de mobilidade, do tanto que eu disse que era um carro que me salvaria de uma vida tediosa... Quem diria... Tem a ver com sua partida? Não sei. Acho mesmo que não. Sei que, se você tivesse visto o que é um smartphone e o que é o Uber, ficaria boquiaberta, com aquela cara de bocó que só você e Zacarias dos Trapalhões sabiam fazer.

Adoro passar pela calçada em que você duvidou que eu escreveria meu nome, quando o cimento estava secando e a gente achava que violá-lo seria um crime federal.

Um dia, uns dois anos atrás, uma moça muito legal me convidou pra jantar no apartamento da vó dela na Vila Isabel. Era capaz daquilo ter ido longe, mas quando ela de repente me pegou pela mão e disse em um entusiasmo contagiante “Vamos dançar na varanda? Nem ligo se algum vizinho ver! O sol vai estar se pondo”, eu entrei em pânico. Nunca achei que alguém pudesse simplesmente repetir suas palavras. Essas palavras. Eu fui. Eu dancei. Foi um momento super bonito, até. Mas assustador também.

Parei na dona Zilá, que fez aquele forro na jaqueta do André que a gente rasgou. Inclusive, eu falei que a gente não devia ter tentado pular a grade. Mas você sempre foi teimosa. Enfim, parei lá pra ajustar umas camisetas. E não é que ela me reconheceu espontâneamente? E não esqueceu de você também. Muito doido, né? Minha mãe mal lembra de ti, eu desconfio, e é claro, ela não faz ideia da importância que teve pra mim. Mas uma costureira do Bandeirante sabe.

Algum dia eu vou conseguir parar de escrever imaginando quais partes você gostaria e quais você diria que são “sombras desnecessárias do que você quer realmente dizer",

O trilho do trem agora é meio pop. Um bocado de fotografo amador vai pra lá tirar foto. Tem muito mais fotógrafo amador no mundo hoje em dia.

Falando nisso, aquela foto que eu tirei de você dois dias depois da gente ter dado o nosso primeiro beijo agora fica do lado da minha cama. Não preciso dela pra me lembrar de como você era bonita. E, Iansã me acalme, você era bonita de todas as formas que eu posso imaginar. Ainda assim, ali é uma beleza calma que ficou registrada. Uma versão de ti que só conheci nos últimos meses em que convivemos. Gosto de olhar aqueles olhos.



domingo, 27 de novembro de 2016

Os anos




Não, não parece que faz tudo isso. E também parece que foi muito mais. Mas andei contando. São exatos dez anos.

Eu penso em você todo dia. Mesmo no mais repleto. Mesmo no mais vazio. A sua morte refez minha vida. E algumas vezes te culpei e odiei por isso. Que bobagem, não é? Tornar o maravilhoso que você me deu em uma coisa ruim só pelo fato de não existir mais.

Eu sou o seu fantasma, percebi. Eu sou o seu legado. Sigo seu evangelho. Sua filosofia.

Isso fez de mim um homem corajoso, eu sei, apesar de sempre amar em excesso. Inconsequente também, como você.  Fico orgulhoso quando acho seus defeitos em mim. Quando imagino as suas broncas. Com frequência imagino as suas broncas. Acho que você me daria duas hoje. Uma por eu não estar viajando como planejei. Falando de uma forma doce como os meus descuidos menores são importantes também, mas que eu não devia me cobrar tanto assim. Outra por eu ter fugido tanto de Brasília em dias 27/11 pelos últimos cinco anos. Seu temperamento firme teria aparecido mais agora. Você diria que não é uma bigorna pra cair na cabeça de nenhum Coiote como eu.

Eu já te pus em um pedestal, mas não durou muito e tem tempo que eu percebo com clareza os seus defeitos. A postura mimada, a necessidade de se impor, de ver o mundo como um campo de batalha. As seletividades, a teimosia, o desdém por crenças diferentes das suas. Acho que você teria revisto muito disso tudo com os anos, como eu. Somos fruto dos anos 90, essa era bizarra e imprevisível. Você poderia ter sido a mãe dos meus filhos, você poderia ser a razão de eu não querer tê-los.

Tenho certeza que você conservaria, no entanto, essa facilidade pra me exergar através de qualquer disfarce, com candura e firmeza. Suas duas características mais marcantes, apesar de tão contraditórias. Eu queria muito, muito mesmo, ver seus olhos me encarando na mistura dos dois de novo. Aquela hipnotizante verve que você sempre emitiu. Aquele poder emanando do seu corpo. Aquelas palavras que até hoje ecoam depois do meu:

- Eu... Eu te amo. Acho que te amo há muito tempo. Mas só percebi agora.
- Ah... Eu esperei dez anos pra ouvir isso, seu babaca.

Que um dia eu possa igualar esses dez mais dez e viver sem pressa de te encontrar.


terça-feira, 1 de novembro de 2016

Véspera




Meu Novembro não começa no mês 11. Ali por Setembro ele já está me rondando, lembrando que ele vem. Tão certo como é errado usar tênis branco nessa cidade de terras vermelhas. A véspera é longa;

Ainda te sinto. Não como uma memória, mas aqui, completa, e posso te tocar em tudo. É uma tortura pra mim que você se espalhe pelo mundo, vazando. Nenhuma memória te cabe. Uma confusão de passos ao meu redor, todos brilhando, como os tênis de luzinhas que a gente cobiçava na infância. Tênis brancos de luzinhas.

Passo pela pitangueira que ela plantou há mais de quinze anos. Já está enorme, já tem até os moleques fiéis a roubar os frutos. Agora tá em flor. Eu não lembro se ela alguma vez sentiu o perfume de uma flor de pitangueira. Essas coisas me matam. Sinto como eu precisasse saber absolutamente tudo daquela moça.

Sinto como se eu tivesse que ser o vaso que te abriga. Meu corpo, seu latifúndio. Mas transbordo, não nego, volto quando couber.



Quem sou eu

Minha foto
"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto