domingo, 18 de setembro de 2011

Cata-vento

O vento não para, não para, não para, não. E Miguel ali, no despenteio. A bicicleta grita com as pedaladas, satisfeita. A poderosa sensação de se viver sobre rodas.

Cruzamento, sinal fechado. Ele tem medo dos carros. A bicicleta também.

Miguel é um desses caras verdes. Compra tênis biodegradável, faz catavento pra TV funcionar a energia eólica. Começou a estudar filosofia, depois antropologia, depois desistiu desse nosso sistema de ensino falido e burguês, preferindo viver da mesada do pai.

Já a bicicleta é bem menos contraditória. Ela tem duas rodas boas, banco firme. Adventista, rala em dobro às sextas-feiras e descansa aos sábados. Ela gosta do vento assoviando no metal. De sentir as curvas deslizando pelo pneus. A bicicleta tem ambições curtas. A bicicleta gosta mesmo é de ação.

Deu-se que Miguel precisou se desfazer da bicicleta. A bicicleta já não era o veículo verde mais cool pra tirar onda na faculdade. O patinete elétrico é que tá na moda. Abastecido com energia eólica, claro. Foi pra lojinha de usadas e largou a bicicleta ao vento. Sem remorso.

E com um cata-vento, tirei a bicicleta de lá. Por uma pechincha. Agora ela se chama Joaquina. Agora sou eu no despenteio. E a felicidade dela corre de guidão em guidão, de abraços em outros braços. Fazendo o tempo parecer pouco, mesmo que seja um dia inteiro.

E o ventão lá. Soprando. Nem aí pra essa bobagem toda que eu escrevi.

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"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto