segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Marujos - 5.000 horas de Céu




"Of Sea-Captains young or old, and the Mates - and of all intrepid Sailors;      
The few very choice, taciturn, whom fate can never surprise, nor death dismay,      
Pick’d sparingly, without noise, by thee, old Ocean—chosen by thee,      
Thou Sea, that pickest and cullest the race, in Time, and unitest Nations!       
Suckled by thee, old husky Nurse—embodying thee!       
Indomitable, untamed as thee."        
Song for All Seas,             
Walt Whitman             




As mãos dele estão duras e tremem. Quando caminha pra pegar as chaves do antiquíssimo Toyota Bandeirante, dá pra ver como o tempo está castigando os joelhos que antes eram pilares de uma família inteira. Subo naquela peça de museu e sorrio quando ele sorri. O cheiro do couro antigo lembrando que tudo ali é selvagem e cru. Volante de madeira, os pedais de ferro fundido e aquele motor de 6 cilindros que fazia tudo vibrar. O ronco de um urso debaixo do capô. Os dentes dele vão se mostrando cada vez mais pelos lábios rachados de sol... Solta uma gargalhada contagiosa quando engata a primeira.

- O senhor tem certeza que a gente não pode sair nem um pouquinho? Aqui no sítio mesmo. Até o laguinho e daí a gente volta.
- Não, sua vó proibiu. Desde que o Detran tomou minha carteira, só ela pilota nessa casa, hahaha! E está certa. Eu vou acabar atropelando algum ganso. O tempo é um rosto na água.
- "Os olhos obliquos a cada novo aniversário", a ironia dobrando a esquina.
- Como você bem sabe, a ironia tem mais de 6 cilindros.
- Por que a vó deu pra criar ganso mesmo?
- E eu lá sei, Douglas. Ana Maria é a terra. Eu sou a nuvem.
- E eu sou o Lucas, vô.
- Não é não.

Nossos olhos marejam, claro. Entre eu e aquele velho homem, um câmbio adornado em osso e uma intimidade que ele nunca teve com seus filhos. Eu quero abrir o peito dele, mergulhar em cada nuvem pela qual passou, Ser aquele rosto craquelado, aquela voz rouca de quem comeu vento por anos. Em uma caderneta antiga, são 5.000 horas de céu anotadas por entre Brasil e arredores, histórias de guerra. As balas que ele me deu são de canela e nas suas próprias canelas estão as marcas das balas que ganhou. Somos ironias que a vida dobrou na esquina.

- Alfa six, click-clakc, I'm on your tail.
- Evasiva! Evasiva!
- Estamos expostos!

E fazemos daquela caminhoneta ancestral, ligada numa garagem em um sítio, nosso aeroplano em pleno plano de voo. Desviamos do ataque inimigo, voamos pelo Havaí e decidimos que nossa rota poderia ser muito bem acompanhada da voz do Sinatra. Que sorte o avião ter um toca-fitas e uma K7 no porta-luvas. Cantamos. Talvez o melhor hábito de família depois da contação de histórias.

- I say thaaaaat's life!
- Thaaaaaaaaat's liiiiiiiiiiife! - eu fazia o backing vocal, naturalmente. Não se compete com um barítono veterano de combate.

Rimos como dois meninos porque ali éramos dois meninos. Abaixando flaps de profundidade e dançando sobre assentos originais de preço incalculável. Duas coisas bem distintas, uma preço e outra é o valor. Quem não sabe a diferença, pouco saberá do amor. Repetimos isso assintosamente. Alguem iria nos desafiar?

Minha avó, chamando pro pudim de laranja. Na pressa de desligar o carro e ir correndo pegar o maior pedaço, ele ainda desengata o Toyota com o pé na embreagem e o parachoque dá uma bitoca empolgada no muro. Congelamos por um segundo.

- É caso de amor antigo, eles vivem se beijando. Não conta pra sua vó. E eu vou pegar aquele pudim inteiro!
- Não vai não que eu sou visita, velho safado!

Na hora de ir embora, ele continuava no cochilo pós-lanche, ressonando como um certo motor de 6 cilindros. Um urso debaixo do capô. Fui deixar um beijo na cozinheira risonha antes de pegar a estrada.

- Vó, ele me chamou o dia todo de Douglas.
- Chamou?! - e seus olhos se entortaram pra baixo, junto com eles os dois lábios se apertando. Lágrimas na linha de largada das pálpebras.
- Vó! O que foi?
- Quando eu conheci seu avô, ele me chamava de Douglinha, Douglinhana. Seu tio Estevão já foi o Douglão Calado.
- Eu não ent...
- Douglas C47 Skytrain, o avião. O avião em que ele navegou e desmontou e remontou milhares de vezes. O maior amor da vida dele.
- As 5.000 horas de céu...
- Ah meu neto!, eu sou terra. E seu avó sempre será nuvem.
- ............................................................ sempre será nuvem, é, eu sei.



No nosso abraço e pelos nossos rostos, a água salgada por onde até os marujos mais corajosos temem navegar.




Quem sou eu

Minha foto
"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto