terça-feira, 3 de junho de 2014

Marques-sou-zense



    Nota do Autor: Este texto foi escrito com o repeat ligado
na canção "We never change", faixa 9 do álbum Parachutes (2000), Coldplay.

Clica aí, escuta isso e entra no clima, vá.


Marques de Souza é rígida, fria, serena. Eu queria viver minha vida em uma casinha de madeira; pinheiros e eucaliptos e ciprestes e maples me aconchegando como a um irmão.

Marques de Souza era homem forte, gaudério, general de estrelas. Eu queria viver minha vida cantando desafinado no ouvido dela.

Marques de Souza tem pouca gente, muitos sorrisos, chá de canela na entrada. Eu queria viver minha vida com amigos em abraços fundos, largos, atômicos.

Marques de Souza foi morto em uma sexta-feira de céu azul e ninguém diz como, só que foi em uma sexta-feira de céu azul. Eu queria viver minha vida enrolado no cobertor, trabalhar de cobertor, tomar banho de cobertor.

Marques de Souza, pela nova regra ortográfica, é topônimo que deveria se chamar Marques de Sousa, com "s" mesmo. Eu quero viver a minha vida com uma lareira de um lado, um filho do outro, uma história no meio.

Marques de Souza foi o único barão em Porto Alegre. Eu queria viver minha vida deitado de costas na grama, olhando um céu de estrelas que não tem início ou fim.

Marques de Souza tem umas alemoadas, umas italianadas, umas gaúchadas, umas risadas. Eu queria viver minha vida em pré-chorus interminável, como um rosto refletido na água que está prestes a perder forma, como um arco retesado para o disparo, um aceno de tchau que vai sendo levado pelo trem.

Marques de Souza uma vez gritou alto na Cisplatina, plena guerra comendo solta, que "Já fui muito em tão pouco, já fui pouco por muito. Se assim sou, nego-me. Se me nego, talvez assim seja"". Eu queria viver minha vida roubando mexerica dos vizinhos e gritando pra eles que "Se você chama isso aqui de bergamota é porque ela não te merece, cretino!".

Marques de Souza me convidou pra sentar em sua mesa. Eu queria viver minha vida sem deixar o jantar acabar.



Quem sou eu

Minha foto
"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto