segunda-feira, 28 de março de 2011

Não de todo




Quatro dias dentro daquela cidade e Flávio não fazia ideia que o tempo tinha passado, um mundo mudado, chuvas caído. Quatro dias e Budapeste tinha gravado números, datas e estátuas no peito dele. Homem de poucas palavras, estava lá por estar. Procurando o que não se pode encontrar. Estava por estar como viva por viver. Minto. Flávio não era um homem de poucas palavras. Alguém com poucas palavras não pode ser um homem de todo.

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Nathalia passou por Budapeste para visitar um amigo e acabou se perdendo de noite. Esbarrou com uma estatua engraçada e, no desespero de estar em um lugar desconhecido e escuro, riu.

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Deixando os pés vagarem por Vaci utca, Flávio escutou um riso nervoso vindo da estatua do Homem no Patinete. Parou pra ver o que acontecia, espectador do mundo. Viu o que não queria ver, por comodismo da alma. Viu Nathalia olhar para ele com olhos de quem pede ajuda.

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O homem estranho não disse uma palavra. Chegou junto a Nathalia e a tomou pelo braço, gentilmente, a conduzindo rua acima. O desespero virou duvida, Nathalia não sabia se chorava ou ria novamente. Estava no escuro, em um lugar desconhecido e sendo guiada por um homem mudo. O spray de pimenta preparado dentro da bolsa. O canivete suíço também. A tesoura de unhas já aberta. Mas a mão que estava dentro da bolsa segurava um cartão com nome e telefone para uso imediato, caso fosse necessário.

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Flávio parou na entrada da Chains Bridge e se virou para Nathalia. Claro que não fazia a menor ideia de que ela se chamava Nathalia. Na verdade, não fazia a menor ideia do que estava fazendo. Só deixou os pés e mãos guiarem o resto do corpo. Abriu o seu mapa, tirou uma caneta do bolso e fez um circulo. entregou o papel pra moça, que teve o rosto iluminado pela gratidão. Agora ela sabia onde estava. Flávio havia matado a charada sem nem ter precisado usar os dois neurônios que ainda lhe restavam.

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Nathalia rumou para a estação de trem com a câmera entre os dedos. Tinha tirado uma foto, de longe, do mudo que a colocara no caminho pra casa. Era um rosto simples e sem marcas, um rosto que facilmente seria esquecido. Ela não queria esquecer.

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Flávio voltou para o hotel com o lábio tremendo. Queria ter dito algo, mas não sabia o que. Ele queria saber o nome dela, é isso. Tarde demais. Sua mente iria se encher com as possibilidades dos nomes para a mulher que o beijara em Budapeste. Sem nenhuma palavra. Ele iria imaginar nomes e nomes para a sua musa ate o fim dos seus dias.

Ao se deitar para dormir, ele só pode pensar que Chico tinha razão. Nenhum homem deveria deixar de ir e viver em Budapeste.

Infelizmente, Flávio não era um homem. Afinal, alguém com poucas palavras não pode ser homem de todo.


Quem sou eu

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"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto