sábado, 29 de agosto de 2015

Marujos - Submarino no horizonte




Parecia uma dupla de homens tentando instalar uma máquina de lavar. Não era. Era filosofia profunda camuflada de trabalho braçal. Chaves de fenda e veda-rosca estavam ali como qualquer objeto poderia estar. Navegávamos.

O quanto desse homem há em mim?

Tem ali muito de contemplação do mar. Reluzente, o sorriso sobe e desce em compasso. Apesar de tantas falhas flutuando, isso pelo jeito nunca muda. Quando ele chega cheio de alegria, inesperado e abrupto, todas as velas se abrem, histórias emanam. Tantas e tão incríveis que ninguém sabe onde começa a verdade e acaba a ficção. Como aquela impressão imprecisa de um periscópio lá longe, traindo o submarino no horizonte.

Há tempos eu não tento mais descobrir o que foi e o que é falso, a questão não me preocupa nele. Na verdade até fascina. Mergulho mil léguas naquele que é raso em alguns pontos, abissal em outros.

Não acho que se esconder assim seja vício, parece ser parte. Uma couraça enferrujada e imponente que se perdeu em mares profundos de si mesmo, na ânsia de maravilhar. Só de emergir à superfície levanta suspiros, espalha as águas turvas. E cada palavra trocada, do abraço até despedida, tudo tem significados e desdobramentos. Códigos em morse que só nós entendemos.

- Disse "egoista!", mesmo eu tendo me oferecido a me afastar, deixá-la recomeçar e ser feliz com outro, enquanto o amor rasgava meu peito. Shiva, lembra?
- Shiva, o Deus da Morte.
- Ganges em meus ombros, tanta dor sem lar.
- Ó, sou acusado de muita coisa que realmente sou, inclusive de egoísta, que só admito ser pra mim. E agora pra você. Você é diferente disso, não é um egoísta.
- Não sei. Sei que com ela eu jamais fui.
- Deslizou?
- Só se tentar ser feliz com outros, em outros, para outros for deslize. Depois de tudo acbado. Eram só remendos, eu sabia. Quem não tem direito de tapar furos no balão com os dedos, mesmo sabendo que não vai dar certo?
- Drift não é derrapada, filho.
- Quando você me chama de filho, soa estranho que só a porra.
- E de babaca, caí melhor?
- Sem dúvida.
- Fogo-fátuo.
- Sim, fogo-fátuo.
- Em todo ser humano, a necessidade de se esquivar. Lembra quando você era o Esquivo? Filho, você já teve tantos nomes...

Eu nem recordava disso e como ele, logo ele, lembrava eu não faço ideia. Teve mesmo um tempo em que eu me disfarçava de tudo.

- Por que você mente tanto, pai?

Ele riu um riso triste, o canto de um lamento.

- A mentira ou a verdade são escolhas calculadas. Sou folclore em você e em todo mundo que eu conheço. Dói mais não saber quem é seu pai ou descobrir que seu pai não é quem você gostaria? Sereias existem. Você quer provar que é real sendo uma, como eu já fui. Quantos corações magoados nós deixamos pelo caminho nessa busca... Incontáveis. Não interessa que você emocione, encante, doe, compartilhe. Se não tem fato vai ser visto qual falsidade, é assim que o vento sopra. Independe das quilhas que use, ficção é uma coisa e mentira é outra. Você não fez essa pergunta pra mim, filho. Você fez essa pergunta pra si mesmo.

E é claro que fiz a pergunta errada. Desde o início, não é o que tem dele em mim. O marujo insólito da família, um mistério inexorável ou apenas o homem comum e falho. Em um só, dois. A pergunta... qual é a pergunta...

Quanto deste homem é o que é e quanto dele é o que eu inventei?


Quem sou eu

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"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto