sábado, 24 de novembro de 2012

Ela foi viajar



- Vou porque vou, a senhora não tem nada com isso.
- Mas assim é muito bonito! Tem aula amanhã, faculdade é coisa fácil, deve ser!
- Deixa ela, Sarita.
- A senhora não dá pitaco que a filha é minha, mãe.
- Escuta a vó. A faculdade é minha, entrei porque EU estudei, meu esforço.
- Depois que eu paguei quinze anos de educação! Sem nenhum esforço meu, não é?!
- A menina já é grande, Sarita. Você quer ensinar o que não pode.
- Mãe. Mãezinha. Eu vou. E pronto.

E colocou a mochila nas costas pra ir embora. O Sérgio esperava por ela a uns mil quilômetros de distância. A mãe ainda fez um último esforço:

- Ele não pode vir pra cá, minha filha?

Marilha pensou por um instante. Meio instante.

- Poder pode, mãe. Mas eu é que quero ir.

E foi-se embora surpreender Sérgio. Sim, porque ele esperava por ela, contudo não sabia da sua vinda. Vou resumir a história deles pra você, intrometido, compreender. O jardim de infância costuma cultivar mais que a vida escolar, quase sempre a florzinha do amor aparece por ali. São belezas que não costumam durar, estes amorecos de parquinho. Vez por outra, porém, acontece um "Sérgio e Marilha". Um beijo torto no balanço, juraram que um dia casariam.

Ano seguinte, Sérgio se mudou de vez pro Jardim. Município de Jardim, Mato Grosso do Sul. Esqueceram de avisar os pais dele do casório prometido. Ficaram por quinze anos de educação sem se falar. Até que o Orkut (não o Facebook) fez os dois se esbarrarem. Marilha digitou o nome do menino no Google, e este mostrou que ele ainda estava lá, a espera de sua donzela. A frase auto-descritiva na rede social do rapaz dizia assim: "O mundo perde a graça quando me lembro que Marilha não casou comigo".

A menina se abalou toda, virou falha de San Andreas em São Paulo. Já tinha meses o namoro terminado com o Toni, aquele que tanto amara por tão pouco tempo. E a vida agora era tanta calmaria que ela só boiava. Foi lá se meter atrás da ação. De Itapemirim, que não tá fácil pra ninguém.

***

Sérgio era guia turístico, não ligava muito pras coisas além da natureza. Se decepcionara com o mundo, entocado naquele interior tão formoso do Parque da Bodoqueira. As pessoas só arrancavam, nunca plantavam. O verde é que cuidava de si, o Sérgio é que cuidava de si. O pai já se fora com um ataque do coração, levando o coração da mãe com ele. A viúva ficou pra sempre meio doente, a dor da perda minando sua saúde. Um oco de gente, mas ainda tinha carinho pelo filho. E ele, que queria ganhar o mundo, não podia deixá-la pra se devorar de solidão. Mas a cabeça viajava, pensava em ver aquela menina da escola de novo.

***

Desembarcou do ônibus já endurecendo o passo. Não tinha nem hotel, e não se importava. Marilha encontraria primeiro o amor, depois um teto. Rumou para o Parque, onde sabia que Sérigo trabalhava (Orkut, sempre indiscreto) pra passar o dia com ele. Depois de se perder algumas vezes, encontrou a prefeitura, lá dentro a secretaria de meio-ambiente, lá dentro os guais do parque, no meio deles o Sérgio.

Puxou ele pelo braço, disse que queria ir "descobri a natureza!". O rapaz ficou assustado, mas dinheiro é dinheiro e ele estava ali pra ganhar. Em pouco tempo chegaram ao ponto inicial da caminhada. Marilha então se apresentou. "Oi, sou Marílha, com "lh", do jardim de infância. Lembra?". Sérgio piscou algumas vezes. "Claro, lembro sim. Como você me achou?". Ela sorriu. "Orkut". Ele sorriu.

Caminhando pelo mato, se descobriram em algumas frases.

- Você tem saudade de São Paulo, Sérgio?

- De jeito nenhum, adoro ficar perto do verde. Minha vida é o verde. Quero aquilo mais não - ele puxava o "r" como um caipira, ela pensou. E quem iria preferir morar no mato que em uma cidade com tudo?

- Nossa, eu adoro a cidade. Andar de tênis acaba comigo, não tem um caminho mais fácil não? - ela fazia cara de nojo pras plantas e pisava na terra como fosse sujeira, ele pensou.

- A recompensa é grande, pode apostar. Se quiser eu te levo no colo, o que acha? - tomara que não seja uma caverna essa recompensa. Eca, ele tá todo suado, nunca que vou no colo dele, ela pensou.

Meia hora de silêncio constrangedor. Chegaram até o ponto que Sérgio queria. Sete lagoas de água cristalina no pé do morro, pequenas e puras. Os olhos dele brilhavam de emoção com aquele lugar. Mas Marilha só pensava que não entraria ali de jeito nenhum, devia estar gelado que só o cacete e ela não tinha trazido biquíni. Se ele estivesse querendo dar uma de esperto e nadar pelado, que fosse sozinho.

- Muito bonito. Podemos voltar?

A caminhada de volta foi mais silenciosa que qualquer outra que tiveram na vida. Marilha decidiu que não ia passar a noite lá. Chegando na pequena cidade foi direto pegar um ônibus pra São Paulo. Se despediram na entrada do Parque com um aperto de mão. Sérgio tinha uma expressão de quem comeu pizza quatro-queijos e tem intolerância a lactose.

***

Marilha chegou em casa como um furacão, menos de 24 horas depois de sair. A mãe estava na cozinha e viu a filha passar pro quarto pisando duro. Não sabia o que fazer, mas alguns minutos depois escutou um urro. Ao abrir a porta, viu a menina chorar loucamente em frente ao computador, enquanto gritava:

- Ele mudou a frase do Orkuuuutiiiiii!

Na tela, lia-se "O sonho ruiu, o verde permanece", logo abaixo da foto de Sérgio. Sarita suspirou enquanto consolava a filha. Uma hora depois, a jovem dormia. A mãe saiu do quarto cansada, foi se atirar no sofá ao lado da vó. A velha tinha um riso maroto no rosto.

- Do que é que a senhora tá rindo, mãe?
- Eu disse, mas você não escuta Sarita. Não dá pra ensinar essas coisas.
- Mas agora a Marilha tá lá, sofrendo que só.
- Sim, minha filha. Ela tinha que sofrer.
- Mãe, isso não tem sentido.
- Sarita, pelo amor do nosso senhor Jesus! Amar errado só se aprende vivendo. Vivendo!

Naquela noite, todas as filhas da casa dormiram pensando.


segunda-feira, 19 de novembro de 2012

O pequeno homem-leão


Areia movediça engolia a coragem do pequeno homem-leão. Parecia estar tudo tão bem no começo... Mas alguma coisa dava errado. E outra seguindo. E acolá vinha de novo. E quanto mais ele se sacudia, mais afundava. O desespero que vem, assoma, arrebata e arrebenta. Não é assim a história, meu amor? Antes você me contava, era tão bom. Era sem chave, agora sou cópia sem saber qual porta abro.

Andava emaranhado com a cidade e seus desejos esticados pela areia fina. Novembro passava. Sentia o corpo ardendo com o sol de vaidades que banhava a praia larga. Tantos afoitos forjando intimidades, terra de meio-sorrisos, os perfeitos que davam defeito. Eram licores sem cores, o puro álcool evaporando sal do mar. Era tudo ressaca.

Era um Rio de Janeiro e Novembro passava em sua vida sem portela.

Entre uma e outra estação, fingia ser Primavera pra todo lado, tinha que esperar pela sua hora. Se sentia enjaulado e diminuído pelos relógios. Preso em um mundo de frases pré-moldadas, qualquer um podia edificar a próxima curva da vida. A solidão se apoderava, o cão negro do vizinho que mostrava os dentes e já não tem mais coleira. Entrou em uma loja pra comprar um paletó novo. Chorou como uma criança dentro do provador e saiu como se nada tivesse acontecido.

Tudo isso era a cidade do sol em dia de chuva. A confusão lá dentro não tem zona, qualquer grande túnel sem a luz no fim. Ela sofria saudades em um céu de brigadeiro. E ele não sabia nem como esconder própria dor. Vazava e pedia. O silêncio cuidava de cumprir a missão dos rugidos. Os gritos do pequeno homem-leão moravam nas respostas que nunca eram dadas às perguntas.

Novembro. O fim da história eu sempre esqueço, meu amor.




domingo, 11 de novembro de 2012

Tarde demais


Caio se apaixonava à medida que ela roia as unhas. O esmalte vermelho dos dedos se desfazendo no esmalte claro dos dentes, ansiedade e mania, desconto do controle foragido. A moça nem percebia o olhar enternecido do rapaz que sofria junto com ela.

Olhava pela janela do coletivo, mergulhada na noite escura de si enquanto o dia brilhava ensolarado do lado de fora. O negrume dos olhos tristes esfumaçados de sombra escondia olhos inchados de dor, Caio notou.

Despia cada verso que ela sussurrava, adivinhando a música que corria pelos fones escondidos em meio aos cabelos castanhos. Queria ser cada agudo abafado, cada grito reprimido. Abraçar os dedos que tamborilavam no joelho sem o menor ritmo. Queria se rasgar e deixar de ser timidez, renascer coragem.

Mas Caio não conseguiu. Ficou de lado, medindo o tom da voz que queria ter. Seguiu em silêncio absoluto a abocanhar cada pulsação da mulher que dividia com ele o banco, até que o inabalável "tarde demais" veio. Cada um pra seu canto, nunca mais a viu.

Chegou ao ponto final e não desceu.

Quem sou eu

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"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto