sábado, 27 de março de 2010

Shaolin




Agora há pouco me deram a notícia.

"Mataram o Shaolin", disseram. Depois de quase 21 anos em que o vejo andando pelas ruas da minha cidade, pelas pedras da minha rua, pelas ruas da minha rua, pela minha vida. Mataram o bêbado da minha cidade. Me mataram também.

Ele era um bêbado à moda antiga, sabe como é? Desses que vivem cantando alto na rua de madrugada, dá bom dia pra todo mundo... Que dizem falar coreano e que viajam de espaçonave toda primeira terça do mês. Brigava com os ônibus, brigava com os butequeiros, brigava com a alta do dólar. E uma dessas brigas o matou. Com mais de vinte facadas.

Perdi o meu bêbado amigo. A minha cidade perdeu um Shaolin, que com tantas histórias pelas ruas da minha vida, pela minhas ruas da vida, perde também um pedaço do meu passado que morava naquele homem.



sexta-feira, 26 de março de 2010

Selvas de pedra e corações roubados

Eis que Cassiana queria cruzar Brasília a pé. Dizendo Brasília quero dizer Plano Piloto, que, para todos os efeitos, é o que os brasilienses entendem por Brasília. Mas mesmo reduzindo arbitrariamente as proporções de Brasília para dentro das duas asas, a tarefa da Cassiana não é das mais leves. Essa menina, evidentemente uma representação feminina do jovem que vos escreve, já que me acho muito cabeludo ultimamente e acho que ser uma bela e graciosa moça deve ter lá suas vantagens. Exemplo: Carla Perez e o poder que a bunda tem. Bom, o assunto é constrangedor e vamos morrê-lo por aqui, certo? Ponto final.

Voltando a minha psique feminina, a Cassiana. Ela vai rodar, esse final é óbvio, e você sabe disso porque todo mundo sempre roda nas minhas estórias. Descarrego minha dor nos personagens, pronto e acabou. Vamos ao motivos do insucesso de minha protagonista:

1. Brasília é o barro: A capital federal na verdade foi toda feita de barro, o concreto do Niemeyer foi tacado por cima só pra dar uma guaribada e disfarçar a peraltice. Quem anda pelo Plano sabe muito bem disso, já que é impossível caminhar mais de 500 metros sem sujar, no mínimo, sua sandália havaiana genérica (sim, porque se você tem uma havaiana original, você não deveria estar a pé). Mas os pés são o de menos.
Calças e mais calças se perdem, meias vão direto para o lixo, camisetas brancas ficam manchadas e tome Omo Multi-ação para corrigir a traquinagem dos pioneiros. Eles são o orgulho do Núcleo Bandeirante, olha que beleza.

2. Brasília é o off-road dos pedestres: Ainda bem, porque Cassiana realmente queria caminhar nas matas do cerrado. Acontece que Brasília tem calçadas com a qualidade das ruas de Gaza. Isso quando tem calçada. E o mato ainda é dos mais chatos, parece feito de mãozinhas que agarram seu jeans com ferocidade de guerreiros pigmeus. Isso transformará a caminhada de Cassiana em uma grande e retumbante tortura, já que o esforço vai ser bem maior do que o que ela tinha calculado.

3. Brasília é plana o caralho!: É plana no asfalto, mas vá lá andar nas entre-quadras. Além das irregularidades naturais do terreno, tem até prédios que criaram seus próprios morrinhos para se instalarem acima dos meros mortais. Mas Cassiana não liga para essa tentativa ridícula de manter a privacidade dos moradores e anda a vontade por dentro dos blocos.
Pilotis foram feitos pra isso, e os moradores é que morram secos esperando que eu (perdão, ela) dê a volta para não invadir seus bem-valorizados pisos. Piso que funciona comigo é só o salarial, e isso porque eu não tenho escolha.

4. Brasília foi feita em U: “Leves curvaturas nas asas do Plano, formando linhas suaves e simples”. Não sei se foi exatamente isso que o maroto Niemeyer falou a respeito, mas tenho certeza que foi algo do gênero. O que ele queria dizer, realmente, é que “Fiz esta joça em U. Vão dar a volta, losers”. Isso significa que a coitada da Cassiana vai bater muito mais perna do que imagina. Isso porque ela vai ter a impressão de andar em linha reta, mas na verdade vai estar caminhando em um gigantesco U de mais de 12 quilômetros.
E se ela tentar ir em linha reta, coitada, vai enfrentar mais mãozinhas de pigmeus que qualquer explorador australiano já encontrou nos desertos.

5. Brasília, está mais do que óbvio, não foi feita para os pedestres.

E é aí que Cassiana, assim como eu ou qualquer um dos milhares de sem-carro que existem nessa cidade, toma conhecimento da horrível verdade. Que ou o capeta do Niemeyer simplesmente não pensou nos pedestres, ou Brasília não foi feita como deveria ter sido. Andar pelo Plano Piloto é lutar contra o bom-senso. Eu sei disso pelo mesmo método que a Cassiana vai usar: andando. Já cruzei o Plano de todas as maneiras que Descartes sonhou em seus Planos. Já fui da 311 Norte até o Núcleo Bandeirante, na maior prova de que o homem é feito de força de vontade e testosterona abundante. Já andei do CCBB até o Pátio Brasil algumas vezes e ir da UnB para a Rodoviária é banalidade pra mim. Eremita certificado, baby.
E espalho isso por todos os cantos, pois é motivo de muito orgulho, sim senhor. Não tenho nem patinete, my brother, e ainda assim sobrevivo na falta de esquinas dessa cidade. Nem sempre, mas às vezes andando, já que os ônibus daqui também são motivo para criar uma guerrilha urbana. Selvas de pedra e corações roubados, é uma realidade meio cruel, mas é a que temos. Sem tirar nem por. Um mar de fantasias sustentadas por vias largas e a impressão de que é tudo planejado, já que quem mora no Plano (quase) sempre tem carro.
Eu e a Cassiana só temos jogo de cintura.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Esboços sobre o amor e a linguagem 2

 

Um conhecido meu, Jaime e evidentemente fictício, tinha uma frase-sucesso para os momentos de descontração. “Se eu conheço o amor é porque conheci a bunda da minha mulher”, e o dito era seguido  por um coro de aprovação. Pasmem as pessoas honradas/dignas do século XX, mas sempre que Jaime falava isso em uma roda, o coro vinha. As feministas, quando escutavam, armavam suas unhas para a guerra. Citavam os sutiãs flambados, a luta das mulheres ao longo dos séculos para conseguirem direitos iguais aos dos homens e as novelas do Manoel Carlos que invariavelmente contam uma estória de amarguras e superações femininas.

Mas o Jaimão tem uma arma poderosíssima ao seu lado. O poder que a bunda tem. Você sabe e eu sei que onde existe bunda existe o joinha nacional. Qualquer setor de serviços populares, quando explora a bunda, enche a poupança. Com o perdão do trocadilho. Onde quer que exista uma vaga para mulheres, a bunda é ponto crucial na contratação:

- Essa moça aqui é um achado, fala três idiomas e tem duas graduações. E está começando, não vai nos exigir um grande pagamento.
- Mas o fundo de investimentos dela, como é?
- Fraco, não cobre nem a inflação.
- Ah nem, então dispensa. Funcionária mesmo era a Glorinha.
- Aaaah, a Glorinha.

E ficam pensando nas nádegas da antiga e laboriosa trabalhadora.

Jaime sabe muito bem dessa realidade tupiniquim e vai espalhando o amor que sente por sua bunda, digo, sua mulher, por onde passa, sem dó. Atirando a bunda para todo o lado, Jaime já estava quase no faroeste, mais perigos que Lee Van Cleef. Se a coisa apertava, ele sacava logo a bunda e lancetava seus adversários. Nada ficava no caminho da bunda. Ele chegou até mesmo a fazer um seguro escondido da retaguarda de sua amada. Sabe como é, se vem uma nova recessão e leva a bunda, como ele fica?

Ao chegar em casa um dia, Jaimão se deparou com uma cena estranha. Para ele, claro, porque nós já vimos esse conto milhares de vezes. Ruídos estranhos vindos do quarto, um par de sapatos de homem na entrada, o ar pesado da traição. Entre  furibundo e  medroso de ter perdido a bunda, Jaime correu para o quarto, não sem antes se armar com a primeira coisa que viu. Que, no caso, foi um guarda-chuva do Barney, propriedade de sua filha. Ao chegar na cama do casal, sua esposa se engalfinhava furiosamente com outro ser. Para sua surpresa, era uma mulher. Ou quase isso, não sei. Eu diria que gênero é algo muito flexível na atualidade e eu é que não vou me meter no assunto.

Ao ver aquilo, Jaime se desconcertou:

- Mas Glorinha, o que diabos é isso?
- Ahn, Jaime... Essa é a Edimar. Ahn...
- Depois desse tempo todo de casamento... e com uma mulher!
- Ora Jaime, você falava tanto de bunda que resolvi ver se gostava...
- Já sei, daí resolveu experimentar e eu dancei, certo?
- É, mas primeiro tentei com outros homens.
- Má quê???
- Cê não tem bunda, né Jaime?!
- Dancei.
- É, mas depois.
- Má quê???
- As bundas de homens são cabeludas, não me interessei. Resolvi tentar com mulheres.
- Aí eu dancei.
- Ainda não.
- Má quê???
- Você sempre soube que gostei de você porque é liso. Não financeiramente, claro.
- Má q...
- Pára com isso! Que saco.
- Desculpa, prossiga.
- Não fui de bunda.
- Como assim?
- Achei sem graça, sabe? Gostei mais dos peitos.
- E aí?
- Aí, você dançou.
- Má quê???


quarta-feira, 3 de março de 2010

Meu sonho foi diferente...




O meu sonho se passa alguns anos antes do seu.

Nele, eu estou sobrevoando a nossa cidade à noite, bem tarde da noite. O avião desliza, fasten seat belts aceso, e logo pousa. Eu estava viajando há um tempo, seguindo de matéria em matéria, e o meu rosto registra o cansaço.

O meu terno está amarrotado, a gravata frouxa no pescoço, e fico ainda mais amassado quando desembarco. Porque você está lá, linda, e me recebe com um abraço delicioso. Dirige até o nosso apartamento enquanto conversamos sobre coisas menores, as pequenas saudades.

Chegando lá no alto, abro a porta do apartamento e vejo um sofá fofo com um menino mais fofo ainda que me espera, morrendo de sono e vendo desenho.

Sentamos os três, e, abraçados no sofá, conversamos e rimos, enquanto a cidade brilha silenciosa lá fora.



segunda-feira, 1 de março de 2010

Conselho




Ela girou os calcanhares, num bailado leve, e em menos de um segundo estava de frente pra mim.
Com uma segurança inabalável me disse:
- Sua vida é muito disso tudo porque você não sabe andar na maré.

Eu, surpreso como um petista, perguntei a pergunta mais sem propósito possível.
- Hein?

Ela, que estava firme, conseguiu ser mais.

- Você sabe, eu sei. Não preciso de mais do que esse tempo contigo pra saber que tem alguma coisa, qualquer coisa em você que está fora do lugar. Eu só não consegui deixar de te dizer.
- Bom, obrigado, eu acho - respondi, desconfiado.
- Quer um conselho?
- Manda bala.

Com o brilho de uma nova Vishnu nascendo, ela disparou:
- Para de jogar "Cara ou Coroa" com a sua vida.

E foi-se embora quando o elevador parou no térreo.
Até hoje eu me pergunto o que diabos essa desconhecida quis me dizer.

(05/10/2014) 
Hoje eu sei.



Quem sou eu

Minha foto
"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto