segunda-feira, 28 de novembro de 2016

O dia seguinte




As coisas rasas e simples são as que mais aparecem por entre as frestas da vida que levo na sua ausência.

Ontem eu gritei pelo Palmeiras, gritei campeão, como não fazia desde de 1999. Lembra que eu te disse naquele dia que Libertadores era muito mais importante que Campeonato Brasileiro? Eu menti. É como comparar beijos de amores diferentes.

Outro dia, num restaurante, eu ria até a barriga doer com amigos muito, muito queridos. Do outro lado do salão, numa mesa de canto, me deparo com aquela sua prima mais velha que eu odiava. Aquela do episódio do brigadeiro com goiabada. Ela me encarava com um sorriso triste. Mantive o olhar por alguns segundos e, com serenidade, ela ergueu um tico a taça de vinho que segurava. Acenei com a cabeça, de leve. Ambos sorrimos, confidentes. Testemunhas.

Decidi que vou continuar a vida sem ter carro, não faço nem ideia se ou quando vou tirar carteira, inclusive. Isso, eu sei, teria te feito gargalhar e gritar “QUEM É VOCÊ QUE TÀ VESTINDO O CORPO DO MEU LUCAS?”, como nos velhos tempos. Depois de tantos anos de sofrimento com falta de mobilidade, do tanto que eu disse que era um carro que me salvaria de uma vida tediosa... Quem diria... Tem a ver com sua partida? Não sei. Acho mesmo que não. Sei que, se você tivesse visto o que é um smartphone e o que é o Uber, ficaria boquiaberta, com aquela cara de bocó que só você e Zacarias dos Trapalhões sabiam fazer.

Adoro passar pela calçada em que você duvidou que eu escreveria meu nome, quando o cimento estava secando e a gente achava que violá-lo seria um crime federal.

Um dia, uns dois anos atrás, uma moça muito legal me convidou pra jantar no apartamento da vó dela na Vila Isabel. Era capaz daquilo ter ido longe, mas quando ela de repente me pegou pela mão e disse em um entusiasmo contagiante “Vamos dançar na varanda? Nem ligo se algum vizinho ver! O sol vai estar se pondo”, eu entrei em pânico. Nunca achei que alguém pudesse simplesmente repetir suas palavras. Essas palavras. Eu fui. Eu dancei. Foi um momento super bonito, até. Mas assustador também.

Parei na dona Zilá, que fez aquele forro na jaqueta do André que a gente rasgou. Inclusive, eu falei que a gente não devia ter tentado pular a grade. Mas você sempre foi teimosa. Enfim, parei lá pra ajustar umas camisetas. E não é que ela me reconheceu espontâneamente? E não esqueceu de você também. Muito doido, né? Minha mãe mal lembra de ti, eu desconfio, e é claro, ela não faz ideia da importância que teve pra mim. Mas uma costureira do Bandeirante sabe.

Algum dia eu vou conseguir parar de escrever imaginando quais partes você gostaria e quais você diria que são “sombras desnecessárias do que você quer realmente dizer",

O trilho do trem agora é meio pop. Um bocado de fotografo amador vai pra lá tirar foto. Tem muito mais fotógrafo amador no mundo hoje em dia.

Falando nisso, aquela foto que eu tirei de você dois dias depois da gente ter dado o nosso primeiro beijo agora fica do lado da minha cama. Não preciso dela pra me lembrar de como você era bonita. E, Iansã me acalme, você era bonita de todas as formas que eu posso imaginar. Ainda assim, ali é uma beleza calma que ficou registrada. Uma versão de ti que só conheci nos últimos meses em que convivemos. Gosto de olhar aqueles olhos.



domingo, 27 de novembro de 2016

Os anos




Não, não parece que faz tudo isso. E também parece que foi muito mais. Mas andei contando. São exatos dez anos.

Eu penso em você todo dia. Mesmo no mais repleto. Mesmo no mais vazio. A sua morte refez minha vida. E algumas vezes te culpei e odiei por isso. Que bobagem, não é? Tornar o maravilhoso que você me deu em uma coisa ruim só pelo fato de não existir mais.

Eu sou o seu fantasma, percebi. Eu sou o seu legado. Sigo seu evangelho. Sua filosofia.

Isso fez de mim um homem corajoso, eu sei, apesar de sempre amar em excesso. Inconsequente também, como você.  Fico orgulhoso quando acho seus defeitos em mim. Quando imagino as suas broncas. Com frequência imagino as suas broncas. Acho que você me daria duas hoje. Uma por eu não estar viajando como planejei. Falando de uma forma doce como os meus descuidos menores são importantes também, mas que eu não devia me cobrar tanto assim. Outra por eu ter fugido tanto de Brasília em dias 27/11 pelos últimos cinco anos. Seu temperamento firme teria aparecido mais agora. Você diria que não é uma bigorna pra cair na cabeça de nenhum Coiote como eu.

Eu já te pus em um pedestal, mas não durou muito e tem tempo que eu percebo com clareza os seus defeitos. A postura mimada, a necessidade de se impor, de ver o mundo como um campo de batalha. As seletividades, a teimosia, o desdém por crenças diferentes das suas. Acho que você teria revisto muito disso tudo com os anos, como eu. Somos fruto dos anos 90, essa era bizarra e imprevisível. Você poderia ter sido a mãe dos meus filhos, você poderia ser a razão de eu não querer tê-los.

Tenho certeza que você conservaria, no entanto, essa facilidade pra me exergar através de qualquer disfarce, com candura e firmeza. Suas duas características mais marcantes, apesar de tão contraditórias. Eu queria muito, muito mesmo, ver seus olhos me encarando na mistura dos dois de novo. Aquela hipnotizante verve que você sempre emitiu. Aquele poder emanando do seu corpo. Aquelas palavras que até hoje ecoam depois do meu:

- Eu... Eu te amo. Acho que te amo há muito tempo. Mas só percebi agora.
- Ah... Eu esperei dez anos pra ouvir isso, seu babaca.

Que um dia eu possa igualar esses dez mais dez e viver sem pressa de te encontrar.


terça-feira, 1 de novembro de 2016

Véspera




Meu Novembro não começa no mês 11. Ali por Setembro ele já está me rondando, lembrando que ele vem. Tão certo como é errado usar tênis branco nessa cidade de terras vermelhas. A véspera é longa;

Ainda te sinto. Não como uma memória, mas aqui, completa, e posso te tocar em tudo. É uma tortura pra mim que você se espalhe pelo mundo, vazando. Nenhuma memória te cabe. Uma confusão de passos ao meu redor, todos brilhando, como os tênis de luzinhas que a gente cobiçava na infância. Tênis brancos de luzinhas.

Passo pela pitangueira que ela plantou há mais de quinze anos. Já está enorme, já tem até os moleques fiéis a roubar os frutos. Agora tá em flor. Eu não lembro se ela alguma vez sentiu o perfume de uma flor de pitangueira. Essas coisas me matam. Sinto como eu precisasse saber absolutamente tudo daquela moça.

Sinto como se eu tivesse que ser o vaso que te abriga. Meu corpo, seu latifúndio. Mas transbordo, não nego, volto quando couber.



segunda-feira, 18 de julho de 2016

Unhas nos dentes




Tinha um amigo na faculdade que me disse uma vez que ele não namorava porque não queria ter que terminar. Na época soou genial. Agora acho que afirmação mais boçal é difícil de produzir.

A gente termina o tempo todo.
Do supermercado favorito ao quase-amor. Foi quase. Tão quase... Mas falhou o atendimento, deu diferença de valor no caixa e, cara, alguém roubou o meu carrinho. Quem tem co-ra-gem de roubar o carrinho dos outros?

Um sentimento que não dá pra definir direito. Uma agonia desproporcional à questão. Como quando você corta mal  a unha e percebe que tem uma pontinha áspera, agarrando. Algo que poderia ser resolvido e nunca foi. Será que poderia? Tinha saída? Ela ainda se agarra. Mas já acabou. O inexorável futuro de agora. Nas lágrimas que ficaram pela roupa, as outras que vão cair no carro. As dores que me seguem, cão sem dono. Os contornos mal cortados dela contra o sol, na fumaça do cigarro que ela só fuma quando se sente muito, muito sozinha.

Me pego pensando em quantas vezes eu senti amor. Em quantas vezes fui amado. A conta deveria fechar, mas parece que nunca irá. É triste, bem triste, perceber as pontas ásperas.



quarta-feira, 27 de abril de 2016

Isso é sangue, não é tinta não




Passeando pelo quarto, ela disse que queria mesmo era um reembolso pelo dinheiro gasto com lâminas:

- Eu raspava as pernas todo dia esperando que você me ligasse.

Claro que não era o objetivo da Andrea arrancar uma risada dele. Mas a risada veio, com força e com coragem, porque sabia que chegava pra provocar um furacão.

- Para de rir, seu idiota! Tinha dias que eu saia do banho mais cortada que salaminho da padaria.

A gargalhada aumentou, beirando o incontrolável. Ele nem sabia direito o porquê de estar rindo. Mas o pequeno ossinho do humor em sua barriga estava se contorcendo.

- Cadê o homem que me faz ficar feliz? Ele tava aqui há pouco tempo.
- Esse homem, ele não te ama - respondeu, em meio as risadas.

E o riso então morreu. Porque graça não havia. Era desespero de um lado. E um coração partido do outro.





sexta-feira, 11 de março de 2016

Quatro pães de sal




Ele adora ouvir trechos de conversas de gente passando na rua, no mercado, no coletivo. É como uma colher de fermento pra imaginação do Diego que, acostumada, preenche o os vazios..

- ... aí você acredita que ele olhou pra Marta?! Babaca pra...

Completava do jeito que queria. "Logo pra Marta! Antes de ela virar astronauta ninguém espiava, agora que tá cheia de grana espacial da NASA a rapaziada fica encarando! Tsc, tsc". Fazia isso mentalmente na maioria das vezes. De vez em quando, sussurrava a resposta, seguindo na direção oposta, só pelo prazer da intromissão/ousadia lançada ao vento.

Hoje, foi um tico diferente. Na fila do pão, um homem falava no celular:

- ...assim eu num guento! Essas coisas deixa a gente doido, cara.

Retrucou sem se dar conta, distraído. 

- Por isso que o povo faz bobagem, né? - disse ele, surpreendendo quem estava em volta.
- Oi...? - balbuciou o homem, virando a cabeça pra olhá-lo.
- Todas aquelas vezes em que alguém sai falando das dores, de um jeito que o mundo não quer, sabe? Aqueles posts de sofrência gigantescos pós-término, ou as fotos de falsa felicidade pra estimular o recalque.
- Mas não é disso que eu tav...
- Ainda assim, dá pra entender. Quando você sente uma dor dessas e tal. Você não consegue colocá-la em nenhuma palavra, então sente a angústia de dizer milhares, pra muitos, pra todos. Palavras vazando, vazias. Não retém a dor, nem a dignidade, direito. Como se nenhuma sílaba dividisse, nenhuma métrica coubesse. Escravo da palavra, fala todas as que não deve. Curioso, não? 
- Cara... eu só tava reclamando do meu patrão aqui. 
- Ah, entendi. 

Depois de pedir seus quatro pães de sal, passando pelo corredor de frios e pagar em moedas pelo lanche, o rapaz sorriu. Constrangimento pesado à parte, ele não precisaria imaginar nada daquela conversa. E de quebra, criou a fila do pão mais reflexiva da história do município.



quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Alfabetização




Em uma conversa, um reencontro intenso de amizade, que não se limita a Domingos e suas lamentações, dois amigos. Cerveja de um lado, café do outro. Nenhum dos dois bebe nenhuma das duas bebidas. O pedido foi a essência daqueles homens no seu encontro: absolutamente profundos e sem nenhuma seriedade ao mesmo tempo.

- A gente às vezes aprende a ler quem está com você. Depois de um tempo, fica sensível naquele processo de avaliação, de mensuração. Na ausência de palavras, virei um garimpeiro de verdades obscuras... Queria eu que ela só falasse. Simplesmente me dissesse o que sentia, o que pensava, o que vivia. Assim eu evitaria as coisas que li quando queria ter sido analfabeto.
- “Pra aprendêêêêê a lêêêêêê, pra isso não tem hooooora!”. Lembra?
- Hahahahaha, sim! Melhor jingle do governo.
- Melhor. Continua, meu chapa. O que leu?
- A gente tinha uma pequena memória, bonita e pura, do início do relacionamento. Beijo no nariz. Não vou explicar demais porque você não merece.
- Justo. Essas coisas são íntimas e eu nem entenderia também.

- Grato. Pois bem, tinha o beijo no nariz, significativo e particular. E uma vez, depois de já termos terminado, eu ressuscitei essa lembrança. Beijinho no nariz. E ela... ai, ela deu um meio sorriso reto. Sabe? Quando a pessoa aperta os lábios na hora de sorrir, a boca vira uma linha continua e sem contornos. Nela, eu sabia, era misturando a tentativa de ficar feliz com uma tristeza escondida. Doeu.
- A tristeza escondida?
- Também, também. Mas eu acho que mais o fato daquilo, tão inocente e feliz, ter se transformado. Não estávamos mais juntos, então eu revi as probabilidades. A maior delas... Ela ter usado o beijo no nariz com outra pessoa e ali, se sentido mal com isso.
- Com razão?
- Um ato delicado e único que foi moldado cheio de amor entre duas pessoas, utilizado com outra? Sim. Muito errado, inclusive com quem recebeu esse gesto. Pode ter sido qualquer outra coisa também. Ela pode ter se lembrado que não tinhamos mais aquele amor ingênuo, pode ter associado o beijo aos momentos ruins, sei lá. Contudo, não é disso que eu tô falando, velho. Apontar dedos, sabe... Passou. Graças a Deus, haha!
- Eu entendi. O momento se perdeu.
- Isso! Se perdeu. Era algo que poderia ter durado pra sempre, como todo gesto de amor genuíno. Esse beijo no nariz poderia ser um sinal através dos tempos, uma bóia de felicidade nos mares de memória, pra que a gente se segurasse mesmo depois que eu e ela estivéssemos em outras vidas. Eu poderia me apaixonar milhares de vezes, isso não mudaria. E ali, finado-velado-enterrado, num processo fúnebre que aconteceu só no meu coração.

- Cara... Isso é bonito de tão triste. Mas parece ser parte da vida. Como um pudim de leite que se espatifa no chão antes de você pegar uma fatia sequer.
- De laranja! O de leite a gente ainda pode achar na padoca.
- Ou de chocolate com nozes! Já viu?
- Não, nem sabia que existia.
- Vou te levar na casa da minha mãe pra você ver.
- É nóis.
- Guarda mágoas?
- Sei lá, acho que não. Tem muitas outras bóias de felicidade nesse mar de memórias. O coração aqui já ressuscitou o amor, como você bem sabe. Tanta coisa aconteceu de lá até aqui...
- “nanana... dois caminhos, refaço o nó pra nos unir”.
- “Nasce de novo, todo dia faz, toda vez, que vejo você”. E aquele seu amor?
- Nha, não deu. A verdade é que não era amor.
- Que houve?
- Ela disse em uma frase a expressão “ângulo de vista”, sem zueira, falou seriamente aquilo.
- Estranho.
- Demais! Nem ângulo de visão, nem ponto de vista. Não fez sentido. Aí, não deu. Terminei.
- Cara...
- O que?
- Você é um idiota. E por isso eu te compreendo perfeitamente.

Ambos sorriram e finalmente deram um gole em suas bebidas que odiavam. E mesmo quando saíram, tarde da noite, o gosto daquilo tudo não tinha ido embora. Cafeína, lúpulo, alfabetização.



terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Assassinos




- Você sabe como ser bonito!
- Hahaha, ok, me explica isso.
- Você é bonito, claro. Mas tá longe de ser arrogante. Não fica inseguro perto de mim. E olha que sou uma armadilha com sotaque.


Ela está me mantando em seu coração.

Hoje, dá pra sentir pelas palavras escassas, pela distância que não é só física. E eu, sentado em minha cadeira robusta de madeira na varanda da casa, assisto com uma expressão de desolação irônica. Eram altas as chances disso acontecer, não eram? Não sou um apostador. Então quando entro no jogo, entro pra perder.

Invadi aqueles ventrículos e átrios, fui um choque anafilático, o sangue venoso que ainda não sabe por quais veias correr. Tudo tão rápido, tão taquicardíaco. Agora, lentamente bombeanto em suas funções regulares, vejo meu espaço encolher. Como se a minha mansão nesse miocárdio tenha que minguar até que o quarto-e-sala onde estou agora desapareça. Em um infarto fulminante eu nasci e morro por insuficiência cardíaca. Se encerram os blips-blips do monitores. Blip, Blip.

O peso do amor, do começo, sim, eu sabia. Assim como nunca me enganei, aqueles hectares musculares tinham outro morador. Cohabitat. Ela pode se amarrar em terra firme, se firmar em seu inquilino de longa data. Não sei, não sou.

Naquele abraço perdido em um corredor do meu apartamento, nus e em lágrimas, ela sentia saudade daquilo que não tínhamos vivido. Como aproveitar um amor em antecipação, esperando gritos e sonhos não realizados, cortes profundos em estômagos rasos de tamanha ansiedade? Como ser um humano se caminhamos vazios um do outro, no nosso afobamento linear de quem não pensa no futuro? Fomos do agora, um agora que já passou.

De vez em quando, sussuro os trechos entrecortados de Walt Whitman.
"This wind is our deepest bond. And I wish things had started before they finished".

Eu estou matando-a em meu coração.



Quem sou eu

Minha foto
"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto