domingo, 20 de fevereiro de 2011

Valsa de Gil

Com uma caneta girando entre os dedos, Gil ainda caminhava. O sol despertava, mas a luz tênue não o acordava da semi-vida. Uma longa noite de insônia e peregrinação, como tantas outras. A cabeça pendia, a mente devaneando entre a caneta e o cansaço.

De repente e não mais que de repente, um novo cenário. Gil percebe, ao fundo da cena, uma armadilha da vida. Um casal de velhinhos, talvez não tão velhinhos, dançando pela quadra. Parecia ser qualquer coisa como uma valsa. Devia ser valsa. Afinal, velho adora valsa. E eles estavam, sem dúvida, adorando aquilo.

O rapaz ficou como estava, como um bobo, girando uma caneta na mão e olhando mais uma dessas cenas particulares da cidade que acorda. Você já passou por isso. Enquadrar um pedaço da vida ao seu redor. Compreender como é linda aquela fatia do mundo. Emoldura aquilo na sua mente. Clack. Um registro único que vai mudar seus dias. Não sei como você reage a esses momentos. Gil sempre começava a sorrir.

Ele havia acabado de terminar um relacionamento, coitado. Não sabia bem o que era, mas não era de todo o mal. Pelo contrário, era muito bom. Carinho. Ele costuma tapar os buracos no seu peito por um tempo. Contudo, ele queria amor. Precisava, até. Aquela força que envolve, nos faz sentir como personagens de um livro do José de Alencar, só que sem tuberculose.

E amor ali não havia. Melhor acabar, não deixar espaço pra mágoas que viriam pela promessa de continuar algo sem um propósito. Então Gil desfez aquela história, um filme num close pro fim.

As dúvidas simplórias vagavam pela sua cabeça e Gil sabia que não seriam resolvidas com uma cartada. A vida não funciona como em uma partida de truco, com um blefe. Mas ele não conseguia parar de evitar o “quando será que consigo amar de novo?” martelando em sua cabeça.

Podia ter um prazo de validade nessas coisas. Coração partido: fabricado no dia tanto, vencimento dia tal. Daí a gente podia viver sossegado e saber quando vai estar preparado. A vida deveria ser um cheque pré-datado a ser descontado num futuro indefinido. Só quando a gente tivesse saldo sobrando. A vida não deveria ser a eterna dívida que é.

A união de duas pessoas, no fundo, é uma cumplicidade de presença, não acha? Uma promessa de que “eu vou estar lá”, seja lá onde o “lá” for. Acho que, quando eu casar, vai ser por querer compartilhar, sim. E também para ser testemunha. Uma fiel testemunha daquela que ao meu lado estiver. A memória, as pequenas besteiras, os sorrisos e franzidos do rosto. A vida dela será emoldurada dentro de mim.
Afinal, será que amar é mesmo tudo?


Lá no fundo da cena, os velhinhos continuam dançando. Olham para o garoto e dão um bom dia animado. Eles também estão sorrindo.

Quem sou eu

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"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto