terça-feira, 5 de maio de 2015

Marujos - Um Brinde





- Alôôô, ei! Hahaha! Sim, segura aí o som. Tenho umas coisas pra dizer. Calem a boca, que "aaaaaaah!" que nada.  Hahahahaha! Cade os copos de vocês?! Isso. Pega lá. Não, você também! Larga ele e pega seu copo. Porque eu tô mandando. Quem te convidou? Eu não fui. Isso, copos erguidos! Agora, um brinde!


Até aqui tomamos caminhos muito diferentes. Somos muito diferentes e vamos sempre ser. Mas temos o sobrenome que vem primeiro. Não tem leme nessa vida, por isso o nosso sobrenome tomou o Norte deste barco. Lucas são muitos. Doca, não. Onde eu fui, fui o Doca. E a gente foi pra tudo o que é lado, né?

França, Portugal, Jamaica, Nova York. Você pra fazer mais flexões com o cérebro, eu... sei lá, porque eu queria beijar uma menina de cada país diferente! Hahaha! Sentir a faca entre os dentes, tocar o mar com os dedos como se fossem quilha do destino. E bradar com as canções de... de... argh.


Mentira. Não é só isso... corremos atrás da independência, cada um queria se tornar um homem forte, nos moldes de um pai que nunca esteve. Dar orgulho pra mãe que lutou por dois. A gente queria ser os Docas que valem a pena. Cada um por si, Deus não se metendo nessa história. Eu queria, a gente queria. O que encontramos? Até aqui, é o pó de um nome que corre pelos alísios.

Você me mostrou isso na sua sala de professor com cheiro de madeira nova. De todos os lugares em que eu estive, foi ali, naquela sala que eu descobri. Que enquanto navegava a sotavento pelo desconhecido, eu me sentia o cara mais sozinho do mundo. E você, a barlavento, você se sentia igual. Somos irmãos, afinal, no abandono profundo. 

Os únicos Docas. Aqui e onde mais, somos os que valeräo a pena. Os que nunca tiveram um lar, sob uma família inteira com nome de porto e que nunca teve um porto de verdade. Naquela sala eu recuperei um irmão, um homem melhor do que o que partiu, que me pediu desculpas e tem um amor pra dividir a vida daqui em diante.

Olha onde você está! Mais perto do porto que eu jamais estive. Daquelas Docas onde estacionarei, águas mansas e seguras, a família. A fogueira no quintal onde vou me sentar e contar histórias de popa e proa para os marinheiros de primeira viagem. Você tá tão perto. Cruzando esta enseada, o lar. O tão sonhado lar!

Um brinde a você, marújo.



Quem sou eu

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"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto