segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Magnólia - Parte IV




Esperei, sem pressa, a multidão se dissipar. Não contava com aquilo e me espantei ao descer do táxi. Algumas centenas de pessoas formavam um circulo compacto ao redor dela. Observei a expressão deles e encontrei de tudo. Dor, curiosidade, surpresa. Principalmente surpresa. Cometários sussurrados formavam uma onda de chiados ecoando pelo espaço. O som rasgava o ar como ondas quebrando, espumando incerteza.

Esperei e, mesmo cercado de gente, só o céu de aço me fez companhia. As nuvens deveriam ter sido mais compreensivas, pensei. Magnólia merecia um dia ensolarado no seu enterro.

***

O carro roncava enquanto as marchas eram passadas com desleixo. Eu não sei que carro era, ninguém nunca foi preciso quanto a essa parte, mas gosto de pensar que ela dirigia um pequeno caminhão roubado. Uma pena a funcionária do posto de gasolina da cidade estar dormindo durante o serviço. Ela me ajudaria com esse detalhe. Contudo, só que ela viu ao acordar foi um par de lanternas traseiras sumindo pela estrada. E, é claro, as faíscas altas do enorme tanque de combústivel que o carro arrastava sem nenhum cuidado pelo asfalto. Ela disse ter demorado alguns minutos pra entender que alguém tinha roubado um tanque inteiro do posto, por isso a ligação que fez a polícia era tão confusa. Não a julgue. Você também não acreditaria se acordasse vendo uma cena dessas.

Quando o pai de Magnólia acordou, o canavial onde plantara o seu dinheiro lhe mostrou uma lição de mercado. A economia é regida por uma mão invisível. E alguma mão invisível espalhara combustível ao redor de toda a fazenda até a usina. Eles teriam que esperar a chuva pra poder lavar aquilo, lhe disse o chefe da colheita.

No centro da cidade, a estátua do fundador amanheceu sem cabeça. Foi substituída por uma calota de carro pichada com os dizeres "Viveu corno e morreu virgem". As pessoas ficaram chocadas, veja se pode esse absurdo. Todos sabiam que o fundador da cidade nunca se casou.

O mesmo vândalo virou a noite estourando os registros dos carros. A água jorrava dos hidrantes da cidade, até um soldado novo resolver ligar para a companhia de abastecimento e mandar cortar o fornecimento antes que ficasse tudo inundado. A única mulher da corporação estranhou o cheiro de acetona que sentiu no ar. Ela não tinha feito as unhas naquele dia.

A beira do rio, o novo complexo residencial amanheceu com um mistério. As tulipas da dona Matilde, tão bem cuidadas, foram pisoteadas insistentemente. E isso apesar das placas de "cuidado com o canteiro" afixadas por todo o local. O carro zero do seu Jonas estava riscado. E a Tassínha, quando foi brincar no rio, sentiu um gosto estranho e forte na água. Colocou um pouco na mamadeira e levou pra mãe, que ficou preocupada e deu bronca na criança por ter mexido no bar do papai. Mandou a menina para o quarto e passou o resto da manhã bebericando o uísque que ela tinha trazido.

Magnólia estava sentada no boteco. Olhava o caos se espalhando, sorriso cansado no rosto. O dono do bar, achou que fosse um assalto quando a viu entrar derramando um vidro de álcool pelo chão e sacando a arma. Mas não entendeu quando ela colocou uma nota de vinte no balcão e pediu um chope. Disse pra ficar com o troco, pra limpar o chão mais tarde. Reconheceu a menina louca de anos atrás, a menina da história triste do rio. Dia esquisito. Chamou a polícia. Magnólia espetou um palito de dente na tampa do álcool, virou a garrafa de cabeça pra baixo, enfiou no bolso da calça e se sentou. E o dono bar sentiu um frio na espinha. Tinha alguma coisa muito errada naquela cena.

A polícia chegou e em grande quantidade. A história da volta da menina louca, Mag Desce Todas, batia perfeitamente com a onda de eventos que deixaram a cidade em polvorosa. Polvorosa, boa palavra pra descrever aquilo tudo.Antes de ser algemada, Mag já estava de pé. Sorria abertamente, mordendo um palito de dente. Ela é mesmo doida, pensou o policial. O bar ficava de frente para o prédio da prefeitura, onde também estava a única cela da cidade. Lá o delegado a aguardava.

Sentado no meio da cela, ele esperava lidar com uma menina maluca que resolvera voltar pra escandalizar um pouco aquele povo bobo. Se surpreendeu ao encarar uma mulher segura. Resolveu bater de frente:

- Confessa que os delitos apresentados pelos policias que te prenderam foram cometidos pela senhora?
- Faço questão de dizer que fui eu.
- Você não está levando isso a sério, não é?
- Sério, delegado? Acho que você vai mudar sua ideia sobre o que é sério.
- Haha! Você é só uma mulher doida que reapareceu pra me encher o saco.

Ela olhou firme para o delegado. E, com o palito de dente na boca, propôs um desafio.

- Você me dá um cigarro e faço sua vida mudar.

O homem decidiu dar uma chance para a sorte. Acendeu o cigarro, colocou nos dedos da criatura que parecia crescer em sua frente. Ela abriu um meio sorriso.

- Nasci mulher numa cidade que não tem futuro nem para os homens que mandam nela. Cresci correndo do mundo em uma moto de quinhentas cilindradas, achando que podia achar uma resposta na velocidade. Amei, e amando eu amadureci o bastante pra poder me entender como uma mulher que pode cavar o seu lugar. Chorei, vendo que o lugar que eu construí podia ser derrubado do mundo como um castelo de cartas. E agora que eu não tenho mais porra nenhuma, que desperdicei minha vida contendo a minha tristeza dentro de dias bobos... achei que podia terminar tudo com um pouco de estilo. Entende?
- Tudo o que? - perguntou o delegado, que já não conseguia desgrudar os olhos dela.
- Tudo o que está nos limites desse lugar. Incluindo eu e esse palito de dente.
- Palito?

Ela cuspiu o palito no rosto dele. Olhou de novo para o cigarro. Soltou a ponta que queimava em brasa sobre o chão molhado. Sim, pois aquele palito era o que segurava o álcool dentro de uma garrafa em seu bolso. Álcool que agora estava no chão da cela e espalhado como um pavio que conduz ao fim dessa história.

O fogo correu pelo chão, como se tivesse vida própria. Naquela cela, Magnólia deu o seu primeiro beijo. Em um ladrão qualquer, já não importava mais. O fogo continuou pelas escadas do prédio, cruzou a rua até o bar onde Magnólia provou pela primeira vez o gosto da violência ao quebrar uma garrafa de gim em um valentão. O fogo seguiu caminho por trás do bar até chegar ao início da plantação de cana. Aquela cana que a fizera escrava de um futuro que não era dela, de um pai que a queria como outra, de um mundo de faz de conta para uma mulher que nunca existiu. O fogo transformou hectares e hectares em pó, mas não antes de atingir o rio. O fogo fez o rio flambar, acertou as casas feitas sem amor, de famílias que invadiram as terras para morar com um conforto que a cidade não dera a Magnólia. O fogo chegou aos bombeiros, que assistiram sem acreditar enquanto seus caminhões e sirenes derretiam, ironia regada a gasolina. O fogo chegou a praça, fez da estátua um amontoado de bronze fundido.

As pessoas correram. Viram tudo virar cinza lentamente. Cada tijolo, cada quadro na parede, cada jardim bem cuidado. O delegado disse ter visto um sorriso enviesado em Magnólia quando ele se levantou para fugir do prédio. Disse que não teve tempo para libertá-la, que ficou desesperado. Que ela não queria ser libertada.

A cidade desapareceu. Não vão reconstruí-la, ouvi dizer. Não há dinheiro. Ninguém sabe o que fazer. A vida de cada um mudou. As diferenças entre eles não significavam mais nada. Todos se uniram a Magnólia. Todos se uniram em seu funeral. Todos lembravam de como ela arruinara tudo. E por isso eles a enterraram com todas as honras. A cidade desapareceu. Cada um teria que viver uma nova vida. Começar de novo. E a cada cinco pensamentos, cinco eram sobre ela. Magnólia reinava soberana sobre seu povo.

Eu deixei a foto sobre a grama. Uma foto antiga, porém não desbotada. Olhei ao redor e o céu de aço ainda estava lá, perene. O mundo particular de todos nós mudara de um jeito tão permanente... E eu só conseguia pensar que eu nunca entenderia toda essa história. E que nunca saberia contá-la como Magnólia merece.



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"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto