sábado, 2 de junho de 2012

[INFO] Quatro rodas

Vivemos em rodinhas, não é? Especialmente sobre quatro rodinhas. Do carrinho de rolimã ao conversível que compra na meia-idade, o homem tá aí, deslizando.

Por mais que tente fugir, o automóvel te rastreia. Ele tá lá, de tocaia. Escapei em Brasília, com dificuldade. Quem é de lá sabe que viver naquele quadrado, sem rodas, é morrer tentando.

Mas o carro me encurralou aqui, na Jamaica, ao som de Jimmy-Cliff0-Rastafari-Ya-Man! Aqui não há jeito. Simplesmente não há. Vou explicar de uma forma simples. Pense em alternativas pra viver sem carro, usa aí sua imaginação. Várias. Pensou? Então, nenhuma delas funciona aqui. Sim. Incluindo carrinho de rolimã. Eu tentei.

Forçado a sentar atrás do volante, enfrentar medos e preconceitos, acabei metido em coisas interessantes. Boas e ruins. Sei lá, é isso de aprender com a vida, né?

Toda essa balela foi pra dizer que com essas experiências, vou dividir com vocês mais uma pequena série de crônicas chamada "Just Drive", aos domingos. Três partes, talvez uma quarta aí, que tamo negociando com o tempo.

O blog tá crescendo em número de acessos a cada postagem, mesmo sem nenhuma publicidade ou divulgação além do post único nas minhas redes sociais e do seu compartilhamento. Então te devo um "valeu, chapa!".

Só texto, nada além de texto, e centenas e acessos. Nem um design elaborado eu criei pro blog ainda. Então, vá. Pode se emocionar. Tem beleza nisso, a gente sabe.


Just Drive - Parte I (Emergency Driving School)


"Eu só queria um yakissoba. Mas na Jamaica é tudo um pouco mais fácil e muito mais difícil."
Ian Fleming - Memórias


Passa das 23h e eu já estou deitadinho na minha cama, meio dormindo/meio lendo um livro, meia calabresa/meia muzzarela. Pijama no corpo, dentes escovados. Óculos de ficar em casa. Só a luz do abajur espalhada no quarto, um farol no mar do sono. Tudo tão tranquilo, tão calmo, tão...

Toca a campainha. Me sento de uma vez na cama com o susto. Espero, passam alguns segundos e nada. Deve ter sido engano. Por favor, que seja engano. Mas toca a campainha de novo e dessa vez por um longo tempo. Calço os chinelos. Puto, xingo o inventor da campainha. Desço as escadas e pego o interfone.

- Hello?
- MISTER LUC.. (estática)... TACK, HE NEEDS HEL (estática)... HURRY! QUICK, MAN QUICK!
- What the...? Come again.
- A MAN... (estática)... HEART ATTACK (estática)... MOV YA CAR, YA SEE?! NOW! NOW!

Caralho, alguém tá tendo um infarto! Preciso tirar o carro da vaga, é isso! Ambulância não tá conseguindo chegar no cara. Cadê a chave?! Cadê o diabo da chave?!

Pego tudo e saio correndo, larguei o chinelo dentro de casa. Os pés descalços no cimento fazem barulho de galope. Passo pelo portão e já vou pro estacionamento. Mas não tem nenhuma ambulância. E mesmo se tivesse, não faria sentido eu mover meu carro, percebo. É a última vaga, jamais atrapalharia qualquer passagem. Daí chega a porteira e diz, com pânico nos olhos:

- HURRY, MISTER LUCAS! THE GUY IS DYING! HELP ME, GRAB HIS ARMS!
- Calm down! Where is the ambulance? I'm not getting this hole thing.
- There is no ambulance! I called you to take him to the hospital, ya see! There are no ambulances in Kingston between 23h e 4h, man!

E aí foi a minha vez de gritar:

- WHAT THE FUCK?!

***

Eu tinha sete anos. Tava sentado no banco de trás do carro, brincando com um boneco do Comandos em Ação. Minha mãe dirigia, me levando pra casa da irmã. E de repente uma força me puxa o corpo inteiro pra frente, nenhuma chance de resistência. Só muitos anos depois, no estudo das leis da cinemática da Física, fui saber o nome daquela força. Na hora eu só senti o seu poder. A última coisa que lembro é da expressão de pavor da minhã mãe e da coluna que sustenta o teto do carro, aquela perto do motorista. Depois, blackout.

Acordei em um hospital. Doía tudo e doía muito, como se eu tivesse sido arremessado pra fora de um carro, voado por metros e só sobrevivido por ser leve e cair em um ponto milagroso de grama e arbustos. E, bom, era exatamente isso. Descobri que não conseguia me mexer. Eram tantas fraturas que imobilizaram o corpo inteiro, inclusive o maxilar, que quebrei dos dois lados. Do lado da cama estava meu boneco do Comandos em Ação. Sem a cabeça.

***

O homem é um desses britânicos rosadinhos, com cara de quem vê programa de praia na TV vestindo uma minisunga azul bebê. E pesado. Jogo ele no banco do passageiro. Sento no meu banco, ligo o carro, mas tô tão nervoso que demoro quase dois minutos pra tirar da vaga. Ele grita de dor do meu lado, manda eu me apressar. Tento achar a embreagem, lembro que meu carro era automático e que não tem embreagem. Saio cantando pneus do prédio, quase acertando dois carros no caminho. Ele grita comigo.

- WHAT ARE YOU DOING?! TURN THE LIGHTS ON!
- Calm down, ok? I'll do my best!
- WHA... WHAT??? YOUR BEST?!
- I don't drive. Now shut up.
- I  CAN'T BELI...
- SHUT UP! I DON'T DRIVE! WANNA MAKE THIS HARDER?!

Ele, em meio ao infarto, berra as direções. Entro na avenida principal acelerando. Ele fica mais desesperado, tentando falar comigo. A voz sai num fiapo estrangulado, assustador, muito mais que os gritos.

- You're in the wrong way... guffff... British... grrrfff

Mão inglesa, cacete, na Jamaica é mão inglesa! A 80km/h na contramão, o suor frio começa a escorrer. Fico mais desesperado. Não vejo um retorno, um jeito de ir pro lado certo da pista. Ele recomeça a gritar, me manda parar o carro. Vejo um carro da polícia, buzino como um louco. Ele vem rápido, já ligando a sirene.

Paro o carro e explico, ou melhor, aponto por enfartando enquanto deságuo uma mistura de inglês, português e espanhol. Eles entendem, levam o homem pra viatura e somem na noite silenciosa de Kingston. Só o discreto som do motor do carro ligado. Sento no meio-fio, mãos tremendo e olho pra ele. Azul, japonês, imponente. É um carro bonito. Mas só de pensar em entrar nele de novo me dá um calafrio. Ainda assim eu vou pro banco do motorista, sento, e tento telefonar pro Brasil. Ela não me atende.

Fecho a porta, dirijo a 10km/h até meu condomínio. Nem tento estacionar, largo o carro ocupando duas vagas. Desligo e tiro a chave da ignição. E antes de sair, encaro por um segundo a maldita barra de sustentação do teto, aquela que fica perto do motorista.


Quem sou eu

Minha foto
"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto