PARKING LOT
Últimos dias de Jamaica, últimos dias de carro. Depois de tantas aventuras, o Toyota Yaris azul-bonito me encara e brilha, como se dissesse um verdadeiro "foi bom te conhecer, rapaz". Desbravamos juntos todas as 14 províncias dessa ilha. Ele foi teto e foi cama, foi transporte e diversão, foi vento. Foi feito de vento. Subindo e descendo as montanhas tropicais de um país que luta desesperado pra se manter de pé. E olha só, depois de tudo isso, eu ainda não sabia o nome que iria dar pro tal carrinho.
Últimos dias de Jamaica, últimos dias de carro. Depois de tantas aventuras, o Toyota Yaris azul-bonito me encara e brilha, como se dissesse um verdadeiro "foi bom te conhecer, rapaz". Desbravamos juntos todas as 14 províncias dessa ilha. Ele foi teto e foi cama, foi transporte e diversão, foi vento. Foi feito de vento. Subindo e descendo as montanhas tropicais de um país que luta desesperado pra se manter de pé. E olha só, depois de tudo isso, eu ainda não sabia o nome que iria dar pro tal carrinho.
LOT
OF PETER
O
dr. Rogério não era um contador de histórias, mas sabia alguns
truques bons pra prender minha atenção. Me olhou com calma e
começou.
-
Antes de virar pediatra, eu trabalhei por quase três anos na
Emergência desse hospital junto com o Peter. Dois plantonistas da
noite. Nunca gostei dele. Sempre mal-humorado, sempre desrespeitando
os pacientes e a própria equipe dele. Como você bem disse, um
boçal. Aliás, onde você aprendeu essa palavra?
-
Cavaleiros do Zodíaco. Quem é Peter?
-
O desenho? É sério? Peter é o cirurgião que você não gosta.
-
Eles precisam trocar os palavrões por palavras mais bobas na
dublagem dos desenhos. Ele é o homem-aranha?
-
Que bobagem. Mas tudo bem. Voltando. Ele era um boçal. Não tinha
nenhum respeito por ele, apesar de trabalharmos lado a lado. E
então...
-
Tudo mudou!
-
É, mais ou menos.
PARKING
LOT
Apertei
a mão do Patrick, o camarada que foi meu motorista na maior parte
das aventuras de jornalista desbravador. Nossa missão enquanto dupla de super-heróis estava cumprida. Aprendemos um com outro a guiar as enormes diferenças
entre um garoto do Brasil e um senhor da Jamaica, mas o homem calvo
era um mistério ainda, e ir sem desvendá-lo é algo que vai me
consumir até o fim dos dias. O olhar cansado que ele sustentava era etéreo, resoluto. O que há na alma desse sujeito? O que ele vê que não vejo?
No aperto que selou o adeus, tinha cumplicidade, tinha carinho, tinha respeito, tinha passado.
No aperto que selou o adeus, tinha cumplicidade, tinha carinho, tinha respeito, tinha passado.
Era
uma despedida que ambos sabíamos ser definitiva, daquelas em que você
pára pra olhar com um pouco mais de intensidade o outro, enxergar
nele o espelho que vai ficar em você. Histórias e estórias que
vivemos eram tudo o que no fim se mostrava. Ele respirou fundo e colocou na cabeça o boné onde se lia "Brazil, Banana". E foi-se embora naquele passo lento, sem compasso, pra um lugar onde não vou mais
encontrá-lo.
LOT
OF PETER
“Numa
noite de feriado, chegou o tal acidentado. Não tinha ferimentos na
cabeça ou em órgãos vitais, então o pessoal da
Emergência automaticamente o colocou em segundo plano. É cruel, mas
a gente só quer deixar todo mundo vivo. O resto é o resto quando
chove sangue na Emergência, inclusive com você, quando chegou aqui
nesse hospital. Você, que gosta tanto de segredos e descobertas, foi
só mais uma testemunha inconsciente da sala de operações que
resgata o povo toda da morte certa. E nos feriados... O meu segredo
é que eu desistia dos homens, e desisti desse sujeito assim que vi
que ele continuaria respirando. Só que um dos médicos não
amoleceu. O Peter. O cara tinha caído de moto e recebido todo o
impacto nos joelhos. Não eram apenas fraturas, garoto. O joelho dele
tinha virado farelo. A gente já estava discutindo o procedimento de
amputação pra resolver a questão. E o Peter tocava a fazer exames. Sozinho,
nem uma palavra com o resto da equipe. Levava o sujeito pra cima e
pra baixo na maca.”
-
Eu gosto de andar de maca! Cadeira de rodas pinica e vai rápido
demais.
-
Sua maca deveria estar presa. Vou resolver isso hoje.
-
Chatão. Mas e aí?
“Aí que quando montamos a mesa de cirurgia, o Peter chega trazendo o paciente e mandando trocar os instrumentos. Nós não entendemos, ele dizia que iria operar os ligamentos primeiro, que os pinos já estavam prontos. Achei que ele estava ficando louco. Tentei segurá-lo e dizer que o certo era amputar e salvar a vida do rapaz. E ele falou 'Cresça colhões, Rogério! Você nem tentou e já desistiu!'. E começou o procedimento. Ele era o cirurgião, ele decidia. Todos estavam fervendo de raiva. Só que... Depois de quase oito horas de cirurgia, vi um homem operar um milagre. Ele reconstruiu 90% dos joelhos do paciente. Era como assistir alguém montando um quebra-cabeças dentro corpo de alguém. Ele não piscava, nada de pausas e nos orquestrava com precisão. Vi dentro dele todo o amor ao que fazia. Em cada corte, cada sutura, cada gota de suor em que ele secava com pressa. Na mesa de cirurgia ele se mostrou o maior amante do mundo. Não iria deixar dar errado.
Dois
anos depois o paciente voltou a vida sem nenhuma grande sequela.
Estava curado e me abraçava em gratidão. Não sabia que o
homem que tinha feito tudo era o mal-encarado e grosso cirurgião que
nem falava com ele direito. E o resto da equipe nunca teve coragem de
admitir a falha. Pro paciente, pra si mesmos, meu Deus, eu nunca
contei isso nem pra minha mulher.”
As
mãos dele tremiam, meu médico era naquele momento um homem em
frangalhos. Se sustentava só pelo meu olhar de compaixão. Não
conseguia nem piscar ouvindo a história. O Rogério, não mais doutor, se
aproximou arrastando sua cadeira para três palmos do meu
rosto e, então, perguntou:
PARKING
LOT
Quando
estacionei o carro sob a paineira da locadora de veículos, meus
dedos se agarraram ao volante, num espasmo da saudade que começa
antes do momento acabar. Queria deixar minhas digitais naquele carro.
Queria que ele soubesse da importância que teve pra mim. O que ele
me ajudou a vencer, o que causou nas minhas entranhas, não
tinha nome, era algo tão especial que acabava se perdendo pela falta
de compreensão do resto do mundo. A genialidade muda que descobrimos
em bobagens da vida. Aquele carro iria passar pela mão de outros
muitos, sem nenhum significado especial, iria me abandonar, mas deixou o que precisava. Ele era o fim e um recomeço
nas vias tortuosas que percorri pela ilha da Jamaica e por dentro dos
meus próprios medos, era o Serafim de Mãos Trocadas, assim o
batizei antes de tirar as chaves da ignição pela última vez.
***
De
volta ao Brasil, de volta à minha janela. Coloquei a fita K7 no som
do carro, enquanto meu pai engatava a primeira marcha. Eu perguntei a
ele se já tinha ouvido falar em USB, ele respondeu que não
acompanhava mais futebol, mas que sabia que meu Palmeiras tava
rebaixando. Eu ri. Fiquei um tempo encarando a fita com cara de interrogação, ele disse que tinha ali aquela
canção de ninar que eu adorava quando passeávamos de carro.
E assim fui escutando Lynyrd Skynyrd desfiar seu Free Bird enquanto comia o vento da estrada por milhas e milhas.
E assim fui escutando Lynyrd Skynyrd desfiar seu Free Bird enquanto comia o vento da estrada por milhas e milhas.