sábado, 29 de setembro de 2012

Just Drive - Parte Final (Lot of Peter Parking Lot)




PARKING LOT 
Últimos dias de Jamaica, últimos dias de carro. Depois de tantas aventuras, o Toyota Yaris azul-bonito me encara e brilha, como se dissesse um verdadeiro "foi bom te conhecer, rapaz". Desbravamos juntos todas as 14 províncias dessa ilha. Ele foi teto e foi cama, foi transporte e diversão, foi vento. Foi feito de vento. Subindo e descendo as montanhas tropicais de um país que luta desesperado pra se manter de pé. E olha só, depois de tudo isso, eu ainda não sabia o nome que iria dar pro tal carrinho.

LOT OF PETER
O dr. Rogério não era um contador de histórias, mas sabia alguns truques bons pra prender minha atenção. Me olhou com calma e começou.

- Antes de virar pediatra, eu trabalhei por quase três anos na Emergência desse hospital junto com o Peter. Dois plantonistas da noite. Nunca gostei dele. Sempre mal-humorado, sempre desrespeitando os pacientes e a própria equipe dele. Como você bem disse, um boçal. Aliás, onde você aprendeu essa palavra?
- Cavaleiros do Zodíaco. Quem é Peter?
- O desenho? É sério? Peter é o cirurgião que você não gosta.
- Eles precisam trocar os palavrões por palavras mais bobas na dublagem dos desenhos. Ele é o homem-aranha?
- Que bobagem. Mas tudo bem. Voltando. Ele era um boçal. Não tinha nenhum respeito por ele, apesar de trabalharmos lado a lado. E então...
- Tudo mudou!
- É, mais ou menos.

PARKING LOT
Apertei a mão do Patrick, o camarada que foi meu motorista na maior parte das aventuras de jornalista desbravador. Nossa missão enquanto dupla de super-heróis estava cumprida. Aprendemos um com outro a guiar as enormes diferenças entre um garoto do Brasil e um senhor da Jamaica, mas o homem calvo era um mistério ainda, e ir sem desvendá-lo é algo que vai me consumir até o fim dos dias. O olhar cansado que ele sustentava era etéreo, resoluto. O que há na alma desse sujeito? O que ele vê que não vejo?

No aperto que selou o adeus, tinha cumplicidade, tinha carinho, tinha respeito, tinha passado.

Era uma despedida que ambos sabíamos ser definitiva, daquelas em que você pára pra olhar com um pouco mais de intensidade o outro, enxergar nele o espelho que vai ficar em você. Histórias e estórias que vivemos eram tudo o que no fim se mostrava. Ele respirou fundo e colocou na cabeça o boné onde se lia "Brazil, Banana". E foi-se embora naquele passo lento, sem compasso, pra um lugar onde não vou mais encontrá-lo.

LOT OF PETER
“Numa noite de feriado, chegou o tal acidentado. Não tinha ferimentos na cabeça ou em órgãos vitais, então o pessoal da Emergência automaticamente o colocou em segundo plano. É cruel, mas a gente só quer deixar todo mundo vivo. O resto é o resto quando chove sangue na Emergência, inclusive com você, quando chegou aqui nesse hospital. Você, que gosta tanto de segredos e descobertas, foi só mais uma testemunha inconsciente da sala de operações que resgata o povo toda da morte certa. E nos feriados... O meu segredo é que eu desistia dos homens, e desisti desse sujeito assim que vi que ele continuaria respirando. Só que um dos médicos não amoleceu. O Peter. O cara tinha caído de moto e recebido todo o impacto nos joelhos. Não eram apenas fraturas, garoto. O joelho dele tinha virado farelo. A gente já estava discutindo o procedimento de amputação pra resolver a questão. E o Peter tocava a fazer exames. Sozinho, nem uma palavra com o resto da equipe. Levava o sujeito pra cima e pra baixo na maca.”

- Eu gosto de andar de maca! Cadeira de rodas pinica e vai rápido demais.
- Sua maca deveria estar presa. Vou resolver isso hoje.
- Chatão. Mas e aí?

“Aí que quando montamos a mesa de cirurgia, o Peter chega trazendo o paciente e mandando trocar os instrumentos. Nós não entendemos, ele dizia que iria operar os ligamentos primeiro, que os pinos já estavam prontos. Achei que ele estava ficando louco. Tentei segurá-lo e dizer que o certo era amputar e salvar a vida do rapaz. E ele falou 'Cresça colhões, Rogério! Você nem tentou e já desistiu!'. E começou o procedimento. Ele era o cirurgião, ele decidia. Todos estavam fervendo de raiva. Só que... Depois de quase oito horas de cirurgia, vi um homem operar um milagre. Ele reconstruiu 90% dos joelhos do paciente. Era como assistir alguém montando um quebra-cabeças dentro corpo de alguém. Ele não piscava, nada de pausas e nos orquestrava com precisão. Vi dentro dele todo o amor ao que fazia. Em cada corte, cada sutura, cada gota de suor em que ele secava com pressa. Na mesa de cirurgia ele se mostrou o maior amante do mundo. Não iria deixar dar errado.

Dois anos depois o paciente voltou a vida sem nenhuma grande sequela. Estava curado e me abraçava em gratidão. Não sabia que o homem que tinha feito tudo era o mal-encarado e grosso cirurgião que nem falava com ele direito. E o resto da equipe nunca teve coragem de admitir a falha. Pro paciente, pra si mesmos, meu Deus, eu nunca contei isso nem pra minha mulher.”

As mãos dele tremiam, meu médico era naquele momento um homem em frangalhos. Se sustentava só pelo meu olhar de compaixão. Não conseguia nem piscar ouvindo a história. O Rogério, não mais doutor, se aproximou arrastando sua cadeira para três palmos do meu rosto e, então, perguntou:

- E aí? Não quer fazer sua cirurgia com esse cara?

PARKING LOT
Quando estacionei o carro sob a paineira da locadora de veículos, meus dedos se agarraram ao volante, num espasmo da saudade que começa antes do momento acabar. Queria deixar minhas digitais naquele carro. Queria que ele soubesse da importância que teve pra mim. O que ele me ajudou a vencer, o que causou nas minhas entranhas, não tinha nome, era algo tão especial que acabava se perdendo pela falta de compreensão do resto do mundo. A genialidade muda que descobrimos em bobagens da vida. Aquele carro iria passar pela mão de outros muitos, sem nenhum significado especial, iria me abandonar, mas deixou o que precisava. Ele era o fim e um recomeço nas vias tortuosas que percorri pela ilha da Jamaica e por dentro dos meus próprios medos, era o Serafim de Mãos Trocadas, assim o batizei antes de tirar as chaves da ignição pela última vez.

***

De volta ao Brasil, de volta à minha janela. Coloquei a fita K7 no som do carro, enquanto meu pai engatava a primeira marcha. Eu perguntei a ele se já tinha ouvido falar em USB, ele respondeu que não acompanhava mais futebol, mas que sabia que meu Palmeiras tava rebaixando. Eu ri. Fiquei um tempo encarando a fita com cara de interrogação, ele disse que tinha ali aquela canção de ninar que eu adorava quando passeávamos de carro.

E assim fui escutando Lynyrd Skynyrd desfiar seu Free Bird enquanto comia o vento da estrada por milhas e milhas.

Quem sou eu

Minha foto
"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto