segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

In the Jungle, the Mighty Jungle




Awi mauê, awi mauê, awi mauê.

- Perdeu! Perdeu! Se mexer eu vou te furar todinho.
- Perdi, pode levar. Pode levar.
- Pega o relógio dele.
- No bolso! O que tem no bolso?!
- Pode levar... NÃO! A CORRENTE NÃO!

In the Jungle, the Mighty Jungle, the lion sleeps tonight.

A mão do Assaltante 1 se fecha em torno da corrente enquanto o cotovelo direito do rapaz sobe por baixo, acertando bíceps e fazendo a mão do outro se abrir. A adrenalina dispara. No mesmo movimento, o rapaz agarra o pulso dele e o torce como faz com as suas calças jeans, deixando o Assaltante 1 torto e quase de joelhos. O Assaltante 2 tira a mão do bolso e acerta um soco nas costelas do rapaz. A raiva, como se fosse um balão cheio com ar demais, explode. Um balão que nem parecia existir e já está ali, no ar, se estilhaçando, ecoando pelas ruas vazias do centro da cidade.

In the village, the peaceful village, the lion sleeps tonight.

O rapaz não se mexe com o soco, por reflexo revida com uma cabeçada no rosto desse tal de 2 e decide quebrar o braço do Assaltante 1. Puxa o pulso até deixar o braço dele esticado e dá um gancho, aquele soco de baixo para cima, no antebraço do infeliz. É como ver um palito de dente se partir. Talvez seja. O braço dele era muito fino, de alguém que não come direito há meses. Assaltante 1 está fora. O rapaz se vira para o 2, que dá mais socos, todos no ar. Assaltante 2, seguro pela camisa, grita de susto. Depois vem o grito de dor. Seu joelho direito está apontado pro lado errado e ele está caido. Os gemidos fazem a música de um ballet instantâneo de violência. O assalto vira bárbarie. O assaltado, um balão explodido.

Hush my darling, don't fear my darling, the lion sleeps tonight.

São muitos socos. O rapaz está montado sobre o Assaltante 2, ou o que ele está se tornando. Uma massa de sangue disforme. Nariz quebrado e nocauteado, mas o rapaz ainda está batendo. Cada pancada é um eco oco no corredor de prédios vazios. Os carros passam do lado como se nada estivesse acontecendo. O rapaz se levanta, sem saber bem o que fez, e corre. As mãos dele beberam muito sangue, são vampiros. As gotas voam pelo asfalto, ele some na noite. As duas vítimas ficam mudas, na calçada escura. E assim como a selvageria começou, acaba? Não. Ela não tem começo e nem fim;

Awi mauê, awi mauê, awi mauê.

Awiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii hi hi hi hi hi hi. Awi awi mauê.


domingo, 21 de dezembro de 2014

Recado




Quando acabou, e de repente acabou, o que talvez já estivesse acabado, coloquei, ainda que sem propósito, mais vírgulas, pra adiar o inevitável. Eu não sei chorar tão fácil. Mas a dor que dói é curta, serena, perene. As minhas dores, as minhas mães, as paixões das quais eu sou.

Queria que ela ouvisse meu coração batendo, por inteiro os sons que ele emite. Porque ele resolve qualquer problema, cada equação que a gente não conseguiu solucionar. E eu posso ouvir o seu. O dela. De noite eu deito sobre eles, todos os corações que já tive ou vou ter, sincronizados, se escondem no meu travesseiro. E todas as dores, mães, paixões.

Serei um homem de alertas. Deixando pelas paredes recados pra quem passar. Falando que a gente encontra e perde, parede e se encanta. Lembrando que tudo o que sangra estanca, coração. Deixa escorrer. Te deixo este aviso, comovido, com o coração na mão.



domingo, 30 de novembro de 2014

Passou




No meu quarto de madrugada, levantando de repente na cama sentindo o ar no meu pulmão virar concreto. Resfriado chegando? Não, é só Novembro. Passou. Eu preciso me lembrar, preciso saber.

Eu me lembro, eu sei.

Meu dicionário. Quando nem eu sabia dominar meus significados, na língua dela já estiavam as palavras certas. Como naquela mágica em que o ilusionista esconde uma carta de baralho dentro da boca. Na dela não era um 9 de copas. Era a tradução do que meu coração dizia.


- O que você gosta de ouvir, cara? - me perguntaram.
- Nos últimos tempos, o som do silêncio.
- Hahahaha! Que mongol!
- Não, não - ela interveio. O som do silêncio. De noite, um cachorro latindo lá longe. O assovio do vento pela janela, o relógio fazendo tic-tac na parede. Os ruídos do lençol na cama quando a gente se mexe. E toda a sensação de vazio, de infinito e tranquilidade que o mundo parece ter. É o som do silêncio.


Então eu sorri. Até hoje estou com o mesmo sorriso e por isso eu choro. Aqui, em Belo Horizonte, no Amazonas, no meio da Avenida Brasil. É tão estranho rir e chorar ao mesmo tempo...


- Você conseguiu, menina! Eu não  tô entendendo. Você viu a cara daqueles gringos?! Da sua mãe?! Olha pra mim, tô em êxtase! Todas as noites de treino, as sapatilhas rasgadas, seu corpo dolorido. Você conseguiu!
- É, eu consegui. Foi maravilhoso, tudo isso foi maravilhoso. E acabou aqui, Lucas. É por isso que eu estou chorando, e rindo, e chorando. Meu corpo nunca vai se adaptar ao ballet profissional, eu nunca vou me adaptar também. Se aquele russo me tratar como as alunas, dou um grand jeté no nariz dele! Sempre soube que aqui ia ser a última estação pra mim.
- Marci, não! Eles tão boquiabertos, vão te escolher! Se não era pra isso, então pra que tanto esforço?
- Porque eu amo o ballet! Amei dançar durante esses treze anos e vou continuar praticando sempre que der. Mas agora quero levar a minha vida pra outra direção. Fazer outras coisas, o mundo é muito grande. Aqui termina um período lindo da minha vida. Estou feliz por ele ter acontecido, triste por ele ter acabado.
- Eu... não consigo ver o propósito!
- Você vai ver um dia.


Eu sei, eu lembro, eu vi. Tantas vezes, repetidas em mantras que cantavam a mesma letra. Aqui, em Budapeste, na Jamaica, no meio da Vila Olímpia. E um resfriado realmente chegou no lugar. É tão estranho sentir saudade de quem você já foi...

Nesse nosso dia-ardia, quando em você eu me perdia, o onde era agora e o quando era aqui. Mas passou, Novembro ficou pra trás. E lá na minha pequena cidade no Deserto Federal, tem o tempo da chuva. Mesmo sem cair um pingo em mim, ela lava minha alma.  Nem tudo vai ficar melhor, mas o pior passou. Atchim!




sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Tragicamor




Ah, sim. A gente ama. É. Desesperadamente, às vezes. Nem sempre. Quase nunca, na verdade. Amor bom é amor tranquilo. Em movimento, mas tranquilo. Imprevisível e ainda tranquilo. Ah, sim. Tem a dor do amor. Engraçado que a dor, ah, a dor de amor não costuma ser tranquila. Inaparente, mas não tranquila. Reclusa, pra que você não chore no ônibus como um garoto que perdeu a coleção de Tazo. Lembra do Tazo?

Ah, mas sim, claro. A gente ama. Às vezes. E tenta construir, o tal do Pedro pedreiro contratado na obra, nunca falta e sempre sobra. A gente sente falta de ar com amor, a gente sente que é engraçado, o amor e a dor do amor se misturam tanto.. Desesperadamente. O amor bom e tranquilo é quase nunca, na verdade. A dor boa é a dor tranquila. Não sou Chico e estou aqui trocando as palavras por novos significados. Não entendo Chico, mas entendo que ele não é medíocre nas suas dores. Não sou tão inaparente, meu Deus, eu ainda não parei de chorar e o ônibus já deve estar desligado na garagem a essa hora.

Ah, não. A gente ainda ama. E se não fosse isso seria tão mais fácil, seria tão mais civilizado. Desesperadamente, às vezes. Nem sempre. Quase aaaaaaaaah!, seria tão tão mais fácil escrever sem dor. E sem dor eu jamais teria sentado pra escrever isso. Pra desaguar em caracteres cada batida que meu coração pula, ventrículos e cavidades que não funcionam tranquilos quase nunca, na verdade. Já sentiu falta de ar(,) de amor? Paralisia facial de amor? Que amor é esse seu que não dói? Não é uma crítica, é uma genuína curiosidade. Troco por todos os meus Tazos. Tranquilo. Em movimento, mas tranquilo. Querendo não ter e não bater aqui palavras-remendo, palavras que não tapam um garoto no ônibus. Ou aqui nesse quarto que não me pertence.

Ah, hahaha, ai. Se eu parar de escrever dói. Tudo dói nesse amor que a gente ama. Não tem um Tazo pra me distrair dessa paralisia facial. Dessa dor. Desse homem que eu sou, que faz virar tragicomédia pra amenizar. E fracassa. No ponto final, fracassa.




sábado, 4 de outubro de 2014

Entreouvindo a Escola Municipal Atrás De Casa




- HAHAHAHA! Pega aqui, ó! Seu lerdo! Você só corre mais que eu na frente do Kinect. Rechoncudo!
- Quiii... é... uhh... "rechoncudo"?
- É gordo!
- Você... até pra... uhh... me chamar de gordo... é metido a beixxxta.

Conta-se que o gordo sobrevivieu ao fôlego perdido, chegou em casa e falou do "rechoncudo" pra mãe. A mãe disse que seu amiguinho era um jumento e que não sabia nem xingar direito, que faltou um H nessa hora da ofensa. No dia seguinte, o gordo teria deitado e rolado sobre o amiguinho, grtitando "Sou rechonCHUDO, seu jumento metido a beixxxta!". Literalmente deitado e rolado.

***

- EEEEEEI,  SEUX BANDO DE MULEQUEX FEDIDOX! PARA COM EXTA MIERDA! Já não basta gritar na minha janela, agora a vaca da professora ainda bota lata pra vocês batucarem! VÔ JOGAR ÁGUA EM VOCÊIX SE NÃO PARÁ!

***

- ... e ainda tem os diár de greve pra repor, depois que acabar o ano. 
- Tô é pra ficar maluco. E essa greve não aidantou de nada.
- Ih, tá reclamando de que? Vocês ganharam reajuste na folha, plano de carreira e tudo. Tá sobrando me dá.
- Para de ser burra. O dinheiro é só uma das formas de se receber bem pelo trabalho. Não é a mais importante pra mim.
- Ó, você se formou professô, mas precisa de um curso de quem é pobre. Nunca vi um morador de favela falando essas bobagi. Quer recebê em chiclete, é isso? Nem vem. Sô vigia.Vigia é ótimo em observar.

***

- MAIX QUE CARAAAAAALHOOOO! PROFESSORA DE MIERDA! Criançada, pede pra professora ensinar a ir tomar no cú! Isso, pergunta assim: professora, como faz pra enfiar este tamborim aqui no cú, hein?? Essa batucada de manhã, rá se foderem! Se pelo menox acertasse o tempo dexta porra, MAIX NÃÃÃÃÃO! Não tem um repique na caralha do lugar! O gordinho ali, que só fica xingando o outro peixte de jumento, nunca deve ter ouvido falar em bumbo. BUMBO É O VIADO DO SEU PAI! Larga isso daí e vai pergutar pra ele.



domingo, 31 de agosto de 2014

Persona, vira esquina




Era de noite, eu escrevia. O inverno, o silêncio do meu bairro. Eu vou até a sacada e escuto um pouco da cidade, as luzes da sala apagadas. O silêncio noturno me faz tão bem daqui do alto. Sou imperador do chocolate quente, supervisor da luz de tungstênio. Por trás, o braço dela sai do computador, vem me buscar, a moça de longe que chama. "Lucas!". É tão incomum me tratarem pelo primeiro nome, gosto disso. O exército dos xarás é vasto demais, me perdem, aceito o Doca. Tudo bem, Doca é bom, sou eu também. Mas o Lucas, o simples Lucas, onde é que foi parar?

- Notícia triste aqui do Sul. Lembra da moça que você entrevistou com a mãe?
- Sim, lembro.
- Escolheu não viver mais.
- Calma. O que houve? Calma.
- Asfixia. Hoje à tarde. Tá todo mundo em transe ainda.
- Calma. Caralho, eu preciso sentar um pouco. Desculpa o palavrão, moça. Caralho! Eu escrevo e aperto o enviar sem me dar conta. Ela tava ali, na minha frente.
- Não precisa pedir desculpa. É foda mesmo. É impotência.

Agora, bem agora, o que saber e o que dizer, ainda é tudo surpresa. A gente dobra uma esquina e o que está atrás dela desaparece. Deixa de ser real, some. Ela falou tanto comigo, pareceu tão animada. Era uma entrevistada, era uma pessoa, entrei na história dela por vários dias seguidos. Ela também me entrevistou. Perguntou se eu tinha esposa, namorada, filhos, queria ter, e o maestro, e a doutora. Meu Deus, ela tava ali, eu sentei na frente dela, segurei a mão dela várias vezes. Não é real. Não mais, ela foi feita de areia que ainda visito nos sonhos, o vento desfaz. Sangue e areia. Dorothy, você entrou no furacão. Você não está mais no Kansas.

- Morrer, morri. O coração parar de bater é um detalhe, às vezes.
- Você já quis? Eu não sei se tenho direito de fazer uma pergunta tão íntima.
- Você entrevista.
- Não entrevejo.
- Nessa intensidade, não. Não quis.
- Uma brisa leve. Se a vida é faísca, que brilhe devagar. História?
- Lucas, se o engraçado às vezes faz doer... Eu quero rir com cãibra, até abrir ferida. Conta. Qualquer palavra. Faz a morte ir embora, vai.
- Pra gente ir  dormir como se soubesse viver esquecendo dela... É, eu sou bom em construir castelos de areia. Senta virtualmente aqui do lado. Essa vai ser uma noite longa.



quinta-feira, 3 de julho de 2014

Pelo menos uma vez por ano




É Novembro em mim.

O grito da criança rachou o silêncio, choro recheado de medo e soluço no meio da rua. Dedo esticado na mão. Penas esticadas no asfalto.

- Papai! Papai! O 'sárinho voava e agora está Novembro.

Por isso economistas procuram alternativas pra salvar as contas do país, as grandes falcatruas de Novembro criaram déficits e dívidas e negativos. Buracos negros.

Nas escolas, alunos faltam porque pegaram Novembro e não conseguem sair da cama. Nenhuma mãe desconfia de invenção. Sintoma de Novembro se vê de longe, sinhá.

Deu no Jornal de ontem que um monte de cor foi transformado em preto e branco, Novembro figura na lista de suspeitos. Ainda precisam de evidência pra levá-lo a julgamento.

Murmúrios nos corredores da igreja. O noivo tinha fugido.
- Estava se encontrado às escondidas com Novembro! - comentou a rádio-altar, escandalizada.

Novembro deve sair candidato pelo Arena em 2014. Vamos lutar pra achar a cura para Novembro, porque a quimioterapia é muito agressiva. Tome cuidado na hora de dormir. Novembro gosta de vir à noite. Gosta de agarrar o peito da gente. Mostrar que Novembro é pra sempre. Pelo menos uma vez por ano...

É Novembro em mim.



terça-feira, 3 de junho de 2014

Marques-sou-zense



    Nota do Autor: Este texto foi escrito com o repeat ligado
na canção "We never change", faixa 9 do álbum Parachutes (2000), Coldplay.

Clica aí, escuta isso e entra no clima, vá.


Marques de Souza é rígida, fria, serena. Eu queria viver minha vida em uma casinha de madeira; pinheiros e eucaliptos e ciprestes e maples me aconchegando como a um irmão.

Marques de Souza era homem forte, gaudério, general de estrelas. Eu queria viver minha vida cantando desafinado no ouvido dela.

Marques de Souza tem pouca gente, muitos sorrisos, chá de canela na entrada. Eu queria viver minha vida com amigos em abraços fundos, largos, atômicos.

Marques de Souza foi morto em uma sexta-feira de céu azul e ninguém diz como, só que foi em uma sexta-feira de céu azul. Eu queria viver minha vida enrolado no cobertor, trabalhar de cobertor, tomar banho de cobertor.

Marques de Souza, pela nova regra ortográfica, é topônimo que deveria se chamar Marques de Sousa, com "s" mesmo. Eu quero viver a minha vida com uma lareira de um lado, um filho do outro, uma história no meio.

Marques de Souza foi o único barão em Porto Alegre. Eu queria viver minha vida deitado de costas na grama, olhando um céu de estrelas que não tem início ou fim.

Marques de Souza tem umas alemoadas, umas italianadas, umas gaúchadas, umas risadas. Eu queria viver minha vida em pré-chorus interminável, como um rosto refletido na água que está prestes a perder forma, como um arco retesado para o disparo, um aceno de tchau que vai sendo levado pelo trem.

Marques de Souza uma vez gritou alto na Cisplatina, plena guerra comendo solta, que "Já fui muito em tão pouco, já fui pouco por muito. Se assim sou, nego-me. Se me nego, talvez assim seja"". Eu queria viver minha vida roubando mexerica dos vizinhos e gritando pra eles que "Se você chama isso aqui de bergamota é porque ela não te merece, cretino!".

Marques de Souza me convidou pra sentar em sua mesa. Eu queria viver minha vida sem deixar o jantar acabar.



quarta-feira, 30 de abril de 2014

Casa de minha mãe




É uma formiga, uma única formigua pequena correndo pelo azulejo branco. De longe, parece mais um pixel correndo pela tela em branco onde eu costumo escrever. Um ponto final em movimento....................................................................   .........................    ... .... .... Acudam, assim minhas palavras não vão ter fim!

De perto, imagino que poderia ouvir os galopes das suas micropernas. Patacum, patacum, patacum, preenchendo o espaço. Porque a casa de minha mãe é silêncio. A casa de minha mãe está vazia.

A bagunça é a de sempre. Na sala, a TV luta com livros de auto-ajuda pela supremacia no hack. Lixa de unha, caixa de sachês de chá, um Santo Antônio que dei de presente alguns anos atrás. Quantos foram mesmo, Antônio? Parece o bastante pra te chamar de Tonhão, vai. Lembro do bilhete que te acompanhou. "Pra você casar com alguém e largar do meu pé". Ah, essas minhas audácias... Como as cebolas que odeio e minha mãe adorava esconder no arroz, palavras feitas de camadas. Petulância, humor, amargura, esperança. Tudo em uma mesma frase. Daquela vez o ponto final não fugiu de mim.

O sofá é o de sempre. Desde que me lembro de um sofá, é aquele. Milagre da cirurgia de transplantes. Forro de um sofá negro que morreu com apenas dois anos de uso. Braços de um sofazinho chinês (quase uma poltrona, eu diria) que uma prima não quis mais. Sentei em suas molas quando tinha menos anos que dedos da mão. Sentei nele agora e, ai ai ai, o que qué isso? Saudade veio pra reestofar meu peito.

O gato não é o de sempre. Desta vez, inclusive, é mais de um. Vieram o grandão e o pequenininho me pedir comida, me buscar carinho. Se ao menos eu soubesse o que era servido a eles nesse tempos. Em casa de minha mãe, a culinária era maluca.


- Come chicória logo, menino custoso! Tem vitamina D48!
- D48? Isso não existe, mãe!
- Existe sim que eu tô falando aqui. Agora come. É saúde.

Vocês mal passaram da B12 e lá em casa minha mãe já conhecia a D48.

Em casa de minha mãe, a palavra "custoso" reinava. Ganhava e muito do apelido "Passarito". Quase se equiparava a "filho" ou "caçula". Se viesse um estrangeiro ali, poderia facilmente achar que meu nome era Custoso. Custoso Passarito Doca, prazer, registrado em cartório. Quase um Jacques Custeau, de tão explorador.

Apenas eu, formiga, gatos, silêncio. Aquele lugar sempre foi silêncio, mesmo que a TV estivesse ligada ou o rádio tocasse o louvado Renato Teixeira. Em essência cresci diferente de minha mãe, mulher de poucas palavras. Que quando magoada ou aflita, engolia verbos. Madava bilhetes furtivos cheios de dor. Disfarçava com tinta azul de BIC a ausência da voz. Tanta distância, tanto chão entre a porta do meu antigo quarto e as mãos trêmulas daquela senhora. E agora que ela está a milhares de quilômetros, realizando seus sonhos pelo mundo, ai ai ai meu Santo Tonhão, a sinto tão perto.

Tão perto.


domingo, 6 de abril de 2014

Sexo, o frágil - Amor de Tempo Interno




Separou o lixo, seguindo as normas rígidas da coleta seletiva do bairro. Pegou o detergente biodegradável e levou os pratos do almoço vegano pra pia.

- Deixa eu ajudar. Sujei também.
- Não, fica tranquilo. Nunca fiquei tão feliz em lavar louça, tá muito quente.

Aquele calor sólido, oblíquo e fora de moda que tenta separar corpos. Não vontades.

- É por isso que quero ajudar, ué! Hahaha!

Desculpa pra enlaçar os braços ao redor da cintura pequena, pressioná-la na beirada da pia. Colocar as mãos junto as dela, molhar dedos, respirar sua pele. Roçar a barba lentamente, testosterona e lábios, de onde a blusa termina até onde cabelo começa. Sentir pelo arrepio na nuca a temperatura de outras partes. Mão de concha, água trasportada da torneira pra tudo o que ameaça pegar fogo. E pra que roupa? A calcinha escondida pela saia desapareceu como se nunca tivesse ali estado. E nunca mais apareça por aqui, cretina!

Depois que tirou a bermuda, não suportando mais a camada de poliéster, comunhão entre o seu corpo e o dela veio com um arrepio mútuo. Ele tinha o corpo gelado pela água enquanto o corpo dela queimava por dentro de um jeito que deixaria o Sol envergonhado.

E a torneira lá, aberta o tempo todo, no máximo.

***

- Uuuurrr, não sai não, fica mais um pouco dentro de mim. Foi forte. Foi bem forte.
- Um... Dois... Três-Quatro. Foi mesmo, tô acabado.
- O que...?
- Cinco-seis, sete, oito.
- Isso é de propó..? Você vai ficar mesmo flexionando O PINTO AÍ DENTRO!?
- Hahaha, oh yeah!

***


Não pensou que sobreviveria. Quando a boca dele alcançou o clítoris, sentiu a onda costumeira de pazer. Mas a cada movimento de língua, cada pressão, fricção, lambida, beijo, o fôlego se perdia em profundezas desconhecidas. O prazer se descarregava com pancadas cada vez mais violentas. Meu Deus, o que tá acontecendo? Agarrou o cabelo dele, as pernas se arquearam e ela já não era mais dona de si. Gemia longamente, movia o quadril em círculos e pressionava o rosto dele com força contra si. E quando veio, não, não pensou que sobreviveria.

Era como o brilho de Vishnu explodindo seus chákras, os milhares de mantras inundando e ecoando dentro do mesmo vaso. Sentiu cada grama de seus recém-conferidos 59kg, cada textura das centenas de fios do seu lençol. Os orgasmos levaram quase um minuto pra acabar. Só acordou no dia seguinte.


***

- Aaaaahn, tá muito apertaaa-aaado! Ahhhum!
- Isso. Vem mais forte.
- Vou!
- Vem. Fala uma coisa bem suja pra mim, vai. Vai. fala.
- Ah, ééé.. Ahhh... Sua, aaah, sua.... sua imunda!

Ambos congelam. Se encaram. E...

- HAHAHAHAHAHAHA! Você é o pior... HAHAHAHAHAA! De todos os... Ai, péra. De todos tempos em falar sacana-HAHAHAHAHA!-geeeeiiiim!
- HAHAHAHAHAHAHA! Para, você sabe que ainda tô trabalhando na causa.
- HAHAHAHAHAHAHA! Sua...., meu Deus tô chorando de rir de quatro, HAHAHA! Sua imunda! HAHAHA!
- HAHAHAHAHAHAHA! Ridícula. Eu vou embora!
- Nã... HAHAHAHAHA! Não vai não! Ai, meu amor, deita aqui. HAHAHAHAHA! Vou gozar de rir! HAHAHAHAHAHA!
***

Em algum lugar de seu subconsciente sexual, aquilo fazia tudo ser mais forte, mais intenso, cru e simples. Tudo bem que muitas mulheres consideravam essa parte do corpo um lugar muito errado pra fazer uma união íntima. Ele tentava não julgar, pra algumas era extremamente doloroso. Situações passadas traumáticas, medo de tentar e sofrer. Amor e sexo se batendo até virar clara em neve.

Ainda assim não resistia.
Por mais ousado que parecesse, sempre tentava entrelaçar suas mãos nas dela.




domingo, 2 de março de 2014

Sexo, o frágil - Amor de Carnaval




Travado, parado, estacionado, empacado, emburrado. O elevador não iria a lugar nenhum nas próximas duas horas. Então ela estava lá, de coelhinha. Ele estava lá, de pirata. E o síndico, vestido de diabinho, não acreditou no que viu. Não por eles transarem sob as câmeras do prédio. Essas coisas já tinham ocorrido antes.

Mas é que a Cidinha do 407 e o Jairo do 306 nunca tinham se dado "bom-dia", ainda que convivendo por 8 anos no Residencial Morada do Vale. Agora estavam se dando vigorosamente. E com uma perna-de-pau envolvida.

***

Após uma noite inteira, a manhã de quarta chegou. Ele se esticou na cama, calçou as meias devagar, respirando fundo. Tinha dormido mal. O pescoço doía, as mãos ainda fraquejavam. E a ressaca batendo forte. Desenroscou uma serpentina do tênis enquanto ouvia o outro se levantar. Levou mais tempo curvado, não sabia se deveria olhar pra trás ou não. Queria, mas e a vergonha? Roberto resolveu pelos dois. Tocou seu ombro de um jeito despreocupado. Perguntou se ele precisava mesmo ir tão cedo. Respondeu que sim, balbuciando qualquer frase com "trabalho" e "tá tarde".

Vestido, pronto, se levantou e alcançou a porta. Contudo o rapaz soltou lá atrás um:

- Fica.

E o seu dedo parou, tocando a louça antiga da maçaneta. O corpo todo se retesou, cada músculo, cada pedacinho da pele, tudo em estado de escolha. E aquela maçaneta não era mais uma maçaneta. Em seu coração, aos pulos e indeciso, virou um gatilho onde seu dedo repousava com uma decisão por tomar.

Ele. O gatilho. A decisão. Tic. Tac.

***

Odiava beijo triplo. Era uma grande equação de quem-fica-com-mais-língua. E não era boa em matemática


***

De repente começou a rir sozinha, até quase chorar, sacudindo os ombros e espantando as outra mulheres no banheiro. É que sempre tinha sido fã dele, desde criancinha comprava as revistas e lia com um prazer descomplicado. O herói era charmoso, falava diferente e bonitinho, tinha sempre aquela mente inquieta, divertida, cheia de planos e artimanhas pra vencer. Não tinha tempo ruim pra ele. Admirava aquela perseverança, rígida como o martelar de Kalashinikov.

E agora estava ali, no único banheiro que encontrou perto do Bloco dos Quadrinhos, retocando o batom depois de ter realizado um boquete no Cebolinha.

***

Não conseguia entender a habilidade que os fabricantes de camisinha tinham pra fazer aquele troço escorregar lá embaixo e estilingar uma lapada impiedosa no rosto das suas parceiras. Por precaução, começou a andar com um rolo de fita crepe pra fixar a coisa toda.



quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Sexo, o frágil - Rouge




- Não, Claudiney! É pra usar o vermelhão! Não me venha com esta porcaria.
- Mas dona Roberta, vai ficar parecendo uma amiga da Punk, a Levada da Breca.
- Não! Você é um viado que não entende de nada. Coloca que vai me rejuvenescer.
- Você quem sabe...

***

Soco na pia, mesmo sabendo que isso só vai deixar a mão inchada. Ele não vem, ela já sabe que ele não vem. Disparou quatro mensagens antes de chegar ao desespero. A primeira queria confirmar, ver se tava tudo certo. A segunda perguntava do vinho, se ele preferia mesmo o merlot, um cabernet-sauvignon cairia tão bem... A terceira foi só o horário que marcava no pulso, “23h48”. A quarta foi pra lembrá-lo de que só um grande filho-da-puta faz uma mulher sofrer na depilação íntima pra dar um bolo magistral daquele. Mesmo que as putas, coitadas, não tivessem nada a ver com aquele episódio triste.

Sentada, sozinha no apartamento pequeno que lhe coube na tão mal-acabada Copacabana, sentindo as virilhas arderem, começou um ritual de gritos e sacrifício de roupas. O vestido foi sendo arrasado com as unhas, as unhas foram se arrasando no vestido. No choro de raiva, salivava e desmontava a maquiagem. Não aguentou ver o que uns 60 anos lhe deixaram no espelho e ali, no reflexo, plantou com força o salto.

E sacudia a cabeça com violência pra negar que se sentir mulher dependesse tanto assim da sua vagina. Que ele ter sorrido e piscado era algo tão poderoso. Que ficar molhada do banho na cama, se masturbando por horas ao pensar no corpo dele, tivesse sido tão bom. Dois dedos no clítoris, “a língua dele devorando assim”, uma mão quase inteira dentro dela, “um volume nas calças, deve ser enorme, ain”.

- UM ENORME FILHO-DA-PUTA! UM MERDAAA!

Ainda que as putas, injustiçadas, estivessem montando sindicatos pra serem profissionais respeitadas e não tivessem nada a ver com aquilo. Tampouco os coliformes fecais do Rio de Janeiro.

Não era amor, saravá!, não, era carne e osso que ela queria. Fazia tanto tempo... Não suportava a ideia de ir a um baile da terceira idade. Menos ainda pagar pra fazer sexo, ainda que sua irmã mais velha oferecesse um cardápio de gigolôs no telefone. Queria a espontaneidade, a veracidade da sedução. Ser jogada na parede, despertar tesão genuíno, se empoderar do próprio corpo. Queria ser objeto, talvez até descartável, mas puta que pariu, que a descartassem depois de usar!

Seu Arnaldo subiu da portaria pra ver se ela estava bem. Ele morria de medo de algum velho morrer no seu turno. Bateu na porta, mas ela continuava em histeria lá dentro. Ela gritou pra ir embora, que ela estava bem, só estava chorando e “pouco apresentável” pra abrir a porta.

- Um parente morreu, Arnaldo! Sai daqui e me respeite, estou com o rouge todo lavado no rosto.

Em um relance de pensamento, ela julgou que ele jamais teria a sensibilidade pra entender que a ausência de sexo tinha se tornado o sexo dela. Um gênero neutro de libido, frustração e autopiedade. A profundidade do seu ser feminino violado por aquele grandessíssimo filho-de-uma-égua, ainda que as pobre éguas... Ele era mais um macho babaca com medo de ambulância, com medo da morte, não merecia ver a morte ali, no peito dela.

Quanto ao seu Arnaldo, desceu as escadas ponderando. "Foi melhor não lembrá-la que rouge está substituído por blush desde 1992".



Quem sou eu

Minha foto
"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto