domingo, 31 de agosto de 2014

Persona, vira esquina




Era de noite, eu escrevia. O inverno, o silêncio do meu bairro. Eu vou até a sacada e escuto um pouco da cidade, as luzes da sala apagadas. O silêncio noturno me faz tão bem daqui do alto. Sou imperador do chocolate quente, supervisor da luz de tungstênio. Por trás, o braço dela sai do computador, vem me buscar, a moça de longe que chama. "Lucas!". É tão incomum me tratarem pelo primeiro nome, gosto disso. O exército dos xarás é vasto demais, me perdem, aceito o Doca. Tudo bem, Doca é bom, sou eu também. Mas o Lucas, o simples Lucas, onde é que foi parar?

- Notícia triste aqui do Sul. Lembra da moça que você entrevistou com a mãe?
- Sim, lembro.
- Escolheu não viver mais.
- Calma. O que houve? Calma.
- Asfixia. Hoje à tarde. Tá todo mundo em transe ainda.
- Calma. Caralho, eu preciso sentar um pouco. Desculpa o palavrão, moça. Caralho! Eu escrevo e aperto o enviar sem me dar conta. Ela tava ali, na minha frente.
- Não precisa pedir desculpa. É foda mesmo. É impotência.

Agora, bem agora, o que saber e o que dizer, ainda é tudo surpresa. A gente dobra uma esquina e o que está atrás dela desaparece. Deixa de ser real, some. Ela falou tanto comigo, pareceu tão animada. Era uma entrevistada, era uma pessoa, entrei na história dela por vários dias seguidos. Ela também me entrevistou. Perguntou se eu tinha esposa, namorada, filhos, queria ter, e o maestro, e a doutora. Meu Deus, ela tava ali, eu sentei na frente dela, segurei a mão dela várias vezes. Não é real. Não mais, ela foi feita de areia que ainda visito nos sonhos, o vento desfaz. Sangue e areia. Dorothy, você entrou no furacão. Você não está mais no Kansas.

- Morrer, morri. O coração parar de bater é um detalhe, às vezes.
- Você já quis? Eu não sei se tenho direito de fazer uma pergunta tão íntima.
- Você entrevista.
- Não entrevejo.
- Nessa intensidade, não. Não quis.
- Uma brisa leve. Se a vida é faísca, que brilhe devagar. História?
- Lucas, se o engraçado às vezes faz doer... Eu quero rir com cãibra, até abrir ferida. Conta. Qualquer palavra. Faz a morte ir embora, vai.
- Pra gente ir  dormir como se soubesse viver esquecendo dela... É, eu sou bom em construir castelos de areia. Senta virtualmente aqui do lado. Essa vai ser uma noite longa.



Quem sou eu

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"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto