domingo, 28 de agosto de 2011

O garoto do andar de cima




- Você faz natação todo dia?
- Não, não todo dia. Quer dizer... Nos últimos dias, todo dia. Mas não desde sempre. Entendeu?
- O que eu tinha perguntado mesmo?

Eu ri. Ele queria ser piloto de avião, mas agora vai ser jornalista que nem eu e aparecer na TV dando pirueta pra Janaína ver, a namorada dele desde o mês passado. Ela é linda e sempre usa brincos. Eu ri.

- Sabia que cê parece o César Cielo? Ele também nada, mas não tem barba. Nem cabelo preto. Só que ele também nada.

Me mostrou o videogame portátil que ele tem, última geração. Contei que eu tinha um parecido, mas que era do tempo do onça. Se chamava BrickGame, ou só minigame, com uma porção de jogos toscos com tijolinhos.

- O mais famoso era o Tetris.
- Meu pai me disse que o Brasil foi tetra em 94. Tempo do onça é o tempo em que tinha onça no Rio?!

Eu ri. Ele contou que queria ser atacante do time da rua dele, mas não deixavam por ele ser ruim. Aí ele ficou mais triste que em todos os outros dias da vida dele.

- Qual foi o seu dia mais triste de toda a vida?
- Morreu uma pessoa muito importante pra mim, um tempo atrás.
- Humm... Ela morreu de brinco?

Tentei lembrar, não consegui.

- Você já viu o sereno?
- Sereno?
- É.
- Ué, não. Acho que não. Não sei direito o que é o sereno, pra ser sincero.
- Não?! Minha mãe sempre diz que ele é perigoso.
- Pois eu não ligo mais pra ele. Agora, eu dou tapa na cara do sereno. Mesmo sem saber o que ele é.
- Mentira, sua mãe é que te deixa ficar na rua até mais tarde.

Ele correu pro elevador. Corri também. Ele já estava sonolento quando saltou pro seu andar. Olhou pra mim e falou no meio do bocejo.

- Você parece com o César Cielo.
- Eu também te achei legal.

Ele riu.



sábado, 27 de agosto de 2011

Madrinha




- Eu tô com tanto medo, Doca.

A gente acha que é forte, mas não é. Não posso ajudar minha amiga. São centenas de quilômetros entre nós. Deu um nó tão apertado no meu peito... Que dor era a minha mesmo? Aquela que pensei ser grande? Daria tudo pra segurar a mão da minha amiga, ajudá-la. Contudo, só o que pude segurar foi o choro sobre o teclado. Pensei em todos os planos que nós temos juntos. Eu queria morar perto dela pra roubar pedaços de bolo. Os nossos filmes seriam épicos. Vão ser. Têm que ser.

- Você vai ser a madrinha de um dos meus filhos magrelos. Não preocupa. Você vai ficar bem, tá?

Não quis contar pra ela que também estou com medo.



segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Magnólia - Parte IV




Esperei, sem pressa, a multidão se dissipar. Não contava com aquilo e me espantei ao descer do táxi. Algumas centenas de pessoas formavam um circulo compacto ao redor dela. Observei a expressão deles e encontrei de tudo. Dor, curiosidade, surpresa. Principalmente surpresa. Cometários sussurrados formavam uma onda de chiados ecoando pelo espaço. O som rasgava o ar como ondas quebrando, espumando incerteza.

Esperei e, mesmo cercado de gente, só o céu de aço me fez companhia. As nuvens deveriam ter sido mais compreensivas, pensei. Magnólia merecia um dia ensolarado no seu enterro.

***

O carro roncava enquanto as marchas eram passadas com desleixo. Eu não sei que carro era, ninguém nunca foi preciso quanto a essa parte, mas gosto de pensar que ela dirigia um pequeno caminhão roubado. Uma pena a funcionária do posto de gasolina da cidade estar dormindo durante o serviço. Ela me ajudaria com esse detalhe. Contudo, só que ela viu ao acordar foi um par de lanternas traseiras sumindo pela estrada. E, é claro, as faíscas altas do enorme tanque de combústivel que o carro arrastava sem nenhum cuidado pelo asfalto. Ela disse ter demorado alguns minutos pra entender que alguém tinha roubado um tanque inteiro do posto, por isso a ligação que fez a polícia era tão confusa. Não a julgue. Você também não acreditaria se acordasse vendo uma cena dessas.

Quando o pai de Magnólia acordou, o canavial onde plantara o seu dinheiro lhe mostrou uma lição de mercado. A economia é regida por uma mão invisível. E alguma mão invisível espalhara combustível ao redor de toda a fazenda até a usina. Eles teriam que esperar a chuva pra poder lavar aquilo, lhe disse o chefe da colheita.

No centro da cidade, a estátua do fundador amanheceu sem cabeça. Foi substituída por uma calota de carro pichada com os dizeres "Viveu corno e morreu virgem". As pessoas ficaram chocadas, veja se pode esse absurdo. Todos sabiam que o fundador da cidade nunca se casou.

O mesmo vândalo virou a noite estourando os registros dos carros. A água jorrava dos hidrantes da cidade, até um soldado novo resolver ligar para a companhia de abastecimento e mandar cortar o fornecimento antes que ficasse tudo inundado. A única mulher da corporação estranhou o cheiro de acetona que sentiu no ar. Ela não tinha feito as unhas naquele dia.

A beira do rio, o novo complexo residencial amanheceu com um mistério. As tulipas da dona Matilde, tão bem cuidadas, foram pisoteadas insistentemente. E isso apesar das placas de "cuidado com o canteiro" afixadas por todo o local. O carro zero do seu Jonas estava riscado. E a Tassínha, quando foi brincar no rio, sentiu um gosto estranho e forte na água. Colocou um pouco na mamadeira e levou pra mãe, que ficou preocupada e deu bronca na criança por ter mexido no bar do papai. Mandou a menina para o quarto e passou o resto da manhã bebericando o uísque que ela tinha trazido.

Magnólia estava sentada no boteco. Olhava o caos se espalhando, sorriso cansado no rosto. O dono do bar, achou que fosse um assalto quando a viu entrar derramando um vidro de álcool pelo chão e sacando a arma. Mas não entendeu quando ela colocou uma nota de vinte no balcão e pediu um chope. Disse pra ficar com o troco, pra limpar o chão mais tarde. Reconheceu a menina louca de anos atrás, a menina da história triste do rio. Dia esquisito. Chamou a polícia. Magnólia espetou um palito de dente na tampa do álcool, virou a garrafa de cabeça pra baixo, enfiou no bolso da calça e se sentou. E o dono bar sentiu um frio na espinha. Tinha alguma coisa muito errada naquela cena.

A polícia chegou e em grande quantidade. A história da volta da menina louca, Mag Desce Todas, batia perfeitamente com a onda de eventos que deixaram a cidade em polvorosa. Polvorosa, boa palavra pra descrever aquilo tudo.Antes de ser algemada, Mag já estava de pé. Sorria abertamente, mordendo um palito de dente. Ela é mesmo doida, pensou o policial. O bar ficava de frente para o prédio da prefeitura, onde também estava a única cela da cidade. Lá o delegado a aguardava.

Sentado no meio da cela, ele esperava lidar com uma menina maluca que resolvera voltar pra escandalizar um pouco aquele povo bobo. Se surpreendeu ao encarar uma mulher segura. Resolveu bater de frente:

- Confessa que os delitos apresentados pelos policias que te prenderam foram cometidos pela senhora?
- Faço questão de dizer que fui eu.
- Você não está levando isso a sério, não é?
- Sério, delegado? Acho que você vai mudar sua ideia sobre o que é sério.
- Haha! Você é só uma mulher doida que reapareceu pra me encher o saco.

Ela olhou firme para o delegado. E, com o palito de dente na boca, propôs um desafio.

- Você me dá um cigarro e faço sua vida mudar.

O homem decidiu dar uma chance para a sorte. Acendeu o cigarro, colocou nos dedos da criatura que parecia crescer em sua frente. Ela abriu um meio sorriso.

- Nasci mulher numa cidade que não tem futuro nem para os homens que mandam nela. Cresci correndo do mundo em uma moto de quinhentas cilindradas, achando que podia achar uma resposta na velocidade. Amei, e amando eu amadureci o bastante pra poder me entender como uma mulher que pode cavar o seu lugar. Chorei, vendo que o lugar que eu construí podia ser derrubado do mundo como um castelo de cartas. E agora que eu não tenho mais porra nenhuma, que desperdicei minha vida contendo a minha tristeza dentro de dias bobos... achei que podia terminar tudo com um pouco de estilo. Entende?
- Tudo o que? - perguntou o delegado, que já não conseguia desgrudar os olhos dela.
- Tudo o que está nos limites desse lugar. Incluindo eu e esse palito de dente.
- Palito?

Ela cuspiu o palito no rosto dele. Olhou de novo para o cigarro. Soltou a ponta que queimava em brasa sobre o chão molhado. Sim, pois aquele palito era o que segurava o álcool dentro de uma garrafa em seu bolso. Álcool que agora estava no chão da cela e espalhado como um pavio que conduz ao fim dessa história.

O fogo correu pelo chão, como se tivesse vida própria. Naquela cela, Magnólia deu o seu primeiro beijo. Em um ladrão qualquer, já não importava mais. O fogo continuou pelas escadas do prédio, cruzou a rua até o bar onde Magnólia provou pela primeira vez o gosto da violência ao quebrar uma garrafa de gim em um valentão. O fogo seguiu caminho por trás do bar até chegar ao início da plantação de cana. Aquela cana que a fizera escrava de um futuro que não era dela, de um pai que a queria como outra, de um mundo de faz de conta para uma mulher que nunca existiu. O fogo transformou hectares e hectares em pó, mas não antes de atingir o rio. O fogo fez o rio flambar, acertou as casas feitas sem amor, de famílias que invadiram as terras para morar com um conforto que a cidade não dera a Magnólia. O fogo chegou aos bombeiros, que assistiram sem acreditar enquanto seus caminhões e sirenes derretiam, ironia regada a gasolina. O fogo chegou a praça, fez da estátua um amontoado de bronze fundido.

As pessoas correram. Viram tudo virar cinza lentamente. Cada tijolo, cada quadro na parede, cada jardim bem cuidado. O delegado disse ter visto um sorriso enviesado em Magnólia quando ele se levantou para fugir do prédio. Disse que não teve tempo para libertá-la, que ficou desesperado. Que ela não queria ser libertada.

A cidade desapareceu. Não vão reconstruí-la, ouvi dizer. Não há dinheiro. Ninguém sabe o que fazer. A vida de cada um mudou. As diferenças entre eles não significavam mais nada. Todos se uniram a Magnólia. Todos se uniram em seu funeral. Todos lembravam de como ela arruinara tudo. E por isso eles a enterraram com todas as honras. A cidade desapareceu. Cada um teria que viver uma nova vida. Começar de novo. E a cada cinco pensamentos, cinco eram sobre ela. Magnólia reinava soberana sobre seu povo.

Eu deixei a foto sobre a grama. Uma foto antiga, porém não desbotada. Olhei ao redor e o céu de aço ainda estava lá, perene. O mundo particular de todos nós mudara de um jeito tão permanente... E eu só conseguia pensar que eu nunca entenderia toda essa história. E que nunca saberia contá-la como Magnólia merece.



segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Magnólia - Parte III




"Sabe quando você espera aqueles minutos intermináveis no banho até o condicionador fazer efeito? Desde Helena, isso foi a minha vida. Esperar por alguma coisa. E esperei pacientemente que tudo acabasse. Com um trabalho miserável eu aprendi que é fácil ser medíocre. O trabalho repetitivo faz você esquecer do tempo. Anos passam em segundos. A cada semana eu perco sete dias. Foi assim que a maré me levou.

E velejando pela espera, alguma coisa chegou. Começou com um enjoo. Engoli comprimidos e achei que tudo estaria resolvido. Os meses continuaram passando. E aquele menino novo das aulas no laboratório sempre ficando depois do horário. Sempre fazendo perguntas. Sempre perto demais.

Em uma tarde gelada, quando eu esvaziava tubos de ensaio perdida entre pensamentos do passado, ele veio. Achei que tinha ido com o resto dos meninos da classe, mas surgiu como uma sombra pelas minhas costas. Senti as mãos dele subindo pelo jaleco, tremendo. Fiquei sem reação. Quis gritar, mas não gritei. Seguindo o comportamento de sempre, esperei. A textura dos dedos dele subindo pela minha coluna fez a pele se arrepiar. Então, tudo ficou violento. De um jeito que me fez rir como em outros tempos. Os lábios correndo pelas minhas coxas. Respiração ofegante pelas costas. Cada vez mais fundo...

A dor se misturou ao prazer. Gritei, ele fugiu. Pobre menino, achou que ele tinha sido o causador daquilo. E por um momento eu também pensei. Mas o sofrimento continuou. E dias depois da aventura, o sangue ainda escorria de mim. Resolvi que era hora de fazer aquilo parar. Tinha descoberto uma fagulha de algo bom depois de anos e anos. Só que os problemas têm pressa, não esperam o dia da consulta. Um desmaio me levou ao hospital primeiro.

O médico não foi delicado. E eu não teria me incomodado se aquela notícia viesse em outra época. A doença já havia se espalhado. Começou no colo do útero. Logo ali, onde um dia o amor se escondera. Voltei pra casa. Tinha pouco tempo. Alguns dias, talvez. E tudo mudou. Logo agora. Não. Não sem correr de novo. Não sem fazer isso tudo pegar fogo. Como ela. Como ela na minha cama. Como o menino. Não. Agora não. Eu vou fazer as coisas serem as mesmas de novo. Eu vou chutar o saco do mundo. Eu vou ser de novo a Mag daquele tempo! Vou voltar pra minha cidade e fazer tudo aquilo queimar com diesel por cima.

Já que precisa terminar, é melhor que seja com um pouco de estilo."

Stop. Acabou a fita. Na TV, um helicóptero mostrava o incêndio em algum lugar ao sul. Ela havia começado, pensei eu. O mundo agora iria arder.



sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Distâncias




Às vezes é bom quando ela não tá aqui. Eu tenho tardes inteiras pra ver TV, me encher de porcaria e estragar meu apetite. Posso correr pelado pela casa sem me preocupar com reprimendas sobre resfriados. Posso descer até a portaria e pegar o jornal de roupão. Judiar das cordas do meu violão e fingir que sou um rockstar sem escutar comentários como "prefiro ouvir Jota Quest que isso". Dá pra jogar videogame por horas, esquecer da louça suja e das roupas pra pegar na lavanderia.

Às vezes é bom quando ela não tá aqui. Saio com hordas de amigos idiotas, falo besteiras por horas. Jogo futebol com a rapaziada até alguém resolver descontar sua raiva no meu joelho lesionado. Reclamo da vida assistindo jornal, reclamo quando o jornal acaba porque tem novela e reclamo porque essa novela que vai passar não é tão boa quanto Rei do Gado. Escondo fotos vergonhosas da infância e adolescência, especialmente aquelas em que a puberdade me fez parecer um alienígena que parou na terra pra tomar uma Coca.

Às vezes é bom quando ela não tá aqui. Assisto Naruto até acreditar que tenho habilidades ninja. Exceto a habilidade ninja de sumir na fumaça. Essa eu já tentei e não funfou. Vou fazer compras, viver a vida de um cara comum morando sozinho. Como só o recheio do biscoito. Sento na praça pra escrever. Faço planos pra um incrível roteiro de curta-metragem que nunca vai ficar pronto. Não perco meu tempo tentando convencer alguém a abandonar o secador de cabelo no meio da estrada. Não passo protetor solar. De propósito.

Às vezes é bom quando ela não tá aqui. Mas é sempre melhor quando ela está.



segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Magnólia - Parte II




Enquanto o vento batia no meu rosto, eu lembrava do dia em que a vi pela primeira vez. Eu estava exausto e suado, no segundo lance das escadas, acompanhado de dois caras do serviço de mudança e com o encosto do sofá cobrindo metade da minha cabeça. O olhar tímido dela espiava através da fresta da porta, entreaberta apenas alguns centímetros. Só percebi que estava sendo observado quando descarreguei o sofá na porta do apartamento. Quando olhei pra fração do rosto que me fitava, não soube o que fazer. Situação estranha, pensei, enquanto a encarava. Achei que a intimidaria. Mas ela não desviou o olhar.

- Entrei em casa rápido e fechei a porta, por via das dúvidas - falei, perdido em pensamentos enquanto olhava pela janela.
- Como é? - me perguntou o taxista que me conduzia estrada a fora. Ele me encarou por algum tempo, esperando resposta.

Contudo, mal ouvi. Continuei olhando pela janela. O pensamento bobo ainda dominando minha mente.

***

Uma semana depois de ter me tornado vizinho dela, tive uma certeza. A pessoa que morava ao meu lado tinha a vida tão silenciosa quanto possível. Eu podia ouvir o vizinho de cima gritando nos jogos do Flamengo. Podia ficar uma noite inteira acordado com a vizinha de baixo fazendo faxina de madrugada. Porra de enceradeira barulhenta. Contudo, nem um pio da moça ao lado. Fiquei curioso. Quem sabe ela não é uma serial killer? Ou traficante? Ou, muito pior, uma dessas pessoas que chamam a polícia quando você faz festa?

Quase dois meses depois, quando eu chegava em casa de madrugada, vi uma sombra que entrava no prédio, cambaleante. Desapareceu no elevador de serviço antes que eu chegasse perto. Ao chegar no meu andar, me assustei ao encontrar com a pessoa misteriosa ao lado da minha porta. Era ela, minha vizinha. Estava usando uma capa de chuva enlameada sobre a roupa. Na mão esquerda, uma chave quebrada. Vi um filete de sangue que escorria pela lateral da mão, vindo de dentro da manga. Estava exausta, como se tivesse disputado uma maratona. Mal se aguentava em pé. Sorriu pra mim.

- Não conta pro síndico, vizinho - ela pediu.
- Ahn... contar o que, moça?
- Que eu fiz o barulho enorme de madrugada.

O maxilar dela cravou no rosto enquanto ela rangia os dentes de raiva. Deus sete passos pesados e agarrou o extintor de incêndio no corredor. Voltou correndo, extintor agarrado sob os braços. Com uma única pancada violenta, usando o extintor como ariete, estraçalhou a fechadura da própria porta. O barulho, as lascas de madeira voando, a surpresa... tudo me deixou atordoado. Ela soltou o pesado extintor no chão, sem nenhuma cerimônia, completando a cena. Entrou no apartamento e me deixou parado na entrada, com cara de paspalho. Pisquei e, uns bons trinta segundos depois, fui atrás dela.

A sala de estar dela parecia ter sido atacada por bárbaros visigodos. Tudo estava meticulosamente destruído. Fiquei em dúvida se o sofá havia sido queimado antes ou depois de terem o partido ao meio. Cacos de vidro forravam o chão. O furacão Katrina teria muito o que aprender se visse aquela bagunça. Em cinco minutos ela voltou de um dos quartos com um vidro de álcool. Não pareceu surpresa por eu ter entrado. Tinha um revólver enorme na mão esquerda, aquela que pouco tempo atrás segurava uma chave quebrada.

- Eu te convidaria a sentar, mas não tenho mais sofá e estou de saída.
- O que aconteceu aqui?
- Decidi me mudar. Toma, você pode escutar agora, se quiser - disse, colocando uma fita K7 no meu bolso.
- Que é isso?
- Você ainda não tinha nascido quando inventaram a fita K7? Pra fora!

Ela me escoltou até a porta de entrada enquanto despejava um líquido de cheiro forte no chão. Pegou o extintor de incêndio ao sair e o colocou nos meus braços.

- Isso tudo tá muito doido - eu disse, novamento com cara de paspalho.
- Sabe o que tinha nesse apartamento? A chama de uma vela.
- Achei que era você, morando e pagando IPTU.
- Não! Eu sou fogo de artifício! - gritou, desesperada, a cinco centímetros do meu rosto.

Acendeu um isqueiro e o jogou lá dentro. O fogo começou instantaneamente, ela começou a ir embora. Caminhava calmamente, com aquela arma prateada apertada na mão que pingava sangue.

Os bombeiros demoraram a chegar, apaguei a maior parte do fogo sozinho. Os policiais ainda me seguraram durante uma hora inteira com perguntas para as quais eu não tinha resposta. Quem era ela? Como você mora aqui há dois meses e nunca a viu antes disso? Por que você torce pro Palmeiras? Sentei numa cadeira, cansado como nunca. Lembrei da fita K7. Demorei uma boa meia hora pra encontrar um walkman velho pra escutar aquilo. Antes de apertar o "Play", percebi o silêncio. Todos tinham ido embora do apartamento carbonizado ao lado do meu. Fui para o corredor e olhei pela porta entreaberta da minha ex-vizinha. Apesar do sol nascendo, lá dentro só havia o preto deixado pelas chamas.

Durante quase dois meses eu morei ao lado de uma sombra. Trancada dentro do apartamento ao lado durante a maior parte do dia por sete anos, os outros vizinho disseram. Tomava conta do laboratório de uma escola pela manhã, três horas de trabalho. Nunca recebeu uma visita. Nunca falou com nenhum vizinho. Não lembravam o nome dela. Matilde, parece. E ela se transforma em uma mulher fatal, armada e destruindo o apartamento. Tudo lá dentro perdido, com a exceção de uma foto que eu roubei. A única coisa intacta no meio do caos.

Por via das dúvidas, fechei o que sobrava da porta dela. E comecei a ouvir a fita.


segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Magnólia - Parte I




Ela tinha uma foto sobre a cabeceira da cama. Antiga e desbotada. Ela, não a foto. A foto ainda era jovem como um dia ela fora. Um par de sorrisos à beira do rio. Pés descalços, grama na saia. Gostava de me dizer que o dia daquela fotografia valera pelo resto de sua vida medíocre. E eu, bom, eu tenho que concordar que havia muita mediocridade nos dias de Magnólia. Ela era uma estrela apagada, vivendo de lembranças. Até aquele dia, com gosto de pólvora e álcool. Dizem que o último suspiro de alguém pode ser uma chama de uma vela ou fogos de artifícios, nunca um meio termo. Ao encarar a foto, escutando as notícias daquele dia louco pelo rádio, eu sorri. No fim, Magnólia foi tudo... menos medíocre.

***

Não se pode esperar muito de alguém com o nome de Magnólia. Um nome talhado para alguém que será tia e não muito mais que isso. Contudo, ela não era mulher de se entregar ao destino e, ainda jovem, resolveu que o mundo gritaria seu nome com respeito antes que a vida a deixasse. E começou bem. Apaixonou-se pelo enamorado ingrato, o gosto pelo errado. Seu pai, dono de um grande engenho de açúcar, a ensinara a manusear as engrenagens que conduziam seu pequeno império. Um tiro no pé.

Aos doze anos de idade, a habilidade dela fez nascer um mercado clandestino de cachaça na escolinha onde estudava. Ela fez a aguardente ferver o sangue dos novos. E ria com os adolescentes bêbados, futuros alcoólatras moldados por suas mãos macias. Berravam "Mag, desce uma! Porra, menina, desce logo todas!". Assim ficou conhecida na cidade. Mag "Desce Todas". Um nome de quem não vale nada, você tem que concordar. Assim foi o começo.

Aos quinze, colecionava escalpos e delitos. Vandalismo, agressão física, pequenos furtos. Uma lenda urbana diz que ela roubou todos os cones de trânsito da cidade em uma única noite. O pai empresário ainda tentava salvá-la do precipício pagando multas e fianças. Não daria certo. Alguma coisa em Magnólia não deixava a poeira se assentar. Ninguém conseguia enxergar além de sua superfície turbulenta. Ela só se agitava, desesperada, contra as pessoas em volta. Tudo o que conseguia dizer sobre si era uma frase difícil de decifrar.

- Eu tenho amor demais - falava, transpirando intensidade e sorrisos.

Quando completou dezessete, o amor venceu. Ela se apaixonou pela segunda vez, ainda com o fogo pelo errado dentro de si, por uma moça das delicadas. Helena, nenhum apelido, nenhum passado conhecido. Papai se cansou de Mag e a mandou pra fora de casa. Mamãe, lá no Céu, não podia ajudar. Então ela construiu o que pôde, sozinha. Elas viveram juntas perto do pequeno rio de águas turvas da cidade durante um ano inteiro. Compraram um terreno barato. Levantaram uma casa feita de um único cômodo. Encheram tudo com o amor que transbordava do corpo. Tiraram fotos. Muitas. Tantas que as paredes não precisaram ser pintadas. As imagens cobrindo cada centímetro. Exposição. Grãos de prata. Grãos de areia do rio. Pés descalços. Grama na saia.

Mag "Desce Todas" virou caixa de supermercado. Suava pra ganhar o seu salário em comida, que carregava pra casa ao fim do dia. Helena tentava ser fotógrafa, luta pesada para uma menina orfã que vivia da pensão de um salário mínimo paga pelo governo. Ela só tinha mais um ano até a fonte secar, completando 18. Quando criança, chorava pela mãe. Entendeu que chorar não resolvia. Morou em todos os lugares sujos do estado até parar naquela cidadezinha. Tirou sua primeira foto de Magnólia quando ela atravessava a rua em sua direção. E finalmente conseguiu seu primeiro lugar limpo no mundo. Uma quitinete no coração de Magnólia. Era o bastante pra ela. Ali, cavou sua cova sem saber.

Ao chegar do trabalho, Mag só percebeu o barulho das sirenes ao ver o grande caminhão vermelho do corpo de bombeiros estacionado de qualquer maneira sobre a grama. Caminhava pensando na noite que teria com sua pequena. Trabalhando em dois turnos, o patrão concordara em dar a ela um emprego de verdade. Pago com dinheiro! Tudo estaria resolvido pelos próximos meses. O caminhão a tirou do devaneio junto a uma lufada de calor, carregada pelo vento. Os bombeiros chegaram tarde, o trabalho era para evitar que o fogo se alastrasse. O desespero de Magnólia não deu nenhum resultado. O bombeiro a segurou com facilidade pelos ombros.

Fora tudo muito rápido. Uma chama e a casa virou uma labareda em menos de um minuto, o bombeiro disse. Havia uma quantidade incrível de nitrato ali. Os filmes fotográficos. E muito papel também. As fotos nas paredes. A vítima não conseguiu abrir a porta, o calor derreteu a maçaneta. Provavelmente ela estava dormindo quando começou o fogo. Fora tudo muito rápido. Um incêndio na beira do rio, comentou ele. A vida adora a ironia.

Magnólia olhava para a margem enquanto sua dor rugia nos braços do bombeiro. O reflexo do fogo tingiu as águas de laranja e vermelho. O lugar em que antes tinha amor foi arrancado do peito dela. O coração de menina se perdeu de vez. Ela se acalmou aos poucos, mas o bombeiro não a largou. Olhou nos olhos vidrados daquela criatura em seus braços e se sentiu perdido. Quanto a Magnólia... Por mais que ela tentasse ver beleza naquelas águas púrpuras onde seus olhos se perdiam, só enxergou sangue espalhado pelo rio.


Quem sou eu

Minha foto
"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto