domingo, 26 de julho de 2015

Denúncia: Jovem-correria, a verdade revelada!




Roteiro BLOCO 3
(*escrito à mão, na lateral da página, "Alguém avisa o Robério que isso que ele chama de maquiagem tá ridículo. Menos pó pra dentro do nariz, mais pó nas olheiras")

RODA VINHETA.
RODA TRILHA FEITA EM TECLADO DE CHURRASCARIA.


ABRE CÂMERA 2. SOLTA O TP. VAI ROBÉRIO.
- Uma realidade surpreendete! (ENTRA O PRIMEIRO "PAM").
- Chocante! (ENTRA O SEGUNDO "PAM")
- Assustadora! (ENTRA O "PAAAAAM" FINAL E PROLONGADO).

CORTA PARA CÂMERA 1

- O jovem-correria se esconde bem na sua cara, cidadão de bem. Um sujeito que passa despercebido. Não, não é como o mendigo ou o bêbado da esquina. Esses você olha, se tiver compaixão sente uma dor no peito, e então pensa "É problema do governo ou de alguma outra pessoa que não eu".

- Já o jovem-correria é sim de rua, porém treinado na sorrateira arte da camunflagem social. As estatísticas só resvalam no seu corpo indefinido e coberto por DRO-GAS. Sim. Eles compram na Renner. Riachuelo. C&A. E pasmem. Na Otoch. Mesmo com anos de menos consegue emprego se dizendo "estagiário". E só foi descoberto pela nossa equipe por ter feito o elevador da TV travar com excesso de passageiros. Veja na reportagem!!!

RODA VT.

Mochila de nylon, calça jeans da feira, camisa pólo sem jacarezinho. O jovem-correria é um indivíduo com hábitos peculiares. Até hoje especialistas só sabiam que ele completa o shampoo com água quando o produto tá no finzinho. Descobrimos que ele também escreve "xampú" ao invés de "shampoo", entre outras verdades impactantes.

Você sabia que é ele o responsável por toda essa bagunça de passe estudantil, por exemplo?

Muito da invisibilidade do jovem-correria está na capacidade de acumular sub-empregos. Estágio é o mais comum. Mas volta e meia o jovem-correria tá com alguma coisa pra fazer rolo, seja dele ou de "um conhecido". Avon, brigadeiro, Herba Life, pen drive ou salada de fruta. Tem também aquele bico de operador de telemarketing, produtor de eventos dos vizinhos, estoquista em loja e o clássico rapaz do xeróx.

Nos hábitos de consumo, a ilegalidade corre solta: em seu celular, todos os episódios de séries televisivas populares como Game of Thrones em baixíssima resolução. Mal dá pra saber que o anão é um anão, de tanto pixel. Também é fácil achar músicas dos vândalos incitadores Emicida, Criolo Doido, Marcello Gugu e MC Guimê. Dá pra ver só pelo nome que ninguém dessa trupe presta.

Outro detalhe que surpreende no jovem-correria é a capacidade de sempre morar em lugar que tem enchente. Repare bem nessa imagem feita em Itaquera. Tá vendo boiando aquela apostila xerocada de faculdade feita à distância? Indício claro de que tem jovem-correria ali.

"O sentido da vida é pá frente!", frase comum entre essa gente, é só uma entre muitas expressões que vão te ajudar a identificar o sujeito. Preparamos um pequeno glossário. Veja.

- TÔ AJUDANDO UM PRIMO A VENDER ESSES PEN DRIVES.

- VOU TER QUE FAZER ESSE CORRE PRA FECHAR O MÊS.

- ESSE ANO NÃO VAI DAR, MENSALIDADE DA FACUL SUBIU.

- COLEI LÁ NA BATALHA DE MCs, CUSTOU SÓ CINCÃO PRA ENTRAR.

- A MARMITA É MINHA MÃE QUE FAZ, EU SÓ COMPRO AS COISAS.

VOLTA ESTÚDIOABRE CÂMERA 1. SOLTA O TP. VAI ROBÉRIO BABACA! QUEM ESCREVE O ROTEIRO É ESTAGIÁRIO QUE MORA NA VILA ZILDA, SEU BOSTA.

- Muito esclarecedora essa matéria, gente. É importante acompanhar essas curiosidades da nossa sociedade, esperamos agora que esse povo ganhe dinheiro e cultura pra melhorar nosso país.
A gente tem que acabar com qualquer tipo de rolezinho, que tira a paz do trabalhador brasileiro, e tenho certeza que esse jovem-correria tá sempre lá. Sem nunca ter praticado um hipismo, estourado uma champanha. É falta de oportunidade que esse pessoal sofre.

- Agora vamos falar de coisa boa? Tem creche nova para seu cãozinho também em Moema! Veja na reportagem!!!


sábado, 18 de julho de 2015

Marcha Atlética




Um dia desses eu ia embora do trabalho, o que quer dizer que eu caminhava.
Olhos no chão, cansaço.

Do meu lado veio uma menina. E o perfume dela me abraçou como a um velho amigo... Quando levantei a cabeça ela já tinha me ultrapassado. Dei de cara com suas costas, espáduas firmes do mistério. O cabelo caia em uma cascata suave de fios pretos, sacudindo pra lá e pra cá no ritmo dos passos. A distração musical do meu headfone ou o efeito hipnotizante do perfume dela a deixaram dez passos na minha frente. E dá-lhe pernada. Se ela tivesse um papel com números no peito, certeza que estava competindo em marcha atlética.

E eu ali, no meu rumo e torci que ela fosse pelo mesmo. Curioso. Não sei, essas coisas que dão. Ela parecia ser bonita. Não, é quase isso. Parecia ser alguém que eu deveria saber se era bonita. E ao mesmo tempo em que ficava feliz por tê-la indo pra onde eu ia, malditos dez passos atrás!, ou corria pra olhar o rosto da criatura ou caminhava o mais rápido que podia pra alcançá-la.

Me senti o clássico perseguidor de sobretudo nos filmes, o vilão de uma história em quadrinhos. A cada esquina dobrada achava um detalhe novo naquela silhueta. Uma nova pista. Olha ali, ela anda tão duro, os passos ecoando. Elegante. Tira o cabelo dos olhos, mas não é neurótica com o vento. Gente assim tem que ser bonita. Não tem? O que eu acho bonito mesmo... É ser bonito. Tá bem, me perco com frequência nas ciências que crio. E quando ambos estávamos no mesmo ponto, o de ônibus, vi minha chance.

Ela chegou lá já esticando pescoço, fez sinal com o dedo, se misturou no bolo/fila. Levou sete segundos pra embarcar. Sete. Estaria ao lado dela em quatro, se quisesse. Mas fiquei ali nos meus dez passos de segurança. Minha cabeça substituiu o "distância" por "segurança" sem que me desse conta. E por que?

Olhei placidamente quando ela colocou uma mão na bolsa, tirou o dinheiro da passagem, entrou pela porta, sumiu. Olhei placidamente meu desejo de descoberta partir com naqueles momento. Me conheci um pouco melhor ali, sem me preocupar com beldades em pessoas ou no mundo. Queria a beleza daquele pedacinho de história em mim. O olhos e lábios e sorrisos eram menores que a preciosidade de seguir com a pequena dúvida. De ter vivido a beleza, mais do que olhá-la. Como a magnitude que antecede o ato: o arco em riste com flecha retesada antes do disparo, aquela coragem que dá antes de partir pra jornada, o medo que vem antes do primeiro beijo.

É ser bonito. E escolher um bom perfume, claro.


Quem sou eu

Minha foto
"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto