segunda-feira, 27 de junho de 2011

Boxer, boxes




Eu acordo de um sonho ruim e descubro que teria sido melhor ficar nele. A vida tem desses momentos, só luto pra que eles sejam minoria. Ao meu redor, várias caixas empilhadas. Dentro delas, minha vida inteira. Embalada pra viagem. Claro que é bem bizarro saber que tudo o que você tem, tudo o que você foi, é, ou será cabe dentro de abas de papelão. Contudo, o problema mesmo é não ter aonde ir com sua vida empacotada. Só existe saída de emergência, nunca uma entrada. Algo para o qual você vai ter que se preparar se quiser ser gente grande.

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Tudo no boxe é ao contrário. Bases trocadas, peso e sobrepeso, equilíbrio sem centro de gravidade. Essa é a mágica da luta, um feitiço que aprendi com socos na cara. Dando e levando. Meu lado brigão já teve seus momentos e, embora não me orgulhe deles, não posso negar que me ajudaram a entender muito sobre eu mesmo. Aprendi o bailado brutal da violência, senti até onde meu corpo aguenta. É bom saber que você não é de vidro. Dá pra levar uns sopapos e sair inteiro. Além do mais, essas coisas são um atrativo pro mundo.

As pessoas adoram violência, verdade seja dita. Você vira a cabeça pra checar de perto um acidente na pista, procura pelos corpos ou vítimas. Compra ingressos pra filmes de terror. Paga o pacote première pra ver o UFC. Entretanto, conheço poucos que teriam colhões para entrar em uma briga de verdade. Um pouco pelo medo da dor, mas acho que principalmente pelo respeito. Brigar é uma questão do respeito machista. Você toma o respeito para si. E tira o respeito do outro cara.

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Passei a mão pelas fotos antigas no topo da caixa. Nas minhas mãos com cicatrizes curtas tem um dom adormecido de capturar momentos. O sorriso da Talita. Deco chutando uma lata sobre os trilhos. Ruas de Pirenópolis, o mar do Rio à noite enquanto eu navego pra Niterói. Inri Cristo passeando pelos corredores da UnB.

Um pino de trava de carro em contra-luz que consegue representar todos os meus medos. Minhas imagens, todas elas. Quando eu tinha oito anos e estava pra fazer nove em uma festinha de aniversário da escola. Uma garota loira dormindo com tanta serenidade que o próprio céu racharia ante sua graça. Meu primeiro carrinho de rolimã. O dia em que passei no vestibular. Tudo enrolado em fita crepe. De mudança pra qualquer lugar.

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Uma vez eu levei um soco tão forte nas costelas que duas delas fissuraram no ato. Eu mal conseguia respirar, a dor dilacerou meu raciocínio. Eu tinha tudo pra perder aquela briga. Meu adversário era maior, mais forte. Eu era mais rápido, mas em uma luta tudo o que conta são os três segundos. O tempo de uma defesa e um contra-ataque. "Se você não consegue derrubar um oponente mais forte que você nesse tempo, corra", me ensinaram. Não tinha pra onde correr.

Eu já tava lá, como um saco de pancadas, com meu corpo derrotado e esperando pra me afogar em uma poça do meu próprio sangue. Eu sobrevivi porque no segundo ataque dele eu estava melhor posicionado e ainda respirava. Em três segundos, com ombro e cotovelo deslocados, ele estava derrotado. Venci uma briga e me senti pronto pra qualquer batalha da vida. Porra, como eu era ingênuo.

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Nas minhas caixas eu tenho um urso de pelúcia com uma fantasia de pintinho de pelúcia. E, por mais idiota que isso seja, por mais infantil que pareça, eu adoro ele. Pinturso. É o nome dele, Pinturso. Ele tem o corpo todo de pintinho, amarelo e com uma gravata. Pés de pintinho. Mas a cabeça é de urso. Com um capuz de pintinho que completa a fantasia. Disfarce perfeito. Toda vez que olho pra ele, rio como um mongol. É um urso fantasiado de pintinho! Cada um com suas loucuras. Tem gente que coleciona tomadas. Eu acho o diabo do ursinho hilário. Não me julgue.

Eu tenho uma corrente de prata que me lembra tanta coisa boa que eu prefiro mantê-la guardada. Bobagens que a gente faz podem estragar os dias bonitos que passei usando esse troço. Quem é mais idiota? A supertição ou o homem que se deixa dominar por ela? Tirei da pequena caixa onde a mantinha protegida. A corrente e a lembrança. E deicidi que vou usar essa porcaria enquanto eu me sentir bem com ela. Por às vezes a gente precisa gritar "Foda-se!" por mundo. E sussurar "Foda-se!" pra nós mesmos. Enrolei a corrente em volta do pescoço e fiz as duas coisas, quase simultaneamente.

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Eu não sou tão durão quanto já fui. Sei disso muito bem e meus óculos de nerd não me deixam mentir. Eles até me disfarçam, assim como o Pinturso. É com um riso escondido que vejo muitos me olharem como se eu não aguentasse um tapa sequer. Não me incomodo, contudo. Eles não fazem ideia, penso aqui, com meus botões. Deixei a vida de mãos inchadas e curativos na gaveta há muito tempo. A vida pode te socar muito mais forte que qualquer babaca marombado. Preferi me preparar pra aguentar esse tipo de porrada e, até agora, ainda estou de pé. Minhas palavras, minhas imagens, minhas caixas. Eu sou uma mistura de tudo isso agora. Mas ainda me lembro. Me lembro bem dos dias selvagens.

Tudo no boxe é ao contrário. Às vezes, o melhor jeito de encaixar o soco demolidor é dar um passo pra trás. Contudo, se o passo for longo demais... Você está só fugindo da briga.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

vontade de:

Eu tenho vontade de compar um galo e batizá-lo de Horácio. Cansei do meu despertador.

Eu tenho vontade de beber o vinho do padre pra ver se é porreta ou não.

Eu tenho vontade de bater na bunda de quase toda mulher que eu conheço, confesso. Isso não é desrespeito, pelo amor de Deus. Respeito o pandeiro alheio, pode confiar. Mas acho engraçado por natureza a ideia de um tapa na bunda. Como até agora não fui preso, você sabe que eu seguro essa vontade.

Eu tenho vontade de acender vela pra poder apagar com o dedo.

Eu tenho vontade de ir enrolado na coberta pra qualquer lugar em que eu precise ir pela manhã.

Eu tenho vontade de construir um toboágua que me leve do trabalho pra casa.

Eu tenho vontade de ter o par de pernas dela subindo pelas minhas toda manhã. E sei que você tem vontade de saber quais pernas são, mas não tenho nenhuma vontade de contar.

Eu tenho vontade de construir um túnel de fuga.

Eu tenho vontade de roubar o papagaio gigante da Petrobrás em algum posto de gasolina.

Eu tenho vontade de sentar no Dom Francisco, olhar no olho do garçom, pigarrear e dizer com um sotaque cearense "me veja aí um BigMac que hoje eu tô pra matar um jagunço de fome!".

Eu tenho vontade de deixar o meu cabelo crescer, mesmo sabendo que, a cada dia, eu teria vontade cortar tudo porque cabelo grande me dá agonia e não tem nada a ver comigo.

Eu tenho vontade de comprar uma impressora que funcione só pra imprimir meus textos e depois queimá-los com conhaque e ao som de Maria Betânia. Daria um tom mais dramático à minha literatura de boteco.

Eu tenho vontade de parar de ser sem-noção, porque isso deixa muita genta puta comigo. Com razão. Mas daí eu seria uma pessoa mais triste, já que ser sem-noção é a minha principal fonte de alegrias e histórias.

Eu tenho vontade de ter um galo chamado Horácio. Já falei dele?

Eu tenho vontade de melhorar o HD do meu cérebro porque esqueço completamente de coisas da minha vida, coisas que fiz, coisas que falei. Isso sem nunca ter usado nada além de altas doses de jujuba.

Eu tenho vontade de apertar bebês e abraçar velhinhos.

Eu tenho vontade de Nicole, sentada ao meu lado no alto da Cidadela em Budapeste, falando sobre as coisas simples e adoráveis, rindo de mim, explicando suas teorias a respeito de musicais e cinema. Me fazendo sentir uma saudade esmagadora de tudo o que ainda não aconteceu comigo. Me fazendo saber que sentiria saudade daquele momento pra sempre.

Eu tenho vontade de não me sentir como um balão de festa furado quando me decepcionam.

Eu tenho vontade de ser organizado. Não aguento mais escrever na mão pra lembrar das coisas.

Eu tenho uma vontade irracional de contar piadas muito ruins mesmo sabendo que são ruins. Mas essa vontade não conta porque isso eu faço todo dia.

Quem sou eu

Minha foto
"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto