quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Detetive




É engraçado como a gente vira detetive, pensou Sérgio, enquanto arrumava a casa. Era um tal de achar cabelos, de perceber cheiros, de esbarrar em provas cabais de que ela esteve ali. Esteve, presente, não um leve passar. E a vassoura se emaranhava com um brinco esquecido, vinha o sorriso de canto. Aquilo parecia ou uma estratégia gasta, ou um descaso muito grande com jóias. Já tinha devolvido uma pulseira, um anel e três chuchinhas de cabelo.

Levando o lixo pra baixo, toma uma intimada do porteiro.

- A menina saiu que nem um furacão, sinhô Sérgio! Tá com muito fôlego pra alcançar aquela ali, hein? Hahahaha!
- Para de ser sem-vergonha, Aroldo! Nem venha com intimidades.

Mas por dentro riu. Era como se um tratamento novo estivesse sendo desenvolvido pra uma doença que não se conhecia, nem tinha cura. Um admirar calmo que preenchia tanto, alegrava tanto.

Que sofrimento de ausência dá no peito quando se olha fundo no espelho do banheiro... Os amores rondando, tubarões, famintos, enquanto ele nadava em seu córrego de ingenuidade. Fotografou, colheu digitais, concluiu: estou no meio do caminho. O amor não foi, o amor não veio. O amor está, e se transformando, a beleza das suas míriades e rapsódias fica completa.

O anteparo do querer. Sem se preocupar, sem expectativas. Sérgio estava vivendo seus ajustes. Parecia um motorista de caminhão dirigindo um fusca. Tudo automóvel, tudo diferente.

Sentou no sofá e admirou o brinco. Estava divertido ser detetive. Ainda mais à procura de uma coisa que nunca perdemos.



Quem sou eu

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"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto