domingo, 12 de agosto de 2012

Just Drive - Parte III (Hit The Road, Dread)


"Na Jamaica, todo mundo meio que se conhece. Na minha cidade, todo mundo literalmente se conhece. É um lugar pequeno, onde o tempo não passa, com tantas curvas cegas que parece que fizeram de propósito pra gente se bater."
Usain  Bolt

ON THE ROAD

O velocímetro oscila, faróis me cegam. Descendo a montanha, o carro desliza entre curvas fechadas demais,  as mão apertam o volante. Tudo é silêncio e noite. A estrada e eu.

OFF THE LANE
Foram dois meses até conseguir sair da cama sozinho. Mais um pra andar com minhas próprias pernas. O mundo do hospital ficou então ao meu alcance, era só esticar os dedos e sentir o mar de confusão e dores humanas, esperanças quebradas e novas, vida, morte e qualquer outra coisa entre os dois extremos. Conversar com alguém que pode não estar ali no dia seguinte era minha maior angústia. Alguns tinham alta. outros não.

Alta. A palavra mágica. Minha enfermeira era baixinha e sempre ficava pensando que era esse o motivo de eu permanecer tanto tempo naquele lugar. Em cima da minha cama ficava um livro sobre peixes. Passava a noite olhando pra ele, sem me preocupar em ler. Só não queria olhar pra televisão. Você sabe quantos carros aparecem nela?

ON THE ROAD
O sol se põe no mar, sem pressa nenhuma. Consigo ouvir grilos e passarinhos o tempo todo. A vendinhas de madeira na beira da pista têm frutas de todas as cores e gostos. E também quiabo. Por algum motivo que eu não entendo, quiabo. Sempre tá lá no meio das frutas.

De vez em quando um rastafari pede carona no caminho, quase sempre paro e mando ele subir, mesmo que tenha que fazer um puta desvio pra ajudar. Sou um caronista de coração. E eles são sempre impagáveis, tem histórias absurdas envolvendo maconha, espaçonaves, árvores antigas e coisas da floresta. Odeiam Novos Baianos. E a maioria tem algum mp3 player no bolso com "gooood sounds of Salassie Jah, my brenda" que insistem em botar pra tocar, com algum reggae tão raiz, mas tão raiz, que chega a ser quase que só o som do vento na grama. Adoro essas figuras. Só fico com medo de pegar piolho.

OFF THE LANE
Ele cheirava a café e colônia, se chama Dr. Rogério e tem um sorriso que conforta. O pediatra que me conhece desde as primeiras horas de vida, o meu médico. Até hoje ainda recorro a ele. Até hoje ele me dá o "Certificado de Coragem" ao fim da consulta, afirmando que fui um bom rapaz e tomei a injeção sem chorar. Mentiroso. Até hoje escorrem lágrimas só de olhar pra uma agulha..

Depois de cinco meses esgotando possibilidades, uma cirurgia marcada. Ela me faria ter uma vida normal. Ou perder até metade dos movimentos do lado direito do corpo. Quem sabe todos os movimentos de todos os lados. Meu medo crescia como feijão no algodão: só precisava de gotinhas de água e aquele lugar era uma cachoeira de desesperos. O Rogério era a única corda de esperança, mas estava longe do alcance. Ele era apenas pediatra. Eu precisava de um cirurgião.

ON THE ROAD
Pra fazer compras são só três curvas: Trafalgar Park, Trafalgar Road, Waterloo. Cabô. Desço do carro maior e vou com o de compras pelos corredores. Encho de porcaria, volto pra casa por um caminho diferente. Vejo meninos brincando. Dá vontade de estacionar e me juntar a eles, mas não posso.

O volante esquenta com dois segundos de sol, o maldito sol, aqui sempre impiedoso e me fazendo ficar moreno-sensual. Preferia ficar amarelo e sem o calor.

OFF THE LANE
O cirurgião era um cara mal-encarado, não dava "oi" pra ninguém e simplesmente ignorava qualquer um que falasse com ele no almoço. Um boçal. Não queria de jeito nenhum estar eu, ele e bisturis na mesma sala. O calendário virou meu inimigo, cada dia que passava me dava mais angustia. Chamei, como um bom garoto que se sente adulto, o Dr. Rogério pra conversar sobre o assunto. Ele pegou um café na máquina com um sorriso no canto da boca e sentou comigo na lanchonete do hospital. Nossa mesa de reunião tinha uma tigela de gelatina esquecida, que ignoramos pelo bem da conversa de homem pra menino que teríamos.

- Seu Rogério, eu não gosto desse cara que vai fazer a cirurgia. Não pode ser você?
- Eu não sou cirurgião, Lucas. Mas vou estar lá, bem do seu lado, durante todo o processo.
- Mas ele é horrível, seu Rogério. Ele me chama de "moleque curioso", nem deve saber meu nome.
- Pior que ele não deve saber mesmo. Só que é o melhor cirurgião dessa área que existe no país.
- Vamos achar outro, Rogério. Não confio nele.

Ele me olhou durante um tempo, me avaliando. O que mais gosto no Dr. Rogério é que a humildade dele o coloca de igual pra igual pra mim. Nunca reclamou de eu não chamá-lo de doutor. Nem uma vezinha. E pra alguém que passa muitos anos estudando, esses títulos costumam ser motivo de bronca. Mas o bacana nem liga. Depois de suspirar e tomar mais um gole de café, me deu a melhor resposta de todas.

- Vou te contar uma história.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Microconto o microsegredo, microvemcá

Pensava que nunca encontraria alguém pra se fantasiar de Fred Mercury com ele na visita ao bairro do Queens. Ou quem gritasse "sou contra!" antes dele. Quando a viu sorrindo e correndo atrás do patinete, teve tanta certeza que a dúvida o cegou.

- Se ela disser algo a mais, o que eu faço? - as palavras saíram pra dentro.

Sincronizou as miniloucuras. Só de se perguntar já revelava a resposta.

Quem sou eu

Minha foto
"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto