quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Alfabetização




Em uma conversa, um reencontro intenso de amizade, que não se limita a Domingos e suas lamentações, dois amigos. Cerveja de um lado, café do outro. Nenhum dos dois bebe nenhuma das duas bebidas. O pedido foi a essência daqueles homens no seu encontro: absolutamente profundos e sem nenhuma seriedade ao mesmo tempo.

- A gente às vezes aprende a ler quem está com você. Depois de um tempo, fica sensível naquele processo de avaliação, de mensuração. Na ausência de palavras, virei um garimpeiro de verdades obscuras... Queria eu que ela só falasse. Simplesmente me dissesse o que sentia, o que pensava, o que vivia. Assim eu evitaria as coisas que li quando queria ter sido analfabeto.
- “Pra aprendêêêêê a lêêêêêê, pra isso não tem hooooora!”. Lembra?
- Hahahahaha, sim! Melhor jingle do governo.
- Melhor. Continua, meu chapa. O que leu?
- A gente tinha uma pequena memória, bonita e pura, do início do relacionamento. Beijo no nariz. Não vou explicar demais porque você não merece.
- Justo. Essas coisas são íntimas e eu nem entenderia também.

- Grato. Pois bem, tinha o beijo no nariz, significativo e particular. E uma vez, depois de já termos terminado, eu ressuscitei essa lembrança. Beijinho no nariz. E ela... ai, ela deu um meio sorriso reto. Sabe? Quando a pessoa aperta os lábios na hora de sorrir, a boca vira uma linha continua e sem contornos. Nela, eu sabia, era misturando a tentativa de ficar feliz com uma tristeza escondida. Doeu.
- A tristeza escondida?
- Também, também. Mas eu acho que mais o fato daquilo, tão inocente e feliz, ter se transformado. Não estávamos mais juntos, então eu revi as probabilidades. A maior delas... Ela ter usado o beijo no nariz com outra pessoa e ali, se sentido mal com isso.
- Com razão?
- Um ato delicado e único que foi moldado cheio de amor entre duas pessoas, utilizado com outra? Sim. Muito errado, inclusive com quem recebeu esse gesto. Pode ter sido qualquer outra coisa também. Ela pode ter se lembrado que não tinhamos mais aquele amor ingênuo, pode ter associado o beijo aos momentos ruins, sei lá. Contudo, não é disso que eu tô falando, velho. Apontar dedos, sabe... Passou. Graças a Deus, haha!
- Eu entendi. O momento se perdeu.
- Isso! Se perdeu. Era algo que poderia ter durado pra sempre, como todo gesto de amor genuíno. Esse beijo no nariz poderia ser um sinal através dos tempos, uma bóia de felicidade nos mares de memória, pra que a gente se segurasse mesmo depois que eu e ela estivéssemos em outras vidas. Eu poderia me apaixonar milhares de vezes, isso não mudaria. E ali, finado-velado-enterrado, num processo fúnebre que aconteceu só no meu coração.

- Cara... Isso é bonito de tão triste. Mas parece ser parte da vida. Como um pudim de leite que se espatifa no chão antes de você pegar uma fatia sequer.
- De laranja! O de leite a gente ainda pode achar na padoca.
- Ou de chocolate com nozes! Já viu?
- Não, nem sabia que existia.
- Vou te levar na casa da minha mãe pra você ver.
- É nóis.
- Guarda mágoas?
- Sei lá, acho que não. Tem muitas outras bóias de felicidade nesse mar de memórias. O coração aqui já ressuscitou o amor, como você bem sabe. Tanta coisa aconteceu de lá até aqui...
- “nanana... dois caminhos, refaço o nó pra nos unir”.
- “Nasce de novo, todo dia faz, toda vez, que vejo você”. E aquele seu amor?
- Nha, não deu. A verdade é que não era amor.
- Que houve?
- Ela disse em uma frase a expressão “ângulo de vista”, sem zueira, falou seriamente aquilo.
- Estranho.
- Demais! Nem ângulo de visão, nem ponto de vista. Não fez sentido. Aí, não deu. Terminei.
- Cara...
- O que?
- Você é um idiota. E por isso eu te compreendo perfeitamente.

Ambos sorriram e finalmente deram um gole em suas bebidas que odiavam. E mesmo quando saíram, tarde da noite, o gosto daquilo tudo não tinha ido embora. Cafeína, lúpulo, alfabetização.



Quem sou eu

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"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto