sábado, 18 de julho de 2015

Marcha Atlética




Um dia desses eu ia embora do trabalho, o que quer dizer que eu caminhava.
Olhos no chão, cansaço.

Do meu lado veio uma menina. E o perfume dela me abraçou como a um velho amigo... Quando levantei a cabeça ela já tinha me ultrapassado. Dei de cara com suas costas, espáduas firmes do mistério. O cabelo caia em uma cascata suave de fios pretos, sacudindo pra lá e pra cá no ritmo dos passos. A distração musical do meu headfone ou o efeito hipnotizante do perfume dela a deixaram dez passos na minha frente. E dá-lhe pernada. Se ela tivesse um papel com números no peito, certeza que estava competindo em marcha atlética.

E eu ali, no meu rumo e torci que ela fosse pelo mesmo. Curioso. Não sei, essas coisas que dão. Ela parecia ser bonita. Não, é quase isso. Parecia ser alguém que eu deveria saber se era bonita. E ao mesmo tempo em que ficava feliz por tê-la indo pra onde eu ia, malditos dez passos atrás!, ou corria pra olhar o rosto da criatura ou caminhava o mais rápido que podia pra alcançá-la.

Me senti o clássico perseguidor de sobretudo nos filmes, o vilão de uma história em quadrinhos. A cada esquina dobrada achava um detalhe novo naquela silhueta. Uma nova pista. Olha ali, ela anda tão duro, os passos ecoando. Elegante. Tira o cabelo dos olhos, mas não é neurótica com o vento. Gente assim tem que ser bonita. Não tem? O que eu acho bonito mesmo... É ser bonito. Tá bem, me perco com frequência nas ciências que crio. E quando ambos estávamos no mesmo ponto, o de ônibus, vi minha chance.

Ela chegou lá já esticando pescoço, fez sinal com o dedo, se misturou no bolo/fila. Levou sete segundos pra embarcar. Sete. Estaria ao lado dela em quatro, se quisesse. Mas fiquei ali nos meus dez passos de segurança. Minha cabeça substituiu o "distância" por "segurança" sem que me desse conta. E por que?

Olhei placidamente quando ela colocou uma mão na bolsa, tirou o dinheiro da passagem, entrou pela porta, sumiu. Olhei placidamente meu desejo de descoberta partir com naqueles momento. Me conheci um pouco melhor ali, sem me preocupar com beldades em pessoas ou no mundo. Queria a beleza daquele pedacinho de história em mim. O olhos e lábios e sorrisos eram menores que a preciosidade de seguir com a pequena dúvida. De ter vivido a beleza, mais do que olhá-la. Como a magnitude que antecede o ato: o arco em riste com flecha retesada antes do disparo, aquela coragem que dá antes de partir pra jornada, o medo que vem antes do primeiro beijo.

É ser bonito. E escolher um bom perfume, claro.


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"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto