sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Espumas ao Vento




Tirando as coisas da mala, Clara pensava no emprego novo a na vida que se assentava, até agarrar um pedaço de plástico mole e frio. Gritou e recuou, achou primeiro que fosse um bicho infiltrado na bagagem. Pegou a vassoura. Mirou direitinho e aplicou toda a força. Mas depois de quatro vassouradas firmes no local e 10 minutos de observação cautelosa, foi, pé ante pé, checar que diabos era aquilo.

Escondido entre duas toalhas, um pote de sabonete líquido. Não era exatamente seu, mas um pseudo-presente daquele amor recém rompido. Ai, fisgadas! Ali, qualquer ser humano entende o que sentem as carpas preciosas, os marlins brutos, quando pegos pelo anzol do pescador de lembranças. Puxados pra fora do seu habitat, respirando o ar gelado. O cheiro daquele sabonete... o cheiro dele. O que a gente faz com isso? Podia ter dado pra alguém, qualquer alguém.

- Vou dar é porra nenhuma! Eu preciso de sabonete. Descolo uma daquelas esponjas. Forte, serei o "Velho e o Mar", pra que Hemingway narre meus contos de dor e fúria contra o inevitável. Serei poética. E limpinha também, que esse negócio ainda serve como esfoliante!

E na prateleira do banheiro ficou o vidro, e usado foi o sabonete. Na primeira vez, Clara sentiu cada lufada daquele perfume. Lhe emaranhava na alma, trazendo o bom do amor a galope pro box minúsculo. Ainda assim, enfrentou a dor da perda durante o banho. Como Elza Soares, cantou "Espumas ao Vento" chorando de dar dó. Mas não deixou cair uma gota de sabonete no chão.

Em uma das vezes, usou com a sobrinha, que se sujou toda de tinta guache. Glup. Outro dia, uma amiga precisou de uma ducha pós-balada. Glup. Naquela semana terrível de trabalho, ficou um tempão debaixo do chuveiro. Glup. Quando o novo date veio passar a noite, a água correu entre os dois com calma. Glup.

Um gole depois do outro, foi assim que a vida bebeu todo aquele líquido. Ela se deu conta em uma manhã comum, de um banho comum, do conteúdo do vidro em seu último suspiro. Ficou com os olhos estáticos, perdidos naquele pedaço mole e frio de plástico nas mãos. O perfume dele ainda emanava dali... Não, não era mais o perfume dele. Era da sobrinha, da amiga, do date, dela. Levado pela água, em memórias distintas, a dor da perda cicatrizando um pouco mais. Tudo era ele. Nada era ele. Se dissolveu na pele.

Jogou o pote fora, se ajeitou pro trabalho. No trem, sacode-pra-lá-sacode-pra-cá, o celular tocou:

- Oi, Clarinha! Como você tá? Vai hoje lá nas meninas?
- Oi! Vou sim, tá tudo lim... hahahahahaha! TUDO LIMPEZA! Hahaha! Pera aí, já te ligo.

Riu sozinha por mais quatro estações antes de retornar o telefonema.


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"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto