sexta-feira, 26 de março de 2010

Selvas de pedra e corações roubados

Eis que Cassiana queria cruzar Brasília a pé. Dizendo Brasília quero dizer Plano Piloto, que, para todos os efeitos, é o que os brasilienses entendem por Brasília. Mas mesmo reduzindo arbitrariamente as proporções de Brasília para dentro das duas asas, a tarefa da Cassiana não é das mais leves. Essa menina, evidentemente uma representação feminina do jovem que vos escreve, já que me acho muito cabeludo ultimamente e acho que ser uma bela e graciosa moça deve ter lá suas vantagens. Exemplo: Carla Perez e o poder que a bunda tem. Bom, o assunto é constrangedor e vamos morrê-lo por aqui, certo? Ponto final.

Voltando a minha psique feminina, a Cassiana. Ela vai rodar, esse final é óbvio, e você sabe disso porque todo mundo sempre roda nas minhas estórias. Descarrego minha dor nos personagens, pronto e acabou. Vamos ao motivos do insucesso de minha protagonista:

1. Brasília é o barro: A capital federal na verdade foi toda feita de barro, o concreto do Niemeyer foi tacado por cima só pra dar uma guaribada e disfarçar a peraltice. Quem anda pelo Plano sabe muito bem disso, já que é impossível caminhar mais de 500 metros sem sujar, no mínimo, sua sandália havaiana genérica (sim, porque se você tem uma havaiana original, você não deveria estar a pé). Mas os pés são o de menos.
Calças e mais calças se perdem, meias vão direto para o lixo, camisetas brancas ficam manchadas e tome Omo Multi-ação para corrigir a traquinagem dos pioneiros. Eles são o orgulho do Núcleo Bandeirante, olha que beleza.

2. Brasília é o off-road dos pedestres: Ainda bem, porque Cassiana realmente queria caminhar nas matas do cerrado. Acontece que Brasília tem calçadas com a qualidade das ruas de Gaza. Isso quando tem calçada. E o mato ainda é dos mais chatos, parece feito de mãozinhas que agarram seu jeans com ferocidade de guerreiros pigmeus. Isso transformará a caminhada de Cassiana em uma grande e retumbante tortura, já que o esforço vai ser bem maior do que o que ela tinha calculado.

3. Brasília é plana o caralho!: É plana no asfalto, mas vá lá andar nas entre-quadras. Além das irregularidades naturais do terreno, tem até prédios que criaram seus próprios morrinhos para se instalarem acima dos meros mortais. Mas Cassiana não liga para essa tentativa ridícula de manter a privacidade dos moradores e anda a vontade por dentro dos blocos.
Pilotis foram feitos pra isso, e os moradores é que morram secos esperando que eu (perdão, ela) dê a volta para não invadir seus bem-valorizados pisos. Piso que funciona comigo é só o salarial, e isso porque eu não tenho escolha.

4. Brasília foi feita em U: “Leves curvaturas nas asas do Plano, formando linhas suaves e simples”. Não sei se foi exatamente isso que o maroto Niemeyer falou a respeito, mas tenho certeza que foi algo do gênero. O que ele queria dizer, realmente, é que “Fiz esta joça em U. Vão dar a volta, losers”. Isso significa que a coitada da Cassiana vai bater muito mais perna do que imagina. Isso porque ela vai ter a impressão de andar em linha reta, mas na verdade vai estar caminhando em um gigantesco U de mais de 12 quilômetros.
E se ela tentar ir em linha reta, coitada, vai enfrentar mais mãozinhas de pigmeus que qualquer explorador australiano já encontrou nos desertos.

5. Brasília, está mais do que óbvio, não foi feita para os pedestres.

E é aí que Cassiana, assim como eu ou qualquer um dos milhares de sem-carro que existem nessa cidade, toma conhecimento da horrível verdade. Que ou o capeta do Niemeyer simplesmente não pensou nos pedestres, ou Brasília não foi feita como deveria ter sido. Andar pelo Plano Piloto é lutar contra o bom-senso. Eu sei disso pelo mesmo método que a Cassiana vai usar: andando. Já cruzei o Plano de todas as maneiras que Descartes sonhou em seus Planos. Já fui da 311 Norte até o Núcleo Bandeirante, na maior prova de que o homem é feito de força de vontade e testosterona abundante. Já andei do CCBB até o Pátio Brasil algumas vezes e ir da UnB para a Rodoviária é banalidade pra mim. Eremita certificado, baby.
E espalho isso por todos os cantos, pois é motivo de muito orgulho, sim senhor. Não tenho nem patinete, my brother, e ainda assim sobrevivo na falta de esquinas dessa cidade. Nem sempre, mas às vezes andando, já que os ônibus daqui também são motivo para criar uma guerrilha urbana. Selvas de pedra e corações roubados, é uma realidade meio cruel, mas é a que temos. Sem tirar nem por. Um mar de fantasias sustentadas por vias largas e a impressão de que é tudo planejado, já que quem mora no Plano (quase) sempre tem carro.
Eu e a Cassiana só temos jogo de cintura.

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"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto