quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Sexo, o frágil - Caps Lock




Em noites cansadas, ela deita palavras na tela. Faz carinho, espera crescerem. Uma rotina de calma, bate-papo por aqui, puxada de assunto dali. Vez por outra maravilhas e risadas surgem, mas quase sempre são reticências tristes. Notícias de mesmice. Gente remoendo dores. Reclamações em quilo. O sorriso fica na palavra que fala. Toda dor sai das palavras tecladas. Essa é a lei que sua língua obedece.

Aquele dia, portanto, foi diferente, de outra maneira não faria sentido te contar sobre ele.

Começou com uma provocação boba, janela que abre de repente, nome de um conhecido distante piscando. O elogio veio preciso, oportuno, um anzol. Morde ou não morde a isca? Morde, vai, distraída! Tem gosto de alguma coisa que não vendem mais. Dá curiosidade. Chiclete Ping Pong? Não, era mais um... como é o nome? Flerte. Não vendem mais flerte hoje em dia.

Responde de volta, oferecendo ousadia. Ele vem mais firme, empolgado pela malícia de interjeições. Encaixa a mão no cabelo das sílabas, como quem não quer nada. Ela se faz de rogada e se pergunta o porquê, se quer tanto cair de cara nos sufixos, sair do sufoco. Tils dançam, mas não tem "não". A reforma ortográfica que tenha misericórdia, a pele trema em todo corpo. Aquele enlace de sujeitos não pedia verbo, o verbo vinha de intrometido que é.

Decidiu ser mais feroz, colou o corpo nos hiatos. Teclava linhas curtas, densas. Os fonemas seriam sussurrados, se ele pudesse ouvir sussurros via chat. A resposta veio antes de seu último ponto final. O outro estava se desfalecendo em detalhes. Da mão no cabelo veio um beijo de vogais, braços agarrados na cintura acentuada. As pernas dela faziam vez de circunflexo. O encaixe delicado e forte de cada oração. Prece de termos, os adjetivos que faltavam na hora do intenso. Palavras começaram a ser digitadas com uma só mão. Onomatopéias quentes, prazerosas.

Sem preocupar com normas cultas, agora ele invadia e devassava cada travessão que existiu. Foi era só beijar do jeito certo lá embaixo, nos seus predicados, que tudo virou hífen, sentenças entrelaçadas em uma longa palavra só. Línguas e linguagens faziam parte. Cabos de rede ligando corpos, prestes a formarem nome composto. Entregue, pediu penetração violenta, exclamações pulsantes. Mão nas costas, quadris involuntários, todo movimento cadenciado. Velocidade aumenta, as figuras de linguagem se borram. Espasmos por fim. O fraquejar nas pernas que é tão coletivo. Cardumes, bandos, manadas. Substância e substantivo, até que o logoff nos separe, cada um rolando pro seu lado da cama, em sua respectiva cama, amém. Enquanto suspira, pensa como é engraçado que seja digital, mas não tem os dedos dele marcando sua pele.

O jorro de vogais se acalmara, o sono veio. Já não estava mais em crase.



quarta-feira, 21 de agosto de 2013

[INFO] Trecho solto




Julho é um mês de amor pra mim. Junho não, sempre foi meio chato. Junho tem obrigações. Julho eu faço o que quero. Férias escolares. Ou tipo postar só um microconto e achar que fiz o bastante.

Aí vem Agosto, vejo que não atualizei quase nada por dois meses, que tenho escrito pouco (para o blog) e tenho ideia de publicar aquelas séries de crônicas que me dão um trabalho desgraçado pra manter. Me pergunte o porquê. Quer saber? Porque não é da sua conta, esse é o porquê.

Desculpa, tá, foi mal. Señor Chang baixou em mim. É difícil assumir minha preguiça/falta de organização, maior motivo desse blog minguar em textos por às vezes. Por isso, o amor de Julho e a redenção de Agosto se casaram em mim. Uma série de 4 textos sobre qualquer coisa que seja algo de sexo em nossos tempos. Amanhã de noitinha posto o primeiro. A regularidade me pediu pra aparecer toda semana. Só não dou certeza porque a vida é muito dinâmica.

É confuso, eu sei. E de amor, não sei muito. Logo, me vejo como um grande pretensioso ao tentar escrever sobre sexo. Quem sou eu pra mexer com algo tão importante e perigoso? Deixem gente capacitada, sabe. Bombeiros, astronautas, aqueles caras do CSI que encontram um fio de cabelo no meio da floresta.

Mas se ninguém diz como eu sinto, meu mal é desandar digitar a respeito.



sexta-feira, 26 de julho de 2013

Miniconto do Contra-plano



- Vou jogar tudo pro alto!
- Não faz isso não, cara. É pesado. Vai que cai na sua cabeça? Machuca.

E foi assim que o plano morreu, de contra-ataque.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Do lado errado da rua, estava ele




Era coração rateado. As bombas explodiam e ele nem sentia, só se sentia. Era farra de raivas, e ele, mesmo com raivas, não entrava na farra. Passou pelo protesto de fones de ouvido, Tim Maia cantava. Cruzava a turbe sem se importar com ela. A causa era boa. Mas não naquele dia. Naquele dia ele só queria lavar a alma das dores que ela deixou. Corpos que esbarravam, gritos fechando o ar, cacetetes e escudos. Medo, Aquelas pessoas tinham tanto medo. Observava meninos correrem desesperados da polícia. Desinteressado. Tudo era chato, como filme de cachorro skatista na Sessão da Tarde.

Era de luta, mas estava de luto.

Viu o par de senhores jogar dominó na praça próxima ao movimento. Viu as mulheres e transexuais que se prostituiam lhe chamando, querendo saber seu nome, mas não tinha o que dizer. Acabou se chamando "Nestor", por ser contra a falta de Nestores no Brasil. Viu o gato vadio sentar e esperar a noite trazer algo novo. No camelô, viu bala de goma que era mais sofrida que as de borracha.

Chave, seu Zé, elevador, casa, banho. Cantava uma melodia antiga, que não lembrava de onde conhecia. Os helicópteros das TVs do lado de fora faziam coro ao ruído do chuveiro. Precisou cantar mais alto, de repente se viu chorando. O pranto morreu em água. E sua causa, sua casa, ficaram escondidos até o amor não ser mais. Passar pela ponte, pegar a Perimetral, escorregar por um túnel, um trem rumo ao Méier, desembocar em Olaria e seguir pra além-Taquara.

Era de luta, mas preferiu dar passagem.



sábado, 8 de junho de 2013

Linha Muda



eu:
- Surpresa boa! =)

Faz tanto tempo que não tenho notícias suas, xuxu. Achei legal ter me adicionado. O tempo corre como se fosse alazão sertanejo no cerrado. Haha! Lembra de quando eu falava "aZalão"? Era um tempo bom. Antes de pisar na bola com você. Quebrei sua confiança tal qual graveto seco. Amizade que vai. Cerrado todo errado. Nosso sertão nunca foi tão. Muito de minha culpa. Ah. Pedir desculpas não ajuda mais, não é? O Rio é engarrafado, envasado, embalado. Falta seca.

Ouvi dizer que você casou! Logo a senhora, hein? "Amar pode ser terrível, pode ser o primeiro a ter que reconhecer o corpo no IML", não é isso? Sei que foi com o tal de sempre. Mas não me pergunte o que acho. Se perguntar, vou dizer que ele é um boçal e que não te merece. Todavia, se você tem ânimo no pote, o casório é seu. Não me pergunta que não palpito em seu palmito.

E o BBB, hein? Só se fala em outra coisa. Nunca fui pra'queles seus megaeventos de juntar todo mundo pra ver o paredão. Na moral que acho que seria uma bosta. Não desce, não consegui ver esse reality sem realidade, até hoje. Acho engraçado. Sentir sem preconceito. Até as dores eu aprendir a curtir. Mas não o Big-Big. É. Alazão, sertão.  E a vida? Me conta, como tá a vida?

do outro lado:
- Error404> User Not Found


sexta-feira, 31 de maio de 2013

Mandala




Existe uma mandala que os tibetanos costumam fazer. Com milhares de grãos de areia colorida, eles trabalham semanas, meses. Grão a grão, formando uma imagem linda, cheia de vida. O primeiro exercício é a paciência.

***

Dário viveu durante anos apenas suportando. Sabe que existem preços etiquetados em quase todos. Pais, mães, irmão e avôs. Sua mulher tem preço, meu filho vai ter. São escravos do pagamento, da conta que vence, do biscoito sem glúten que as crianças morrem se não comerem.

Era um desses. A gente reconhece logo. Camisa de linho, peito que aguenta até a pior das ofensas, se as ofensas vierem de cima. Tentei telefonar, mas o amor próprio dele cancelou a linha. Nunca encontraram, nem mesmo no Google.  Tenho medo de Dário por ter medo de me tornar o Dário. Uma vida a prestação.

Nunca foi tibetano, mas lá estava sua capacidade de esperar. Grão a grão, a galinha ia. De atendente a vendedor, de vendedor a gerente. Os sonhos minguando, mas o ordenado subia um pouquinho junto com o salário mínimo. A esposa sofria observando seu querido homem se desfazendo ao vento em contra-cheques.

- Você não merece isso! Ser humilhado por alguém só porque é quem paga suas contas?
- Não. Mas a luz vence amanhã, mulher. O que eu faço?

A prisão dentro de si.

Até que seu pote transbordou, como sempre acontece em vidas assim. Se recusou a fazer um balancete falso para o chefe, e ouviu um "vou lembrar disso!". A ameaça velada mais clássica do cinema americano. Observou a ameaça com interesse. A raiva subiu. Se levantou da cadeira e olhou fixamente nos olhos do facínora.

Em sua cabeça, tudo correu. O ódio de ser submetido a qualquer vontade. Pensou em lembrar o chefe de quando ele roubou suas melhores ideias e as registrou no nome da companhia. Quem sabe refrescar a memória de todo  trabalho que ele fez e que não era sua função. Ou todas as grosserias, todas as respostas atravessadas. O estupro de consciência que é continuar em um lugar onde tudo está errado, onde a exploração e o desrespeito mandam. O medo do desemprego.

Como se o desemprego fosse um caçador voraz, como se rebelar-se contra o café pequeno de serviços fosse o certo. Como se a demissão fosse desistência. Olhou pelo escritório e viu tantos colegas assim. Pela janela, outros prédios comerciais. Quantos assim? Quantos escravos de um ordenado desgovernado. A locomotiva dos empregos de merda estava lotada. Voltou para os olhos do chefe, agora sem mais medo. Se sentou.

- Vou pedir um café. O senhor também quer um? O Jarbas disse que é o melhor da rua.
- Termine o balancete como EU TE MANDEI. Dá pra fazer logo?
- Sim, senhor.

Sentiu seus braços darem a volta no banco da locomotiva. Aquilo agora é Dário. Ele vai até o fim da linha.

***

A mandala tibetana termina depois de muito esmero. Seu dono, o artista criador, toma alguns momentos para contemplação. Olhando a obra concluída, medita sobre cada grão, cada esforço. Junta tudo nos olhos,  admirando seu trabalho. Depois sorri. E com uma vassoura, joga tudo aquilo ao vento, desfazendo em segundos sua arte. O exercício do desprendimento.

Sempre é possível escapar e fazer algo melhor, algo novo. O que passou não tem tanta importância quanto o que vem. Há beleza nisso. Nenhuma tortura vale a pena, nem mesmo a da vaidade sobre seu melhor trabalho. Não é sobre o destino, é a jornada em si.


quarta-feira, 24 de abril de 2013

Impressionismo




A linha em movimento. Pelas costas nuas, corriam minhas mãos e minhas tintas. Tentei copiar uma obra de arte em sua pele, fiquei no meio do caminho. Como querer ser Degas? A minha bailarina sente cócegas quando a caneta escorrega pela costela. Treme o traço. Dançou com os olhos. Dançou sem perceber o que o corpo fazia, cantou sem compreender o que a letra dizia. A tinta sobre a pele dura pouco, o significado daquele momento é um pra sempre entre nós.

O pra sempre mora onde passa rápido, também é movimento. Nossas telas estão na sua casa. Meu rosto, o dela. Minha alma, a dela. Sua história, a minha estória. Tintas de todas as cores, cores que não sei o nome. Ainda não inventaram a tela que queremos, nem por isso faltam desenhos. Ponto a ponto, pixel a pixel. Somos anônimos que se sentem reconhecidos, temos nossos nomes por todos os lados. Lembram da gente na rua, nunca sabem de onde. A importância de poder entrar onde quiser sem precisar de convite. Somos o Impressionismo sem precisar de pós. Nada de violência, ela já passou. As orelhas ficam no lugar.

Termino o desenho da nossa brincadeira depois de algumas horas de trabalho. Ela se maravilha, mas sei que podia ser muito melhor. Como as minhas estórias. De lei, sou repreendido. Tenho que escrever mais pra ser mais lido, sentencia. Sorrio, a bailarina dança sobre mim. Fecha os olhos e se apaga no sono. Antes de acompanhá-la, as palavras rolam sobre a tinta.

- Minhas estórias não estão esperando serem lidas, eu acho. Estão esperando serem lindas. Eu acho.


quinta-feira, 11 de abril de 2013

Rei Godofredo III




São milhares deles, um exército que marcha de noite com seus longos bigodes. Os macios. Os gatos que me chamam, me cantam e que morrem na minha varanda, secos do amor que eu não dei.

Amor que ficou com o que foi, amigo da criança que eu fui. Tive um deles, fui um deles. Sorrateiro e de rua. Caminhante, fui noite até a noite acabar. Quantos gatos morreram em mim? Desenhados em ângulo de patas que a vida não permite. A morte subverte a geometria de forma tão vasta, tão varanda.


Galopam nos meus sonhos. É crescente a lua minguante que a Alice usou pra me assustar. E de repente acordo, chorando suor. De quem era aquele gato? É preciso ser propriedade enquanto gato pra garantir a sobrevivência, hoje em dia. E eu sou homem de quem? Se preciso de interrogação ao fim dessa linha, não sei dizer. É tudo uma grande primeira pessoa coletiva. Eu somos. Os gatos que sofrem, as pessoas sem dono. Tem alguma coisa aqui. Não tem? Quase dá pra pegar com as mãos. Não é pergunta, é qualquer coisa de expressionismo alemão.


Gatos combinam com nomes alemães. Então por que esse não foi morrer na Alemanha? Não, precisou ser na minha varanda. Pra mostrar que a morte não é uma pergunta. A morte é expressionismo alemão. O bom censo que não dá conta desses dados. Os macios.


O fim do gato não foi o zelador vir bater na porta. Perguntar onde a varanda ficava, colocar o corpo do bicho no saco de lixo, falar que a vida na rua é triste, descartá-lo. O fim do gato ainda não veio. Aquele pobre coitado vai ficar aqui, como um alucinado miado mudo. Aquele gato agora é meu pra sempre.




quarta-feira, 3 de abril de 2013

Que esse dia não seja nunca!



Que esse dia não seja hoje.

Completo três anos longe do lugar em que nasci, no dia em que nasci. Parece muito mais, uma vida inteira. Parece que não pertenço mais. O mundo me devorou e tinha tanta fome que nem deu tempo de por ketchup.

Eu ligo, escrevo, lembro. Mas o meu chão agora se move e a gente tem que navegar esse bote, baby. As pessoas quebram em mim como as ondas do meu mar-paisagem. Ah, as saudadinhas. As saudadonas.

Um dia elas vão se perder também...

Ainda vai chegar o dia em que eu e você seremos velhos de verdade. Embrutecidos, cansados, contempladores. Sem querer ir a nenhum aniversário e roubando vela do bolo. Sem paciência pra música alta, risada alta, gente alta. A gente ainda vai encolher. Lembrar do antes e não do agora. Confundir o nome do filho mais velho com nome do nosso irmão mais novo, depois com o do afilhado mais velho e por fim com o do cachorro.

E vão nos chamar de velhos por causa da idade, e não por trocar uma noite de tuntz-tuntz por um sofá quentinho com filme. E a gente vai falar bem do tuntz-tuntz e criticar o que quer que a molecada esteja escutando. Porque música, ah!, música mesmo era Soweto.

Que esse dia não seja hoje.

Reclamaremos em reuniões de condomínio. Vamos usar expressões em prol da risada do filho. "Brodagem". "Desejo mais é que ele pise descalço num Playmobil". "Você tá pagando vexa, fióti". A gente vai fazer pipa pro neto. Vai contar histórias e estórias, e elas vão se confundir a ponto das diferenças, ficção e realidade, não terem mais nenhuma relevância. Não pra gente. Eu e você. Poderemos dirigir a 20 km/h em qualquer rodovia que corta esse Brasil. País rico é país com muito velho.

Tudo será um desrespeito, tudo será desordem, todos os valores avacalhados. Especialmente os valores. A gente vai usar muito a palavra "avacalhado". Vou precisar mudar meu nome, talvez você o seu. Não existe Lucas velho. Assim como não existem mais Onofres jovens.

Que esse dia não seja hoje.

Talvez todas essas bobagens estereotipadas que engolimos sobre a velhice tenham mudado. Talvez não tenhamos mais medo dela. Nós dois. Talvez o novo velho do futuro tenha 120 anos. Quem sabe a gente descobre como lidar com a ideia da morte. Ver e ser morte. Chamá-la pra festa, só com a obrigação trazer o que for beber. A gente não vai ganhar aposentadoria pra sustentar porre de ninguém!

Que esse dia não seja hoje. Sim, eu adoro repetir esta linha. Que esse dia não seja hoje. Quero que você troque o "parabéns" por esta frase no tal do meu dia, pelo menos aqui comigo. Aqui, agora. Sobreviver é uma vitória, sim. Mas quero que você deseje juventude por essas 24 horinhas. A nós. E nos anos que vierem, todos eles, pra ver se ela sobrevive em algum lugar. Todo 3 de Abril. Eu e você.

E a Júlia, gritando, lá no fundo:

- Que esse dia não seja nunca!


quinta-feira, 21 de março de 2013

Versão Oficial




Estava difícil carregar o pacote de compras. Além dos ingredientes para o almoço, Caio também levava dois litros de leite pra noiva. A rua era sempre lotada por ali, contudo estava especialmente cheia para um sábado comum. Pensou que devia ter ido pela ruazinha lateral. Tarde demais, se empacasse naquela muvuca seria pisoteado por algum argentino. Começou a ouvir sons na praça, guitarras, batucadas e metais em riste. O epicentro do aboletamento. Parou pra ver, parte da roda, espremido entre turistas e nativos que fazem a atrevida Ipanema ser o que é.

O jazz vinha de uma rapaziada não muito mais nova que ele. A música feliz saltava pelo quente ar carioca como uma lufada de brisa do mar. A praça dançava em timidez de pés batendo, estalos de dedo, cabeças sacudindo. Aquilo era tão bom, era tão Londres, era tão casa pra ele. A coisa ia se alastrando no corpo. Há menos de trinta segundos, nada além de transeunte. Agora tinha sido enfeitiçado, o sorriso que não saia do rosto. O único desconforto era a ausência de letra naquela música: lhe negaram o direito de cantar. Por que não podia ser um deles? Queria ser alegria, queria não ter um pacote de compras rumando para um canto que não era seu. Às vezes é tão difícil se sentir parte...

A saxofonista o encarou. Olhos nos olhos. Veio destilando seu solo, impiedosa, passo a passo. Quando estava a distância de uma sacola de compras, encerrou a música. Ele agora não era mais roda, todos se afastaram com o caminhar da moça, exceto Caio. Hipnotizado, era agora destaque.

Ela tirou o instrumento dos lábios e lá estava um sorriso. Estendeu as unhas alaranjadas, entre os dedos um encarte quadrado, o EP de sua rapaziada musical estrangeira. O rapaz não sabia bem o que fazer, levou um segundo até começar esticar o braço livre de pacote vagarosamente rumo ao encarte. Mas ela ainda não tinha terminado. Colocou o bocal nos lábios e soprou uma nota longa, clara, que fez saltar de dentro do sax uma margarida.

A flor flutuou por um instante até ser agarra pela outra mão de unhas alaranjadas. .A multidão fez "Ooooooun!". Ah, a coletividade. O sorriso dela aumentou enquanto engatilhava as próximas palavras.

- Choose, ma chère.

Um frio subiu pela espinha de Caio. Nenhum homem está preparado para um ultimato assim, em praça pública e antes do almoço. Em barriga vazia, qualquer sopro ressoa como furacão.

Chegou em casa levando o EP no bolso. Contou à noiva que tinha ganhado de uma saxofonista francesa na rua. Esses gringos tão cada vez mais atiçados, meu amor.

Mas não pronunciou uma palavra sobre flores e escolhas, apesar de ainda ter o cheiro de margarida na palma da mão.



domingo, 3 de março de 2013

O peso do amor dos outros




Ouvi a moça dizer "eu te amo" e acabar com um possível amor. Foi tão rápido, tão doloroso, tão constrangedor. Eu ali, comprando o Globo na banca, e ela olhando pro homem grisalho com olhos impiedosos de quem não tem mais o próprio coração.

No rosto dele veio a resposta, susto de "Ai, meu Deus!", tão cruel e tão honesto que jamais poderia ser recriminado. Talvez tudo o que ele quisesse fosse amar também, só faltou aquilo que não tem nome e ninguém sabe onde é que fica, ninguém viu ou deu bom dia, nunca votou e não paga imposto, aquela coisa que desperta e faz sentir infinito.

Escondo os olhos no jornal enquanto pago, o jornaleiro disfarça contando o troco. Se conhece bem o pesar das testemunhas, dos dois no meio do caminho. E lá se vai um crime sem perdão que é justo deixar impune.



sábado, 2 de fevereiro de 2013

Suaves brevidades.




Por às vezes me pego refletindo sobre as suavidades. Já parou pra pensar nelas?

Ficavam a onze passos para o Norte de onde você estiver, com tantas levezas que o vento leva tudo. As levezas se espalham, tomam conta, infiltram e integram. Suavidades fazem parte de quem cruza os seus caminhos.

Elas têm sorrisos entre palavras que não nos pertecem e que desafiamos, em meio a tardes na cama e manhãs no sofá. O tempo passa sonolento. Suavidades não. Sorrateiras, te ajudam a dormir pra ficarem acordadas, te olhando viajar pelas confusões de sonhos. E nessas horas sorriem também.

São sempre discretas. Com batons invisíveis e vestidos de flor, suavidades dançam sem serem vistas. Tímidas, são o que são sem nenhuma enganação. Suavidades são mais honestas que vó do interior.

Gulosas e com estômago de passarinho pro que não gostam. Mas se gostam é de sorvete. E não muda nada se é de pequi ou Maracujá & Manga da Haagen-dazs, elas devoram até gelo com sal. Na maior fineza, sua brutalidade popular máxima é uma rapadurinha boa..

Suavidades se perderam e por às vezes me pego pensando onde foram parar, naquela curiosidade sobre o que fez parte da sua vida e agora parece cada vez mais um lembrança apagada. Hum. Como uma fita K7, uma nostalgia boa e engraçadinha, mas que não se tem mais onde tocar. Fico pensando no tempo que faz anos, ou se era realmente suave como a lembrança marcou. Fico pensando.


*O texto acima é uma releitura de uma mensagem escrita em 2009.


sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Visita




Ela abre a porta. Abraços e beijos. A senhora carregando a família pra dentro, chega já amaldiçoando o calor fora e dentro do apartamento. Ai, que essa cidade é uma bagunça! Eu é que não vivo aqui!

A irmã mais nova fica de longe, a priminha enfiada no iPod. O namorado fica no degrau que dá pra varanda, segurando o riso em frente ao computador e fingindo que não escuta. E a mãe da moça não perdoa nada.

- Essa casa sem sofá não dá pra ser, filha! Tô com vontade de voltar por meu canto.
- Já vai resolver, mãe!
- Não, não me incomoda não, Fefêzinha!

E vai ali na cozinha buscar um copo de água geladinha pra priminha. E que lá em casa tá tudo arrumado, Fefêzinha! Uhum, o Rio é lindo. Mas eu não tô nem aí, eu vou ficar hoje é aqui que a viagem me deixou cansada!

A irmã mais nova vendo que faltou trazer shortinho, a priminha dormindo em pé. O namorado lá, no degrau, segurando o riso e fingindo ler uma matéria sobre trem-bala em Bangu.

Abrem mala, enchem colchão inflável, todo mundo pensando no Réveillon. Fazer o pavê da virada aqui não vai dar, Fefêzinha, o fogão não é igual ao lá de casa. Tá bom assim pra você? Então tá perfeito pra mim também!

Ela pensa nos passeios, se vai chover ou não vai. Réveillon em Copacabana é igual a chuva, então é preciso correr contra o tempo. Sabe que o Rio de Janeiro está lotado, turistas saindo pelo ladrão. Passear de bicicleta?

- Ninguém quer saber disso não, filha.
- Aqui é bem fácil, mãe! A gente pode passear na Lagoa, tem ciclovia. A senhora tá ficando velha!
- Se é assim tá ótimo! Mas as meninas não querem. Eu não sei andar e hoje não saio de casa, Fefêzinha!
- A senhora veio pro Rio pra ficar aqui no apartamento, mãe?!
- E pra queimar fogos em Copacabana! Ou ver queimar! Você entendeu.

A irmã mais nova decidindo se leva a câmera fotográfica, a priminha usando colar de bigode. O namorado lá, no degrau, segurando o riso e fingindo que está recalculando o Imposto de Renda.

Fefêzinha, a tia Lindalva tá muito bronzeada! Pode deixar que a louça é minha, isso aqui não é nada. Lá em casa você sujava mais. Não vai deixar de comer pra não ter que lavar prato, minha filha! E toma cuidado que aqui tudo vence rápido, pãozinho não dura nada.

E ela olha as validades no super mercado como o Globocop procurando por acidente de trânsito. Não deixa guarda-chuva aberto em casa, nada de chinelo virado ou varrer o pé de alguém. Ainda assim não acata a coisa de comer uva, que uva tem que cuspir o caroço e ela tem nojinho.

- Pelo menos uma de romã, minha filha! Copacabana vai tá um fuzuê, tomara que dê pra comer o pavê lá na Lindalva. Assim a gente não tem sorte, sua vó que fala. Não sou eu, é sua vó.
- Tá bom, mãe, tá bom! Vamos, tá todo mundo lá esperando a gente!
- Você tá tão linda, minha filha!

A irmã mais nova fazendo mala, a priminha dizendo que adorou o Rio mas prefere o Gama. O namorado lá, no degrau, segurando a emoção e fingindo não perceber a mãe sufocada de vontade de dizer "Volta pra casa!". Ou a filha escondendo o tamanho da dor de saudade.



Quem sou eu

Minha foto
"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto