domingo, 27 de novembro de 2016

Os anos




Não, não parece que faz tudo isso. E também parece que foi muito mais. Mas andei contando. São exatos dez anos.

Eu penso em você todo dia. Mesmo no mais repleto. Mesmo no mais vazio. A sua morte refez minha vida. E algumas vezes te culpei e odiei por isso. Que bobagem, não é? Tornar o maravilhoso que você me deu em uma coisa ruim só pelo fato de não existir mais.

Eu sou o seu fantasma, percebi. Eu sou o seu legado. Sigo seu evangelho. Sua filosofia.

Isso fez de mim um homem corajoso, eu sei, apesar de sempre amar em excesso. Inconsequente também, como você.  Fico orgulhoso quando acho seus defeitos em mim. Quando imagino as suas broncas. Com frequência imagino as suas broncas. Acho que você me daria duas hoje. Uma por eu não estar viajando como planejei. Falando de uma forma doce como os meus descuidos menores são importantes também, mas que eu não devia me cobrar tanto assim. Outra por eu ter fugido tanto de Brasília em dias 27/11 pelos últimos cinco anos. Seu temperamento firme teria aparecido mais agora. Você diria que não é uma bigorna pra cair na cabeça de nenhum Coiote como eu.

Eu já te pus em um pedestal, mas não durou muito e tem tempo que eu percebo com clareza os seus defeitos. A postura mimada, a necessidade de se impor, de ver o mundo como um campo de batalha. As seletividades, a teimosia, o desdém por crenças diferentes das suas. Acho que você teria revisto muito disso tudo com os anos, como eu. Somos fruto dos anos 90, essa era bizarra e imprevisível. Você poderia ter sido a mãe dos meus filhos, você poderia ser a razão de eu não querer tê-los.

Tenho certeza que você conservaria, no entanto, essa facilidade pra me exergar através de qualquer disfarce, com candura e firmeza. Suas duas características mais marcantes, apesar de tão contraditórias. Eu queria muito, muito mesmo, ver seus olhos me encarando na mistura dos dois de novo. Aquela hipnotizante verve que você sempre emitiu. Aquele poder emanando do seu corpo. Aquelas palavras que até hoje ecoam depois do meu:

- Eu... Eu te amo. Acho que te amo há muito tempo. Mas só percebi agora.
- Ah... Eu esperei dez anos pra ouvir isso, seu babaca.

Que um dia eu possa igualar esses dez mais dez e viver sem pressa de te encontrar.


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"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto