domingo, 11 de novembro de 2012

Tarde demais


Caio se apaixonava à medida que ela roia as unhas. O esmalte vermelho dos dedos se desfazendo no esmalte claro dos dentes, ansiedade e mania, desconto do controle foragido. A moça nem percebia o olhar enternecido do rapaz que sofria junto com ela.

Olhava pela janela do coletivo, mergulhada na noite escura de si enquanto o dia brilhava ensolarado do lado de fora. O negrume dos olhos tristes esfumaçados de sombra escondia olhos inchados de dor, Caio notou.

Despia cada verso que ela sussurrava, adivinhando a música que corria pelos fones escondidos em meio aos cabelos castanhos. Queria ser cada agudo abafado, cada grito reprimido. Abraçar os dedos que tamborilavam no joelho sem o menor ritmo. Queria se rasgar e deixar de ser timidez, renascer coragem.

Mas Caio não conseguiu. Ficou de lado, medindo o tom da voz que queria ter. Seguiu em silêncio absoluto a abocanhar cada pulsação da mulher que dividia com ele o banco, até que o inabalável "tarde demais" veio. Cada um pra seu canto, nunca mais a viu.

Chegou ao ponto final e não desceu.

Nenhum comentário:

Quem sou eu

Minha foto
"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto