terça-feira, 20 de março de 2012

Retrovisores




Por acidente, tocou em um dos retrovisores. E lá estava tudo o que não via por um ponto cego. Muita coisa mudou. Mas não tudo. Não ainda.

Era tanto amor, tanto. Onde é que ele foi parar? Desceu pelas escadarias de erros em um belíssimo espetáculo de efeito dominó. Linhas trêmulas não aparecem em textos digitados, então não sabe precisar o que sentia quando tudo aconteceu. Em suas palavras leu raivas controladas e descontroladas. Leu inseguranças de menina. Mas não consegue confiar em suas avaliações. A memória é traiçoeira, às vezes não faz nada além de labirintos. Sabe sim a opinião que tinha sobre si na época. Se sentia tão madura... Só o tempo muda coisas como a arrogância da juventude.

Era uma mulher de dor se levantando. Agora é uma daqueles moças que a gente julga clichê, que fala do amor em detalhes. Amar demais, amar de menos. Amores esquecidos que ainda trazem lembranças boas. O amor antigo. Ainda? Não há mais. De repente não estava mais lá. Que estranho. Jurou que ele jamais a abandonaria. A dor em seu lugar, agora não mais escondida. Milhares de amores novos também. As mentiras só aparecem em trivialidades, em ficções expostas. O amor de antes passou, sempre diz com naturalidade.

Mas não percebe que repetir as palavras só dá margem às dúvidas dentro de si. Os retrovisores enganam, os olhos também. E as pequenas verdades sobre si mesma continuam quebradas como os vasos que ele derrubou ao sair pela porta.



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"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto