sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Marujos - Locomotivas




2017

Eu acho (e acho como quem sabe que isso não é de muita valia) que o tempo todo eu sou mais de uma pessoa. Que essas vastas e inconstantes personalidades são queimadas como carvão, viram fumaça sem cheiro ou cor. Quero me misturar em todos através disso. Mas não controlo nada além das minhas próprias palavras. Não sou dono de mim. Sou o transe em que você entra quando escuta a voz da sua mãe. Sou o quarto fechado e empoeirado que você tem preguiça de abrir por saber que vai espirrar.

Gosto de esquecer de coisas  boas e que alguém que amo me lembre delas. Sou o meu próprio medo de apertar demais alguma coisa. E me sinto o tempo todo em um mar de papel. Tem horas que isso é lindo, horas em que é assustador.

Tenho problemas com a retidão da verdade. Mas nunca fui tão honesto na vida. Sinto a força disso. Só que ainda não gosto dela.

Cadafalso, a minha palavra. Me escuta, é importante. Fui eu, confesso. Outro dia, outro lugar. Aqui se faz, aqui se paga.

Não é que eu não me importei. O "oi" fez falta, sim. Mas eu estava preparado se ele não viesse, como não veio. As palavras têm um peso e uma força que nunca vou compreender de todo. Mas o instinto de proteção que criei, desse eu manjo. É baseado num jogo de probabilidades que inventei. Onde não espero nada de ninguém. Onde crio meu próprio ninho.

2018

Me forjei em alguém além de qualquer coisa que esperava. Sei nem dizer como. Mas agora, enquanto percorro meus trilhos e o vento sacode meu cabelo, eu estou sorrindo por dentro e por fora.

Meus amigos estão aqui, nos vagões coloridos e classudos, nas poltronas e nas cabines. Todos eles são um só comigo. Acenando pelas janelas, enquanto o mundo corre sob nossos pés. Somos tão amplos, tão vastos. Somos os pássaros dessa linda beleza americana. E o céu estrelado que nós cobre à noite é o refresco que a pele pede.

É estranho estar feliz, apesar de toda tristeza por dentro e por fora. É estranho ser feliz. Como se eu tivesse entendido e encaixado uma peça que achei que estava sobrando. E não ter que me explicar pra ninguém. E conseguir fazer quem eu amo feliz. Admirando a paisagem.

Sinto mesmo como se eu fosse uma locomotiva. Não o maquinista, a locomotiva em si. De ferro e aço, apitando por aí, fazendo os carros pararem pra eu atravessar. Charlie, the Chooo-choo. E também um trem-bala japonês. Até aqui, sou o último marujo, e um que ficou feliz em ser de terra. Mas que também sempre será do mar. Pera. Acho que eu sou o mar. Pacífico, passeando pela linha férrea.
Soa bem.

No horizonte, sem medo, o mar e o marujo e o trem.
Reluzindo em um só, na figura de um homem.
E este homem sou eu.



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Quem sou eu

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"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto