segunda-feira, 31 de maio de 2010

Três nomes




Meu telefone tocou, um número que não identifiquei piscando no cristal liquido, apesar de me parecer tão familiar quanto ver o Palmeiras perder. Atendi enquanto olhava pro céu bonito da manhã de domingo. Ouvi uma voz que fez meu coração falhar.

- Passarito? É o Deco.

O lance do "Passarito" é um apelido de criança, longa história que fica pra depois. O Deco também é da infância, um amigo que fiz quando tinha uns cinco anos e com quem compartilhei meu sangue e minha vida até os 17. André Alves Dutra. Não ouvia aquela voz insolente desde 2006, no dia terrível em que cada um seguiu seu caminho. Fiquei um segundo sem reação, um turbilhão invadindo minhas lembranças. Acho que minha alma balançou entre dois extremos, dor e alegria. A alegria venceu.

- Como é bom ouvir sua voz, meu velho - respondi.
Consegui sentir o sorriso dele do outro lado da linha.
- Estou em Brasília, pensei em ver se você ainda ta inteiro sem eu pra proteger seu esqueleto.
Como a vida é uma brincalhona. No momento em que ele me ligou, eu colocava meu relógio pra sair. Dois relógios, na verdade.
- Na hora certa.
- Como é? - perguntou, confuso.
- Me encontra no parquinho, você vai entender. E calça um tênis que a gente vai andar.

Não demorou muito pra alcançarmos os trilhos, a divisão dos nossos mundo antigos. Só voltei lá uma vez desde 2001, quando eu, Deco e Marci juramos que nunca mais cruzaríamos a fronteira que a linha férrea faz. Estávamos com 12 anos naquela época e era fácil sentir a infância se esvaindo de cada um. Querendo conservar todas as maravilhas que só olhos de criança registram, decidimos guardar na memória os lugares depois da linha. Um formol de lembranças, que o tempo despedaça um pouquinho a cada mês, a cada ano. Cecília clamou apenas uma exceção ao juramento:

- Só podemos voltar lá se for com nossos filhos.

Concordamos, Deco e eu, prontamente. Lembrando disso nessa nova caminhada, rimos como bobos. Nenhum ser vivo no mundo seria capaz de contrariar a Marci. Cego, surdo ou mudo que fosse, ela sempre teve o dom de persuadir todos. Após um gole longo na minha garrafa d'água, o Deco me olha com a expressão de quem já sabia a resposta do que ia me perguntar.

- E quando foi que você voltou aqui?
- Esse ano.
- Com quem?
- Com alguém que não quer mais ser meu alguém.
- Puta que la merda, cara. Essa é a frase mais "to na fossa" que já ouvi na vida.
- Hahaha, para de me encher. Ela vale a fossa. Isso já passa.

Ele me olhou de lado, tentando disfarçar. E depois de 21 anos de treino, ele ainda falha vergonhosamente nisso. Enquanto subia em um trilho e tenta caminhar se equilibrando, traz uma coisa gostosa.

- Lembra de como a Marci caminhava aqui?
- Claro. Ela conseguia andar todo o percurso se equilibrando no trilho, enquanto a gente mal passava de cinqüenta passos.
- Até hoje eu me pergunto como ela conseguia fazer isso. O caminho deve ter uns nove ou dez quilômetros.

Maria Cecília e suas façanhas. Deco e eu vimos aquela menina-mulher fazer coisas incríveis, nos guiar por lugares e situações magníficas. Eu nunca tinha parado pra perceber que ela também deixou um buraco na vida dele, que ele passou por tanto quanto eu passei. Foi então que el revelou um segredo que nunca foi secreto, apesar de todo o esforço.

- Eu era apaixonado pela Marci, Lucas.
- Eu sempre soube. Por isso eu quase hesitei quando descobri meu amor por ela.
- Ia ser a maior burrice da sua vida - retrucou, imediatamente. A Marci queria você. Quando vocês ficaram juntos, me libertaram.
- Isso... me deixa mais tranqüilo. Mas então não entendo o porquê de você ter ido embora.

Um ar cansado se apoderou do meu amigo. Ele se voltou pra mim, me olhando firme:

- Eu precisava fugir, cara. Depois que ela se foi, tudo isso era dor e lembrança.
- Você me deixou só.
- E você agüentou!
- Eu precisava de você, Deco.
- E eu precisava estar longe. Você não entende?

Acho que nunca me senti tão maduro quanto naquele momento.

- É claro que eu entendo. Você não deixou de ser meu amigo, nunca vai deixar.
Ele se surpreendeu, perdeu o equilíbrio e caiu do trilho, pisando na grama.
- Essa menina nova mudou mesmo você, hein?
- Ex-menina nova. Ela me ajudou muito, sim, mas eu fiz minhas próprias mudanças.
- Conversei com ela há um tempão atrás. Ela pareceu ser boa pessoa. Pensei que você jamais esqueceria a Marci.
- Você foi passar o Manual do Doca pra ela, que eu te conheço. Ela é mesmo uma boa pessoa. E eu nunca vou esquecer a Marci, nessa vida ou nas que vierem.

Ele riu o riso claro que sempre teve. Meu amigo estava de volta, depois de mais de três anos. Enquanto caminhávamos naqueles trilhos, memória foram revividas, canções foram cantadas, risos foram gargalhados e a amizade renascida.

Naquela hora de caminhada, eu quase pude sentir a Marci ali, passeado num domingo de sol com a gente. O cheiro do cabelo dela, os olhos verdes contra o sol. Meu coração ficou tão apertado que pude sentir o pulmão reclamando da falta de oxigenação.

Quando chegamos ao nosso ponto final, olhei os nomes gravados desde 1997, com uma tinta guache vermelha. Que ficou marrom depois de todo aquele tempo. Ali, deixei o meu relógio antigo. Uma promessa da qual quase me esqueci. A Marci tinha me dito uma vez que eu e aquele relógio éramos uma contradição
.
- Você nunca esteve preso ao seu tempo, Passarito.

Ela me fez prometer que eu deixaria aquele relógio no passado assim que pudesse. E assim foi feito.

Meu amigo voltou pra casa, depois de algum tempo em que continuamos conversando lá, sentados na estrada de ferro que foi o caminho dos nossos dias de ouro. Depois que ele partiu, fiquei mais um pouco, pensando. Tentando encaixar as peças do tempo, tentando entender melhor como a vida tinha me conduzido até aqui. E tudo o que consegui foi perceber que aqueles trilhos precisam muito de uma limpeza. Sai de lá com o sol se pondo. Junto com ele, minha infância também teve seu crepúsculo.



Um comentário:

Ana Paula Bessa disse...

Bom, esse é o segundo texto que eu leio hoje e que terminei chorando.

O seu dom de descrever cenas me arremata na emoção.

Doca, escreve mais!

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"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto