sexta-feira, 11 de março de 2016

Quatro pães de sal




Ele adora ouvir trechos de conversas de gente passando na rua, no mercado, no coletivo. É como uma colher de fermento pra imaginação do Diego que, acostumada, preenche o os vazios..

- ... aí você acredita que ele olhou pra Marta?! Babaca pra...

Completava do jeito que queria. "Logo pra Marta! Antes de ela virar astronauta ninguém espiava, agora que tá cheia de grana espacial da NASA a rapaziada fica encarando! Tsc, tsc". Fazia isso mentalmente na maioria das vezes. De vez em quando, sussurrava a resposta, seguindo na direção oposta, só pelo prazer da intromissão/ousadia lançada ao vento.

Hoje, foi um tico diferente. Na fila do pão, um homem falava no celular:

- ...assim eu num guento! Essas coisas deixa a gente doido, cara.

Retrucou sem se dar conta, distraído. 

- Por isso que o povo faz bobagem, né? - disse ele, surpreendendo quem estava em volta.
- Oi...? - balbuciou o homem, virando a cabeça pra olhá-lo.
- Todas aquelas vezes em que alguém sai falando das dores, de um jeito que o mundo não quer, sabe? Aqueles posts de sofrência gigantescos pós-término, ou as fotos de falsa felicidade pra estimular o recalque.
- Mas não é disso que eu tav...
- Ainda assim, dá pra entender. Quando você sente uma dor dessas e tal. Você não consegue colocá-la em nenhuma palavra, então sente a angústia de dizer milhares, pra muitos, pra todos. Palavras vazando, vazias. Não retém a dor, nem a dignidade, direito. Como se nenhuma sílaba dividisse, nenhuma métrica coubesse. Escravo da palavra, fala todas as que não deve. Curioso, não? 
- Cara... eu só tava reclamando do meu patrão aqui. 
- Ah, entendi. 

Depois de pedir seus quatro pães de sal, passando pelo corredor de frios e pagar em moedas pelo lanche, o rapaz sorriu. Constrangimento pesado à parte, ele não precisaria imaginar nada daquela conversa. E de quebra, criou a fila do pão mais reflexiva da história do município.



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"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto