sábado, 2 de junho de 2012

Just Drive - Parte I (Emergency Driving School)


"Eu só queria um yakissoba. Mas na Jamaica é tudo um pouco mais fácil e muito mais difícil."
Ian Fleming - Memórias


Passa das 23h e eu já estou deitadinho na minha cama, meio dormindo/meio lendo um livro, meia calabresa/meia muzzarela. Pijama no corpo, dentes escovados. Óculos de ficar em casa. Só a luz do abajur espalhada no quarto, um farol no mar do sono. Tudo tão tranquilo, tão calmo, tão...

Toca a campainha. Me sento de uma vez na cama com o susto. Espero, passam alguns segundos e nada. Deve ter sido engano. Por favor, que seja engano. Mas toca a campainha de novo e dessa vez por um longo tempo. Calço os chinelos. Puto, xingo o inventor da campainha. Desço as escadas e pego o interfone.

- Hello?
- MISTER LUC.. (estática)... TACK, HE NEEDS HEL (estática)... HURRY! QUICK, MAN QUICK!
- What the...? Come again.
- A MAN... (estática)... HEART ATTACK (estática)... MOV YA CAR, YA SEE?! NOW! NOW!

Caralho, alguém tá tendo um infarto! Preciso tirar o carro da vaga, é isso! Ambulância não tá conseguindo chegar no cara. Cadê a chave?! Cadê o diabo da chave?!

Pego tudo e saio correndo, larguei o chinelo dentro de casa. Os pés descalços no cimento fazem barulho de galope. Passo pelo portão e já vou pro estacionamento. Mas não tem nenhuma ambulância. E mesmo se tivesse, não faria sentido eu mover meu carro, percebo. É a última vaga, jamais atrapalharia qualquer passagem. Daí chega a porteira e diz, com pânico nos olhos:

- HURRY, MISTER LUCAS! THE GUY IS DYING! HELP ME, GRAB HIS ARMS!
- Calm down! Where is the ambulance? I'm not getting this hole thing.
- There is no ambulance! I called you to take him to the hospital, ya see! There are no ambulances in Kingston between 23h e 4h, man!

E aí foi a minha vez de gritar:

- WHAT THE FUCK?!

***

Eu tinha sete anos. Tava sentado no banco de trás do carro, brincando com um boneco do Comandos em Ação. Minha mãe dirigia, me levando pra casa da irmã. E de repente uma força me puxa o corpo inteiro pra frente, nenhuma chance de resistência. Só muitos anos depois, no estudo das leis da cinemática da Física, fui saber o nome daquela força. Na hora eu só senti o seu poder. A última coisa que lembro é da expressão de pavor da minhã mãe e da coluna que sustenta o teto do carro, aquela perto do motorista. Depois, blackout.

Acordei em um hospital. Doía tudo e doía muito, como se eu tivesse sido arremessado pra fora de um carro, voado por metros e só sobrevivido por ser leve e cair em um ponto milagroso de grama e arbustos. E, bom, era exatamente isso. Descobri que não conseguia me mexer. Eram tantas fraturas que imobilizaram o corpo inteiro, inclusive o maxilar, que quebrei dos dois lados. Do lado da cama estava meu boneco do Comandos em Ação. Sem a cabeça.

***

O homem é um desses britânicos rosadinhos, com cara de quem vê programa de praia na TV vestindo uma minisunga azul bebê. E pesado. Jogo ele no banco do passageiro. Sento no meu banco, ligo o carro, mas tô tão nervoso que demoro quase dois minutos pra tirar da vaga. Ele grita de dor do meu lado, manda eu me apressar. Tento achar a embreagem, lembro que meu carro era automático e que não tem embreagem. Saio cantando pneus do prédio, quase acertando dois carros no caminho. Ele grita comigo.

- WHAT ARE YOU DOING?! TURN THE LIGHTS ON!
- Calm down, ok? I'll do my best!
- WHA... WHAT??? YOUR BEST?!
- I don't drive. Now shut up.
- I  CAN'T BELI...
- SHUT UP! I DON'T DRIVE! WANNA MAKE THIS HARDER?!

Ele, em meio ao infarto, berra as direções. Entro na avenida principal acelerando. Ele fica mais desesperado, tentando falar comigo. A voz sai num fiapo estrangulado, assustador, muito mais que os gritos.

- You're in the wrong way... guffff... British... grrrfff

Mão inglesa, cacete, na Jamaica é mão inglesa! A 80km/h na contramão, o suor frio começa a escorrer. Fico mais desesperado. Não vejo um retorno, um jeito de ir pro lado certo da pista. Ele recomeça a gritar, me manda parar o carro. Vejo um carro da polícia, buzino como um louco. Ele vem rápido, já ligando a sirene.

Paro o carro e explico, ou melhor, aponto por enfartando enquanto deságuo uma mistura de inglês, português e espanhol. Eles entendem, levam o homem pra viatura e somem na noite silenciosa de Kingston. Só o discreto som do motor do carro ligado. Sento no meio-fio, mãos tremendo e olho pra ele. Azul, japonês, imponente. É um carro bonito. Mas só de pensar em entrar nele de novo me dá um calafrio. Ainda assim eu vou pro banco do motorista, sento, e tento telefonar pro Brasil. Ela não me atende.

Fecho a porta, dirijo a 10km/h até meu condomínio. Nem tento estacionar, largo o carro ocupando duas vagas. Desligo e tiro a chave da ignição. E antes de sair, encaro por um segundo a maldita barra de sustentação do teto, aquela que fica perto do motorista.


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"O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato/ O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço/ O amor comeu meus cartões de visita, o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome/ O amor comeu minhas roupas, meus lenços e minhas camisas/ O amor comeu metros e metros de gravatas/ O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus? O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos/ O amor comeu minha paz e minha guerra, meu dia e minha noite, meu inverno e meu verão/ Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte" - Dos Três Mal-amados, Palavras de Joaquim - João Cabral de Melo Neto