No meu quarto de madrugada, levantando de repente na cama sentindo o ar no meu pulmão virar concreto. Resfriado chegando? Não, é só Novembro. Passou. Eu preciso me lembrar, preciso saber.
Eu me lembro, eu sei.
Meu dicionário. Quando nem eu sabia dominar meus significados, na língua dela já estiavam as palavras certas. Como naquela mágica em que o ilusionista esconde uma carta de baralho dentro da boca. Na dela não era um 9 de copas. Era a tradução do que meu coração dizia.
- O que você gosta de ouvir, cara? - me perguntaram.
- Nos últimos tempos, o som do silêncio.
- Hahahaha! Que mongol!
- Não, não - ela interveio. O som do silêncio. De noite, um cachorro latindo lá longe. O assovio do vento pela janela, o relógio fazendo tic-tac na parede. Os ruídos do lençol na cama quando a gente se mexe. E toda a sensação de vazio, de infinito e tranquilidade que o mundo parece ter. É o som do silêncio.
Então eu sorri. Até hoje estou com o mesmo sorriso e por isso eu choro. Aqui, em Belo Horizonte, no Amazonas, no meio da Avenida Brasil. É tão estranho rir e chorar ao mesmo tempo...
- Você conseguiu, menina! Eu não tô entendendo. Você viu a cara daqueles gringos?! Da sua mãe?! Olha pra mim, tô em êxtase! Todas as noites de treino, as sapatilhas rasgadas, seu corpo dolorido. Você conseguiu!
- É, eu consegui. Foi maravilhoso, tudo isso foi maravilhoso. E acabou aqui, Lucas. É por isso que eu estou chorando, e rindo, e chorando. Meu corpo nunca vai se adaptar ao ballet profissional, eu nunca vou me adaptar também. Se aquele russo me tratar como as alunas, dou um grand jeté no nariz dele! Sempre soube que aqui ia ser a última estação pra mim.
- Marci, não! Eles tão boquiabertos, vão te escolher! Se não era pra isso, então pra que tanto esforço?
- Porque eu amo o ballet! Amei dançar durante esses treze anos e vou continuar praticando sempre que der. Mas agora quero levar a minha vida pra outra direção. Fazer outras coisas, o mundo é muito grande. Aqui termina um período lindo da minha vida. Estou feliz por ele ter acontecido, triste por ele ter acabado.
- Eu... não consigo ver o propósito!
- Você vai ver um dia.
Eu sei, eu lembro, eu vi. Tantas vezes, repetidas em mantras que cantavam a mesma letra. Aqui, em Budapeste, na Jamaica, no meio da Vila Olímpia. E um resfriado realmente chegou no lugar. É tão estranho sentir saudade de quem você já foi...
Nesse nosso dia-ardia, quando em você eu me perdia, o onde era agora e o quando era aqui. Mas passou, Novembro ficou pra trás. E lá na minha pequena cidade no Deserto Federal, tem o tempo da chuva. Mesmo sem cair um pingo em mim, ela lava minha alma. Nem tudo vai ficar melhor, mas o pior passou. Atchim!